A política às vezes se parece com o Deserto dos Tártaros: fortes bem situados, garbosos capitães, atenta vigília… e o inimigo não chega, como no romance de Buzzati. Giovanni Drogo se retira prosaicamente, e então chega o inimigo ansiosa e longamente esperado. Perdeu-se o tempo, a vida se esvaiu em repetitivos jogos de paciência, adeus glória…
Resumo
Na política brasileira, às vezes tem-se a impressão de que as condições chamadas “objetivas” já existem para a eclosão das transformações esperadas. Uma lista não muito longa dessas condições incluiria a constituição dos novos partidos políticos, a expectativa de eleições diretas para presidente, o fim do autoritarismo, a convocação da Constituinte. Mas os políticos não subjetivam essas condições, e, como sujeitos insubstituíveis da cena política na democracia representativa, sem eles nada se faz. Gerações inteiras de Drogos continuam a retirar-se. Amargurados, chegam ao fim com a mesma sensação de logro (ou a palavra certa agora é drogo?): a democracia, esse príncipe tártaro, continua encantada, não chega.
Seu tique mais evidente é sentirem-se ameaçados pelos outros. Pelos delinqüentes e criminosos, pelas crianças abandonadas, pelos migrantes mais recentes, em especial os nordestinos (às vezes, dependendo do bairro, por certos imigrados asiáticos também recentes, como é o caso dos coreanos), pelas mulheres liberadas, pelos homossexuais (particularmente os travestis), pela droga, pela indústria da pornografia mas também pela permissividade “geral”, pelos jovens, cujo comportamento e estilo de pôr-se não estão suficientemente contidos nas convenções nem são conformes com o seu lugar na hierarquia das idades, pela legião de subproletários e mendigos que, tal como a revolução socialista no imaginário de tempos idos, enfrenta-se a eles em cada esquina da metrópole, e assim vai.
Resumo
Mas que direita é esta? E até que ponto é “nova”? Questões complicadas. O medo e a agressividade em relação aos outgroup, como se sabe, não têm nada de novo como ingredientes de síndromes de extrema direita. Não têm nada de novo, é verdade, mas por outro lado conseguem orientar com segurança o diagnóstico, apontando na direção da extremidade direita do leque político: estamos às voltas com indivíduos arregimentáveis para causas antiigualitárias radicais e soluções autoritárias de direita.
Buziguim quem era? Ora, minha senhora; que horror, meu senhor! Buziguim era ele mesmo, senhor de truques e rebolados, vigarista do interior. Uma espécie de Cassi Jones, aquele vagabundo familiar de que falava Lima Barreto. Um deliquente caseiro. Este é o ponto: caseiro. Do interior de São Paulo, talvez Bebedouro, Ribeirão Preto, Colina, acho que Barretos. Era um vigarista tão cabal, tão reconhecidamente vigarista, que acabou famoso.
Para um expressionista do começo do século, o exílio era o verdadeiro lar – isolamento e estranhamento constituíam quase premissas ortodoxas de vida. Oswaldo Goeldi, irresistivelmente atraído para a margem e a sombra do mundo, encontraria no Brasil a pátria exata: oblíqua e obscura. Enquanto o nosso modernismo projetava uma racionalidade estética apta a nos colocar no mapa, a presença aqui de um artista do porte de Goeldi, fossem quais fossem os motivos e as circunstâncias, manifestava a compulsão oposta – a de sair do mapa.
Resumo
A força de Goeldi reside justamente na capacidade de fazer o mundo confirmar o seu Eu, dobrar-se à sua verdade singular — o que ele nos apresenta, próximo e patente, é um real casual e insólito, sóbrio e patético, vagamente povoado de personagens solitários e aflitos. E não é um registro, um comentário, a tarefa que se impõe ao Eu expressionista é literalmente a produção do real. Goeldi efetivamente submete a diversidade aparente, a fútil variedade da vida, a uma severa redução formal: o seu universo é decididamente metonímico, conforme a medida tangível do Eu.
Entre os cineastas pertencentes àquilo que se convencionou chamar de “Jovem Cinema Alemão”, Lotte Eisner considerava Werner Herzog o “mais alemão” deles. Deixando de lado por enquanto as implicações que a questão da nacionalidade envolve, parece-me interessante detectar as características da obra de Herzog que a conduziram a tal conclusão.
Aquilo que os anglo-saxões chamam “pão francês” é, na verdade, encontrado em toda a Europa latina; ele é a forma ancestral do pão, se o compararmos ao alimento industrializado embrulhado em papel celofane que é vendido nos supermercados do mundo ocidental sob o rótulo um tanto eufemístico de “pão”.
Resumo
Este “pão” industrial, que é responsável por quase todo o pão dos Estados Unidos e do Canadá, é também produzido e vendido na Europa, incluindo a latina. Hoje em dia, ele participa com menos de 10% do mercado, mas sua participação cresce gradativamente. Virá o dia, talvez, em que serão os franceses a comer desse pão. Quando isso acontecer tornar-se-á muito claro que o pão “francês” não era específico da França, nem de nenhuma outra região geográfica, mas de um particular modo de produção.
Se necessidade houvesse de caracterizar em apenas uma frase a performance da economia brasileira nos últimos anos, poderíamos dizer que “dançando por entre a ortodoxia e a heterodoxia a economia brasileira está por completar, ao final deste 1987, quase uma década de turbulência generalizada”.
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De fato, à sui generis heterodoxia delfiniana, que vingou de meados de 79 ao final de 80, seguiu-se, de forma abrupta, uma recessão inimaginável para os padrões históricos do país, graças à regência, pelo mesmo maestro, de uma política econômica que pode ser caracterizada, sem reparo algum, como francamente ortodoxa. Com a entrada em cena da Nova República, e depois de um período de completa indefinição, a heterodoxia impõe-se vitoriosa e parece acenar com o fim de todas as mazelas. Contudo, a melodia heterodoxa revela-se, graças à incapacidade dos regentes, um verdadeiro canto de sereia, de modo que, em menos de um ano, viaja-se do céu ao inferno e a ortodoxia sorri triunfante.
As originais circunstâncias que envolveram a independência do Brasil marcaram fundo a identidade cultural do país e a legitimidade política que serve ainda hoje de fundamento às classes dirigentes. A invasão de Portugal pelas tropas francesas de Junot em 1807 provoca a transferência da corte portuguesa para a colônia brasileira, fato sem precedentes na moderna história colonial.
Resumo
Fato significativo, José Bonifácio de Andrada e Silva, o herói de nossa independência, é um alto funcionário do governo metropolitano, um homem de gabinete e de negociação. Pouco tem em comum com os tenentes do exército hispano-americano — epígonos dos generais da Revolução Francesa — que lideram as insurreições emancipadoras dos países latino-americanos. Outra particularidade, o Brasil se organiza na forma de um império constitucional. Em vez de afirmar sua adesão às formas especificamente americanas de governo, o império se dissocia das repúblicas que nascem nas Américas para marcar sua solidariedade com os princípios monárquicos propagados pela Santa Aliança.
Tudo começou como se fosse brincadeira, diz a letra de uma canção popular, e nada mais real e acertado para designar o movimento do Partido Comunista do Peru Sendero Luminoso. Realmente, é necessário reconhecê-lo, tudo começou como se fosse brincadeira. Algumas torres elétricas aqui, algumas bombas acolá não pressagiavam nem prefiguravam as proporções geométricas que haveriam de alcançar as ações, as quais, de províncias de Ayacucho, de cuja existência ninguém sabia, expandiram-se a localidades vizinhas, chegando a ter na atualidade uma inquietante presença a nível nacional.
Resumo
Hoje, o nome de Sendero Luminoso é mundialmente conhecido. Mas grande parte de seu pensamento político é desconhecido, pois mantém um extremo e cerrado hermetismo. Em geral, eles editam um ou outro folheto, de claras tendências literárias, com uma linguagem metafórica, simbólica e que, muitas vezes, parece não transluzir nada. Esta não é uma característica nova, mas sim a continuação de um estilo de trabalho partidário. Seu sistemático silêncio permite que as tentativas de explicação, enquanto fenômeno político, sejam muitas.
Verão de 1986. Em Sapucarana (região agreste de Pernambuco), 148 produtores receberam, cada um, uma cabra, mediante o compromisso averbado de, quando da primeira cria, passar adiante o cabrito a outro produtor, só então tornando-se proprietário da cabra. Àquele que recebesse a cria caberia, por sua vez, igual obrigação para com um terceiro, e assim sucessivamente. Povoar-se-ia dessa forma o Agreste de bodes e cabras, tão fortes e resistentes às adversidades nordestinas quanto o próprio matuto daqueles agrestes. Verdadeiro milagre da multiplicação partindo desse parco capital inicial.
Resumo
Verão de 1987. Sapucarana, Sapucaia de outros tempos, arde ao sol das 2 horas da tarde e quase ninguém circula na rua principal, recémcalçada. O silêncio daria para ouvir o voar de uma mosca, e não se ouve nem um chocalhar de cabras soltas, tão comum naquelas paragens. Onde estaria o programa do governo? É. Primeiro, que as cabras eram sertanejas, e não se adaptaram muito bem ao clima agrestino. Depois, aquele foi um inverno longo, principiando já em fevereiro, dificultando mais ainda aquela criação tão afeita aos rigores da seca. Morreram muitas cabeças. E ainda teve o caso daquele rapaz que na hora que fez o repasse da cria, legítimo proprietário dali em diante, levou a cabra para a feira, vendeu e com o dinheiro comprou um passarinho. Comprou o passarinho na feira de Bezerros e quando chegou de volta a Sapucaia, trocou o bicho numa peixeira e num relógio usado.
Quero aproveitar a oportunidade que me deram de apresentar a comunicação introdutória deste congresso para fazer uma exposição analítica e não uma proposta, ou seja, mais uma análise conceituai e de esclarecimento do contexto em que se inscreve o conceito de reformismo do que uma proposta política.
Resumo
Antes de responder à questão que me foi colocada — por que somos reformistas? —, creio que devo me referir a uma pergunta anterior: em que sentido podemos nos considerar reformistas? Esta questão prévia nasce antes de tudo da observação de que também o “reformismo”, como todos os “ismos” políticos (e filosóficos), é um termo de múltiplos significados; e nasce, em segundo lugar, e sobretudo, da constatação de que no âmbito de uma mesma tradição, que é a do pensamento e da práxis socialista, o reformismo de que falamos hoje provavelmente não é o mesmo a que se referiam nossos pais.
Ao reagir ao comentário crítico feito por José Arthur Giannotti de meu livro O Marxismo Ocidental, no rico número 18 de Novos Estudos CEBRAP (setembro de 1987), faço questão de render homenagem ao tom e espírito com que o autor vaza sua crítica. Conforme assinala o próprio Giannotti, pensador paulista cujo esforço de reflexão sempre respeitei, “uma imprensa urubu tem-se alimentado da carniça dum confronto de baixo nível que oculta o embate de idéias com golpes visando destruir a legitimidade e a integridade do adversário”
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Os comentários de Giannotti distribuem-se em três planos. No primeiro, o professor contesta certas leituras minhas, alguns pontos da história da filosofia que, segundo ele, eu teria interpretado erroneamente. Num segundo plano, descreve — e julga — sinteticamente a natureza de meu projeto analítico no livro mencionado. Finalmente, num terceiro plano, caracteriza meu ensaísmo filosófico, atribuindo-lhe determinada posição entre os “gêneros” hoje praticados pela produção filosofante entre nós.
“Imponência, brilho, inquietação, falta de unidade orgânica, disparidade e excesso, unidos a traços como individualidade, espontaneidade, encantamento e sofisticação”: com estas palavras, Gerard Béhague apresenta a obra de Villa-Lobos no seu Music in Latin America. An Introduction (Prentice Hall, New Jersey, 1979). A lista é mais desordenada do que o objeto que busca descrever, mas é muito representativa de uma postura comum na abordagem tanto da obra de Villa-Lobos quanto da de tantos outros “irregulares” da música deste século — se dá por assegurada a falta de unidade na obra de um autor para, em seguida, poder mostrá-la em fragmentos, recortando apenas aquilo que interessa a um juízo preestabelecido. Em lugar da reconstrução de um percurso, teremos uma antologia de bons momentos, de inspirações felizes isoladas cuidadosamente do conjunto da obra.
Resumo
Creio, ao contrário, que seja necessário descrever as evoluções estilísticas no seu todo, como um processo no qual mesmo os aspectos desiguais e as mudanças bruscas têm o seu significado. Se os métodos de análise de que dispomos não nos permitem reconhecer o sentido de uma evolução musical, são estes métodos que certamente devem ser reconsiderados. São muitos os autores deste século classificados comumente como “desiguais”, “ecléticos” ou simplesmente “excêntricos”: Villa-Lobos, Charles Ives, Henry Cowell, George Antheil, Alberto Savinio…