Uma tarde com José Arthur Giannotti

Homenagem


Por Daniel Augusto
7 ago. 2021

José Arthur Giannotti recebeu-me em sua casa no Morumbi em outubro de 2019. Professor emérito do Departamento de Filosofia da USP, fundador do Cebrap, autor de vários livros importantes, entre dezenas de outras realizações, era um convidado fundamental para a terceira temporada da minha série Incertezas críticas.

Ao longo das três temporadas existentes até o momento, a série se propôs a apresentar questões contemporâneas relevantes sobre a filosofia, as artes, a política, a economia, as relações internacionais, a sociedade e a história, sempre em busca de abordagens que não se esgotem na data de sua filmagem e exibição. É destinada aos que não conhecem a obra dos entrevistados e àqueles que buscam exposições orais dos conceitos deles.

José Arthur Giannotti em fotografia de Rodrigo Menck 

Nas duas temporadas iniciais, conversei com Zygmunt Bauman, Noam Chomsky, Jonathan Crary, Robert Darnton, Georges Didi-Huberman, Axel Honneth, Jacques Rancière, Elisabeth Roudinesco, Richard Sennett, Tzvetan Todorov, Alain Touraine, entre outros. Na temporada atual, dediquei-me a expoentes do pensamento no Brasil, como Paulo Arantes, Eduardo Viveiros de Castro, Marilena Chaui, Olgária Matos, Renato Janine Ribeiro, José Miguel Wisnik, entre outros.

Apesar das muitas entrevistas para a série, da preparação paciente da pauta e da releitura de várias obras e artigos seus, eu estava apreensivo para o encontro com Giannotti. Conheci o seu trabalho na década de 1990, quando eu tinha vinte e poucos anos, jovem de tudo, primeiro para compreender a história do “departamento de filosofia de ultramar” [1], depois pelos seus artigos na imprensa e, finalmente, pelos livros. Também ouvi muito sobre a sua personalidade por intermédio de pessoas em comum e discuti bastante com amigos sobre questões que o professor disparou para o debate público, como o requerimento de uma “zona de amoralidade” para a prática das “leis guardiãs que regem a pólis” [2], sobre suas críticas a Marx, sua participação no célebre grupo que estudou O capital a partir de 1958, assim por diante. De algum modo, Giannotti era um estranho íntimo, como muitos dos meus entrevistados, mas – no caso dele – eu estava preparado para tomar uns safanões intelectuais: possivelmente porque, por mais que eu fosse leitor dele, sempre considerei alguns de seus críticos – como Paulo Arantes, Marilena Chaui, Ruy Fausto e Roberto Schwarz – mais esclarecedores para o que tento pensar (o que nunca impediu, é claro, que eu lesse Giannotti com atenção).

Toda a minha inquietação logo se dissipou quando cheguei em sua casa, localizada numa rua isolada e silenciosa no Morumbi. Caminhando sozinho por uma construção de inspiração modernista, com grandes janelas e uma escada imponente na entrada, recebeu-me gentil e bem-humorado. É como se, desde o início, ele soubesse que em algum momento teríamos argumentos opostos, mas isso não impedia em nada uma boa conversa: pelo contrário, parecia estimulá-lo (o que não é pouco nos tempos atuais).

José Arthur Giannotti em fotografia de Rodrigo Menck

Antes da entrevista, o professor pediu-me para falar um pouco sobre os temas da filmagem. Isso é inabitual na série, uma vez que a maioria dos convidados se dispõe a filmar sem prévias da pauta, que é um método que eu prefiro. No entanto, não foram muitos os acertos e não passei as perguntas antecipadamente: negociamos apenas que a conversa seria dividida em duas partes, uma dedicada à filosofia e outra à política [3]. Lamentei, em especial, a exclusão de O jogo do belo e do feio [4], cuja exposição oral me interessava para esclarecer pontos do livro. Parte da entrevista está reproduzida abaixo, separada por temas.

Ao final da filmagem, ainda passamos um bom tempo conversando. Não fosse a equipe me chamar para ir embora, tive a impressão de que poderíamos passar horas ali. Na parte não gravada da entrevista, falamos sobre a atuação de João Doria no PSDB, a candidatura de Fernando Haddad à Presidência, a atuação de Flávio Dino, o período presidencial de seu amigo Fernando Henrique Cardoso, entre outros tantos assuntos. Especialmente nessa oportunidade, ele mostrou-me algo que todo filósofo deve ter: a disposição de ouvir pacientemente a argumentação do outro. Não parecia alguém acomodado ao que já disse, mas aberto ao argumento oposto e propenso a repensar momentos de sua obra, por mais que seu interlocutor ainda tateasse em assuntos sobre os quais ele já refletira densa e extensamente. Naquele período que durou até o início da noite, surpreendeu-me dizer que não escreveria mais livros depois de Heidegger/Wittgenstein [5]: a velocidade, a precisão e a ironia do seu pensamento sinalizavam-me que nele ainda existiam muitos outros livros em gestação.

Fazer as entrevistas para a minha série é o modo que encontrei na vida para retribuir aos pensadores que me marcaram, seja ao tentar colocar seus conceitos em uma camada de circulação na qual talvez ainda não estejam, seja ao enviar a entrevista para eles (que é meu modo de lhes agradecer pelo que os seus livros me fizeram). Não imaginava que Giannotti seria um dos que eu não poderia enviar o programa: a morte, como ele diz na entrevista, é algo que todos sabemos que vai acontecer, mas ainda assim surpreende-nos como um raio. No entanto, ao saber que parte da entrevista será publicada no site da Novos Estudos, revista do Cebrap, instituição cuja trajetória é ligada a Giannotti, sinto que de algum modo o resultado da nossa conversa estará próximo dele.

Na televisão, a entrevista com o professor será exibida pela primeira vez em 14/10, às 20h30, no Canal Curta. A estreia da série será em 12/08, com uma conversa com Christian Dunker. Assino o roteiro, a direção e a edição da série. A produção é da Grifa Filmes.

José Arthur Giannotti em fotografia de Rodrigo Menck

O que é a filosofia?
O nome dela é pacífico: é o “amigo do saber”. Mas é uma amizade tão profunda, e às vezes tão minuciosa, que dá encrenca. Porque, de imediato, você tem o outro que contesta, um outro que contesta o contestador, e com isso o saber humano se amplia enormemente. É como se fosse a lei de Darwin ao inverso. Em vez das gerações se multiplicarem pela carga genética, é você encontrar sempre um aparelho que destrua a carga genética. Então, o filósofo é sempre, em geral, aquele que está boiando no ar, e por isso que tem vários filósofos que se agarram aos regimes políticos e passam até a servi-los, como é o caso do Heidegger, que é um dos grandes filósofos do século XX. Ele, que tem uma posição extremamente crítica, embora altamente compreensiva, da história da filosofia, acabou acreditando que podia esclarecer até o movimento nazista. Como é possível que pessoas que leem Platão, Descartes, Pascal, Kant, de repente possam se vincular ao fascismo? Isso é coisa para pensar.

Qual o núcleo da filosofia?
A filosofia tem um núcleo muito especial. Por exemplo, você vai dizer que a física é o estudo do ser do átomo, da energia, assim por diante; que biologia é [o estudo de] como é o ser humano ou o ser animal, assim por diante. O núcleo da filosofia pergunta pelo ser. É um estudo que se desdobra nos limites do pensar e, ao mesmo tempo, dentro daquilo que a gente está pensando mais internamente.

A filosofia e os seus contrários
A filosofia sempre teve o seu contrário. O filósofo tem do outro lado o sofista. Se ele escreve sobre o ser, o sofista vai escrever sobre o nada. Se ele escreve sobre a Trindade, o herege vai escrever sobre outra religião. Então, nós temos sempre na filosofia o seu contrário. Pensando por enquanto ou até então. Mas, no mundo contemporâneo, o filósofo tem um outro lado, que é o insulto.

Lógica e linguagem
Depois de Platão e Aristóteles, basicamente, a filosofia foi de certo modo coroada pela lógica formal. Ora, os dois grandes filósofos do século passado, Heidegger e Wittgenstein, retiraram a filosofia do domínio da lógica. A coordenadora da filosofia agora é a linguagem. Isso é um passo extraordinário de diferenciação da filosofia antiga e a filosofia contemporânea. Por exemplo, no caso do silogismo: “todos os homens são mortais, Sócrates é homem, Sócrates é mortal”. Wittgenstein vai dizer [que] essa expressão tem sentido aberto. Isto é, a palavra não é apenas um lugar de determinação, mas ela é cercada de indeterminações. Por isso que ele fala que a palavra está em um jogo de linguagem. [Por exemplo,] um jogo de futebol. Um lance é correto ou incorreto diante de uma indeterminação fundamental para o lance.

Democracia e fascismo
Há um livro, O povo contra a democracia, mostrando que os sistemas antidemocráticos, como o fascismo e o nazismo, tiveram grandes apoios populares. E que, nesse mundo econômico em que nós vivemos, onde os empregos são cada vez mais informais [e] dependem cada vez mais de especialidades de conhecimento, você não tem mais a possibilidade de manter um trabalho e uma família tradicionais. […] De outro lado, você tem uma transformação impensável da sexualidade, pela simples razão que a pílula veio cortar a sexualidade da questão de geração. […] Hoje, não há mais nenhuma relação entre a sexualidade e a geração. Isso é um grande escândalo para as pessoas mais tradicionais e um escândalo maior para os crentes. Isto é, crente [como] aquele que tem um livro, seja este ou aquele, e que acredita que a verdade está lá. Aqueles que acreditam, por exemplo, que a verdade está na Bíblia.

Bolsonaro
Nós estamos num mundo em que a política é: eu e os outros. No Brasil, [temos] o ar guerreiro do presidente Bolsonaro, que está sempre em conflito. Ele vai para a ONU para criar conflito, ele entra para criar conflito, para identificar quais são os seus inimigos. Então, é uma política que aglutina um certo número de pessoas, que são incapazes de viver a modernidade, e transforma os diferentes em inimigos.

Política e guerra
Eu penso que a política e a democracia estão muito relacionadas à guerra. Clausewitz diz que a guerra era a continuidade da política. Eu diria que a política é a contenção da guerra. A política é o momento em que você vê o seu outro não mais como inimigo, mas como adversário. Numa democracia, uns ganham e outros perdem. Os perdedores não vão colaborar na execução das tarefas dos ganhadores. Se eles puderem, vão puxar o tapete. Isso é normal. A democracia não exclui o conflito. Usando uma palavra entre aspas: ela “civiliza” o conflito. Ora, o que está acontecendo no mundo hoje é que, em certas regiões, nós temos a política como incentivo do conflito.

Democracia ou violência
Ou nós jogamos todas as nossas fichas na democracia, e trabalhamos para que as pessoas com as quais nós não concordamos possam conviver conosco, ou nós vamos para um fortalecimento do populismo e do fascismo e, em consequência, teremos muita violência. Aliás, o governo promove a violência, ao – por exemplo – distribuir armas à vontade. E [ao] usar os novos meios de comunicação – Twitter, Facebook – como canais para se dizer impropérios. A situação da democracia é, portanto, muito delicada. A única coisa que nós podemos fazer é começar a democracia em casa, com os nossos amigos, com o nosso trabalho, e assim por diante. Isto é, criando um ambiente de generosidade que não permita a violência como forma de governar. Enfim, não estou pessimista, mas já não gostaria de morrer sem que alguma luz se abrisse nesse túnel.

Filosofar é aprender a morrer?
Ninguém aprende a morrer. Morrer é algo que a gente sabe que vai acontecer, mas é como um raio que caísse do céu. E, às vezes, morrer é um sofrimento enorme. O que eu espero é que o raio caia rápido e que eu não tenha esse período de sofrimento.

Como se dá a vida no capitalismo atual?
Se dá justamente em um capitalismo que é um capitalismo de conhecimento. Que depende de novos produtos, novas tecnologias, assim por diante. Portanto, tudo o que impedir o conhecimento é um empecilho à riqueza. Mas, como nós sabemos que esse processo acumula riqueza e cria maiores desigualdades, temos que criar mecanismos democráticos de distribuição de riqueza, de proteção das pessoas mais pobres, de proteção das pessoas diferentes, de proteção do próprio planeta. Esses são os desafios que estou vendo na minha velhice.


[1] Como explica Paulo Arantes, a designação “departamento francês de ultramar” para o Departamento de Filosofia da USP é “uma tirada atribuída a Foucault quando passou por aqui em 65” (O fio da meada. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 273).

[2] “O dedo em riste do jornalismo moral” (Folha de S.Paulo, 17/05/2001).

[3] Para o leitor não-iniciado na obra de Giannotti, recomendo dois livros introdutórios nos quais as suas abordagens mais recentes sobre a filosofia e a política aparecem didaticamente. Sobre a filosofia: Lições de filosofia primeira (São Paulo: Companhia das Letras, 2011). Sobre a política: Os limites da política (São Paulo: Companhia das Letras, 2017), no qual Giannotti dialoga com Luiz Damon Santos Moutinho.

[4] GIANNOTTI, José Arthur. O jogo do belo e do feio. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

[5] GIANNOTTI, José Arthur. Heidegger/Wittgenstein. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

Daniel Sampaio Augusto (em artes, Daniel Augusto) é doutor em filosofia pela USP e mestre em literatura brasileira pela mesma instituição. Atua como diretor audiovisual e professor. É autor do romance Nem o sol nem a morte (Nós, 2019). Publicou uma crítica na Novos Estudos 69, de julho de 2004.

Crédito das imagens: Rodrigo Menck.