Há pouco tempo, voltando de Caracas, viajei ao lado de alguns deputados do PDS que haviam estado em Cuba e conversavam a respeito. Quando me dei conta do assunto e de quem eram os vizinhos naturalmente fiquei atento, à espera de revelações. Não foi preciso apurar o ouvido, pois eles falavam alto de propósito, para o avião inteiro escutar. Eram do tipo que divulga as irregularidades que pratica, sem o que talvez estas ficassem incompletas. Não lhes bastava ser deputado, furar fila e alfândega, queriam que os outros soubessem disso. Os demais passageiros suportavam calados a fuzarca de seus representantes, que eram os únicos fora-da-lei ostensivos a bordo.
Resumo
É fato que a baixa do socialismo está um pouco em toda parte, alimentada pelas barbaridades cometidas em nome dele, pelo pouco lustre ideológico dos países de seu bloco, pelo desprestígio do marxismo nas universidades francesa, alemã e americana, de que nos vem a inspiração, e pela falta de uma análise convincente da atualidade mundial. Localmente, além da dúvida deixada pelas derrotas sucessivas de 64 e da política clandestina, há também o avanço do capital, que impregnou a imaginação popular e de classe média numa escala que é nova, tornando mais irreal a reflexão sobre modificações sociais profundas. Entretanto, se em tudo isso pode haver razões para descrer do socialismo, e não falta quem pense assim, não há razões para não falar dele, que, até segunda ordem, é parte da realidade.
O historiador pode enfrentar o problema do recorte cronológico, ou antes, da periodização de seu objeto de análise. Pois é claro que a delimitação temporal flutua, alargando-se ou se contraindo segundo a concepção que se encampe do fenômeno a ser estudado. E de fato, como indica a mais recente e alentada obra de conjunto sobre a história da independência do Brasil, a historiografia, desde o início, apresentou essa variação, seja na datação da abertura do processo, seja na de seu encerramento; ora englobando todo o período de “D. João VI no Brasil” e levando o estudo até os limites do período regencial, ora restringindo-se aos acontecimentos entre 1821 (volta do rei para a Europa) e 1825 (tratado de reconhecimento).
Resumo
Cumpre portanto explicitar, ainda que sinteticamente, a estrutura que se desagrega e a nova configuração que se vai formando, para situar e tentar compreender o processo de passagem, isto é, o movimento da independência. Examinados isoladamente e em si mesmos, os eventos que levaram à separação entre a colônia e a metrópole, sem enquadrálos no contexto maior de que fazem parte, têm dado lugar a uma visão do processo em que o acaso ganha importância, ou os “erros” ou “acertos” dos governantes passam a ser elementos decisivos de compreensão.
A novela “A construção” foi o canto de cisne de Franz Kafka. Ele começou a escrevê-la no outono de 1923, em Berlim, deixando-a inacabada. Segundo um depoimento de Dora Diamant, a última companheira do escritor – e que o assistiu até a morte, ocorrida num sanatório de Kierling, subúrbio de Viena, em 3 de junho de 1924 – faltavam apenas alguns parágrafos para a história chegar ao desfecho, que seria a derrota final do bicho-narrador e personagem. Tradução de Modesto Carone.
Resumo
Embora as interpretações variem, existe um certo consenso no sentido de que esta fábula sombria, misto de solilóquio e peripécia contada, mantém laços de pertinência discerníveis com a realidade pessoal e histórica do romancista. Pois foi em 1923 que Kafka, depois de hesitações que se tornaram lendárias, conseguiu se desligar de Praga e da família e se estabelecer, por conta própria e ao lado de Dora, em Berlim-Steglitz.
Júlio Cortázar queria escrever como um músico que improvisasse: como os grandes artistas do jazz, que tanto amava, refazia, com lucidez cortante, a cada take, a cada texto, o percurso decisivo numa espiral ilimitada, insatisfeito, sempre perseguidor. Dessa busca fizeram parte a invenção constante, o trajeto labiríntico, os impasses, os riscos de autodestruição, o silêncio, as narrativas por fim resgatadas do naufrágio. Hoje elas nos contam um pouco da sua história e delineiam a fisionomia definitiva de sua obra de narrador. Uma obra ostensivamente plural e, no entanto, de uma admirável coerência interna. Presa ao impulso central, mas aberta à irradiação do sentido: sondagem, tateio, desejo de encontro.
Resumo
Ele era extremamente doce e quase nada confessional. Não gostava de falar de si mesmo, mas sabia calar-se e escutar. Falando, o silêncio sempre o rodeava um pouco.
Por momentos, eram verdadeiros encuentros a deshora, como uma vez ele os chamou. Irrompia um tempo diverso, contestação radical da tirania dos relógios. Então sim, então havia, para ele, passagem: uma súbita ruptura da percepção rotineira da realidade se produzia. E com ela, a suspeita de uma ordem outra, como se o mundo se mostrasse inesperadamente fora dos eixos, desquiciado, como lhe agradava dizer, numa revelação.
Qualquer um que tenha vivido os momentos que precedem a queda de uma ditadura, quando a democracia torna-se uma possibilidade real, há de lembrar a tensão quase constante, a alternância de esperanças e medos, os acessos de entusiasmo e a dor das frustrações. Cada etapa apresenta-se frágil e ainda assim nada parece inatingível. Mas pode-se apreender um momento, um limiar, a partir do qual o processo é irreversível. De repente, a ditadura não existe mais e a democracia toma o seu lugar.
Resumo
O aparato de poder autoritário tem a capacidade de impedir a ocorrência de certos resultados políticos através do exercício do controle sobre a sociedade não apenas ex ante, mas também ex post. Nessa interferência ex post, o aparato pode alterar tanto as situações resultantes do funcionamento de instituições autoritárias, quanto aquelas que têm outras origens. Em outros termos, num sistema autoritário, o aparato de poder exerce não só controle processual, mas também controle substantivo sobre as decisões.
Por mais que se discorde de Mannheim e de suas idéias referentes a uma suposta freischwebende intelligenz (intelectuais não afetados por interesses sociais), não se pode deixar de reconhecer que seus escritos sobre sociologia do conhecimento e os “Ensaios de Sociologia da Cultura” (1955) permanecem ricos e estimulantes.Com efeito, em seu ensaio “Sobre o Problema da Intelligenzia” — publicado cerca de vinte anos depois de “Ideologia e Utopia” (1936), em resposta a críticas de todos os quadrantes — Mannheim nos esboça uma linda análise histórico-sociológica sobre a constituição e os fundamentos do prestígio atribuído às profissões, da baixa Idade Média aos nossos dias.
Resumo
Mannheim observa que a valorização das ocupações intelectuais emerge historicamente vinculada aos status social: o antigo contraste entre trabalhos físicos (opera servilia) e mentais, é substituído pela nova diferenciação entre profissões livres e ofícios. As primeiras designam ocupações como as artes, as ciências e a religião, por serem, todas elas, atividades sem remuneração.
A invenção da modernidade é contemporânea ao nascimento da fotografia. Sintoma e efeito tanto quanto causa, a própria fotografia não é mais que um dos meios graças aos quais se realiza o surgimento da modernidade: revolução industrial, cidade grande, comunicação de massa, cientismo, e o Spleen, o isolamento, a alienação, o exílio. A fotografia atende ao sonho do positivismo: guardar em conserva e reproduzir a facticidade. Ela efetiva o desencantamento do mundo: a História, o imaginário, ritual, desmitificados, ficam reduzidos a funções decorativas e cedem à finitude, ao efêmero.
Resumo
Colocando as coisas à distância, imprimindo nelas a marca da ausência, a fotografia as transforma em objetos de desejo e de nostalgia. É na marca mesma da privação, da alienação e do exílio que a fotografia pode alcançar sua própria dimensão estética, moderna. Mas que as práticas artísticas antigas fossem irredutíveis à reprodução só se tornou evidente no dia em que a possibilidade da reprodução se realizou. Então essas práticas encontraram sua liberdade absoluta: o cuidado com o “fazer” e com o “material”. A mimese pretendia alcançar a essência do “real”, as práticas artísticas, em sua modernidade, estão em busca de sua própria realidade, de sua própria essência. Tornaram-se reflexivas.
Há pouco mais de sete anos, no dia 15 de outubro de 1976, reunimo-nos neste mesmo lugar para o funeral de 57 cubanos assassinados de maneira vil na sabotagem aérea de Barbados, realizada por homens que tinham sido treinados pela Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos. Hoje, viemos de novo para prestar nossas homenagens a 24 cubanos que morreram em Granada, outra ilha próxima de Barbados, em consequência das ações militares dos Estados Unidos.
Resumo
Bishop e Granada era profunda e nosso respeito pelo país e a sua soberania tão irrepreensível, que jamais nos arriscamos sequer a emitir opiniões sobre o que se fazia ali e sobre como era feito. Aplicávamos a Granada o mesmo princípio que observamos em relação a todos os países e movimentos revolucionários: absoluto respeito à sua política, aos seus critérios e às suas decisões; expressão de pontos de vista sobre qualquer assunto, somente quando nos é solicitada. O imperialismo é incapaz de compreender que o segredo de nossas excelentes relações com os países e movimentos revolucionários do mundo se baseia exatamente neste respeito.