Dispositivo de racialidade: a filosofia antirracista de Sueli Carneiro

Resenha

Por Vinícius Santana

15 dez. 2023

 

 

CARNEIRO, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

 

Depois de 18 anos de sua defesa, a tese de Sueli Carneiro finalmente é publicada como livro sob o título de Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não ser como fundamento do ser (doravante Dispositivo de racialidade). Apesar da demora, as ideias de Carneiro já circulavam e tinham força entre segmentos dos movimentos negros e de mulheres negras. A primeira vez que entrei em contato com elas foi no curso de formação do Núcleo de Consciência Negra da Unicamp em meados de 2019. A partir daí, procurei a tese e outros artigos de Sueli Carneiro para melhor compreender o termo epistemicídio, um de seus principais conceitos.

Dividido em três partes, Dispositivo de racialidade tem como proposta analisar o racismo e as relações raciais entre brancos e negros no Brasil sob uma perspectiva filosófica. Fruto de uma reflexão que integra a “ação teórica e a ação prática de tipo militante sobre a questão racial no Brasil”, a obra apresenta um olhar inovador, direcionado tanto à opressão racial quanto aos modos de resistência estrategicamente adotados pelos movimentos negros e de mulheres negras brasileiras (Carneiro, 2023, p.14). Na primeira parte do livro, “Poder, saber e subjetivação”, a filósofa demonstra a existência de um dispositivo de racialidade no Brasil que, ao articular poderes, saberes e modos de subjetivação, produz formas de assujeitamento e exclusão sobre a população negra brasileira enquanto reproduz a hegemonia branca nos espaços de poder (Carneiro, 2023, p.13). Ao dialogar com autores e autoras afro-diaspóricas (como Charles Mills, Isildinha Baptista Nogueira e bell hooks) e com a tradição filosófica ocidental (sobretudo Michel Foucault, do qual retira a noção de dispositivo), Carneiro oferece uma potente descrição das relações de poder que caracterizam o racismo brasileiro, inserindo-se em meio à filosofia da raça e à filosofia política. Em linguagem carneiriana, o racismo emerge como um dispositivo de poder nas sociedades multirraciais de passado escravocrata, nas quais “se amalgamam as contradições de raça e classe” (Carneiro, 2023, p. 58). Essa amálgama expressa que o racismo tem um papel central na formação da sociedade brasileira desde o período colonial e impactou a própria estrutura de classes, aprisionando a população negra nas camadas mais baixas da sociedade e garantindo os privilégios da branquitude. Carneiro afirma em entrevista concedida a Mano Brown que “nós somos pobres porque somos negros” (Mano a mano, 2022). A pobreza se torna, segundo Carneiro, “condição crônica da existência negra, na medida em que a mobilidade de classe torna-se controlada pela racialidade” (Carneiro, 2023, p.58). A pobreza e a riqueza são, portanto, racializadas.

O dispositivo de racialidade nos permite compreender a construção das alteridades durante o colonialismo europeu. Com especial atenção à alteridade negra, Carneiro argumenta que esse dispositivo funda uma ontologia da diferença ao promover uma divisão entre o Eu e o Outro, na qual o Eu se afirma a partir da negação e da inferiorização do Outro (Carneiro, 2023, p.31). Nessa construção, o Eu se afirma como naturalmente superior e se coloca como paradigma de humanidade e ideal de Ser. Assim, o Outro – no caso brasileiro, pessoas negras e indígenas – passa a ser tanto considerado irracional, incapaz de alcançar a moralidade, a cultura e a civilização, quanto enclausurado no estatuto do não-ser. Por isso, o dispositivo de racialidade, segundo Carneiro (2023, p. 31), “também produz uma dualidade entre positivo e negativo, tendo na cor da pele o fator de identificação do normal, e a brancura será sua representação”. Dessa dualidade resulta a desumanização do Outro que legitima as políticas estatais brasileiras de extermínio daqueles considerados indesejáveis (como a Lei da Vadiagem e as políticas imigratórias no período pós-abolição) em prol da segurança, desenvolvimento e vida da brancura.

Em tempo, destaco um dos diálogos mais importantes do livro: aquele entre Carneiro e o filósofo afro-jamaicano Charles Mills. Lançado pela primeira vez em 1997 e publicado no Brasil somente em 2023, 25 anos depois, O contrato racial, de Mills, foi ignorado por grande parte da intelectualidade branca acadêmica, especialmente na área de filosofia. Não à toa, Mills identificava que a filosofia, “demográfica e conceitualmente, é uma das mais ‘brancas’ das ciências humanas” (2023, p. 34). De maneira pioneira, Carneiro encontra na teoria d’O contrato racial um apoio conceitual para examinar a genealogia do poder branco a nível local e global. A filósofa afirma que o dispositivo de racialidade se constitui, antes de tudo, em um contrato entre brancos fundado na cumplicidade em relação à subordinação dos não-brancos, em geral, e negros, em particular (Carneiro, 2023, p. 138). A historicidade do contrato diz respeito ao colonialismo europeu (em especial, no caso brasileiro, à colonização portuguesa) e ao imperialismo europeu. Assim, o contrato racial estrutura o dispositivo de racialidade para manter os privilégios materiais e simbólicos da branquitude. Para Mills, na medida em que o contrato racial funda um Estado racial destinado à reprodução da ordem racial, no qual somente os racialmente hegemônicos serão considerados pessoas plenas, dotadas de liberdade e igualdade, as pessoas não-brancas serão objetificadas e reduzidas à categoria de subpessoas. Essa divisão entre pessoas plenas e subpessoas, que relega as pessoas não-brancas a um status moral e jurídico inferior, é denominada por Mills de ontologia social particionada (Mills, 2023, p. 50). Essa divisão nos remete à ‘ontologia da diferença’ de Carneiro e é o que fundamentará, aos olhos dela, a relação de desigualdade entre brancos e negros no Brasil.

Quando não há interesse em subordinar ou disciplinar aqueles lidos como racialmente inferiores, o dispositivo de racialidade atua em conjunto com o biopoder para viabilizar técnicas de extermínio do Outro indesejável. Baseado no contrato racial e funcionando na lógica racista do biopoder, o dispositivo de racialidade determina quem deve viver e quem deve morrer, inscrevendo a negritude “sob o signo da morte” enquanto promove a manutenção da vida da branquitude (cf. Carneiro, 2023, p.65). Esse extermínio do Outro é permitido pelo racismo, que emerge como um mecanismo legitimador do direito do Estado de matar por ação ou omissão. Assim, antes do conceito de necropolítica se popularizar, Carneiro já oferecia uma abordagem filosófica para uma denúncia histórica dos movimentos negros brasileiros: o genocídio implementado pelo Estado brasileiro contra a população negra e as populações indígenas.

Além do assassinato físico, Carneiro afirma que houve, ao longo da modernidade ocidental, um epistemicídio contra a racionalidade, cultura e civilidade do Outro. No caso brasileiro, as populações africanas e indígenas sofreram uma deslegitimação de seus saberes ancestrais desde a colonização portuguesa. Focalizando sua análise no epistemicídio negro, Carneiro o define como um processo persistente de produção da indigência cultural e de inferioridade intelectual (Carneiro, 2023, pp. 88-89). Ao “sequestrar” a razão negra, o epistemicídio efetua uma tentativa de anular a capacidade das populações africanas e afro-diaspóricas de produzir e portar conhecimento, prestando-se à uma “razão racializada” que identifica o continente europeu como o único território epistêmico legítimo (Carneiro, 2023, p.91). No pensamento carneiriano, o epistemicídio alimentará o imaginário social sobre a suposta “não-educabilidade” e irracionalidade de pessoas negras.

A crítica de Carneiro à razão racializada eurocêntrica e à deslegitimação dos conhecimentos africanos e afro-diaspóricos nas universidades brasileiras permite tecer um diálogo entre o conceito carneiriano de epistemicídio e as teorias decoloniais. Apesar de filósofa não mencionar a noção de decolonialidade em Dispositivo de racialidade, considero, em concordância com Juliana Bartholomeu (2020, pp.8-9), que a autora se aproxima dessa corrente na medida em que vincula o colonialismo europeu com a hegemonia branca na produção de conhecimento. A abordagem inovadora de Carneiro traz importantes reflexões sobre a necessidade de ampliar os nossos horizontes epistêmicos para além do Norte Global.

Carneiro afirma que o dispositivo de racialidade dificulta a mobilidade social coletiva da população negra ao excluí-la ou subordiná-la no campo da educação formal (Carneiro, 2023, p.106), que é o principal palco de operação do epistemicídio. Em diferentes momentos do percurso de formação educacional, o racismo se faz presente nas relações sociais, muitas vezes minando a autoestima intelectual de pessoas negras e excluindo-as da escola. Além disso, o ocultamento das contribuições de pensadores negros ao patrimônio intelectual da humanidade e a invisibilização da memória coletiva da luta global contra o racismo são sintomas do epistemicídio que reforçam a naturalização da passividade e inferioridade da população negra. Esses fatores, em conjunto, fazem com que a escola se torne, nos termos de Carneiro, “um dos operadores da dominação e da ‘fabricação de sujeitos’. Sujeitos com sentimento de superioridade e inferioridade” (Carneiro, 2023, p. 111). As conquistas das leis nº 10.639 – subsumida atualmente na lei nº 11.645 – e a nº 12.711, a Lei de Cotas, se mostram importantes diante desse diagnóstico, pois dão um passo em direção tanto à reformulação dos conteúdos ensinados quanto ao acesso e a permanência da população negra na educação formal.

Outro ponto que merece ser ressaltado em Dispositivo de racialidade é o modo pelo qual Carneiro analisa a dinâmica da opressão racial sem omitir as resistências negras antirracistas. Se, de um lado, o dispositivo de racialidade nos exclui e subordina a população negra brasileira, de outro, nós construiremos coletivamente formas de resistência e de luta contra o racismo. Reconhecendo a “indignidade de falar pelo outro”, Carneiro traz, na “Parte II – Resistências”, testemunhos de militantes ativos dos movimentos negros e de mulheres negras que fornecerão o conteúdo das reflexões filosóficas tecidas na “Parte III – Educação e o cuidado de si”. As testemunhas – Edson Cardoso, Fátima Oliveira e Sônia Nascimento – carregam em seus depoimentos e trajetórias a memória coletiva da luta antirracista e antissexista, e expressam uma ética renovada que tem em seu cerne o “cuidado de si”. Nessa dimensão ética da filosofia prática carneiriana, o cuidado de si se confunde com o cuidado do outro a partir do reconhecimento entre os pares. Nas testemunhas, a dimensão ética se funde à dimensão política pois os sujeitos políticos desenvolvem sua consciência racial no cuidado “dos seus”. Essa consciência servirá como instrumento de luta política em vista da emancipação coletiva (Carneiro, 2023, p.338). Carneiro busca apresentar, em suas palavras:

através da voz de alguns sujeitos que encarnam com suas vidas uma memória ancestral, o processo tortuoso de construção da identidade, os enfrentamentos com o racismo e a discriminação, a tomada de consciência individual e da dimensão política e coletiva desse processo, a construção da crítica e da autonomia da ação e pensamento em relação aos efeitos de poder e saber produzidos pelo dispositivo (Carneiro, 2023, p. 139).

A luta contra o dispositivo de racialidade exige de nós uma série de estratégias. Em um país estruturalmente racista, no qual o “anjo da morte do biopoder do racismo” (Carneiro, 2023, p.138) espreita e a violência racial e o genocídio contra a população negra são naturalizados, manter-se vivo é o primeiro ato individual de resistência. A partir disso, outros desafios serão enfrentados, como a manutenção da saúde física, a preservação da capacidade cognitiva, o desenvolvimento de uma consciência racial crítica frente aos processos de exclusão racial, e, finalmente, a busca pelos caminhos da emancipação individual e coletiva. Para Carneiro, a permanência na escola e as ferramentas oferecidas pela educação formal, em especial a leitura, são fundamentais no desenvolvimento de uma consciência crítica, mas a filósofa entende que a autonomia de pensamento também se alimenta dos “processos de aprendizagem extraescolar” (Carneiro, 2023, p.326). A noção ampla de educação presente em seu pensamento nos permite entender que outros espaços, além da escola e da universidade, também cumprem, em certo sentido, um papel educacional. As escolas de samba, terreiros de candomblé, espaços de reunião dos movimentos negros e de mulheres negras, saraus, slams e encontros de hip-hop e funk propiciam uma formação baseada na transmissão de saberes que preservam nossa memória coletiva afro-brasileira e diaspórica. São desses elementos que recuperamos a autoestima intelectual, desenvolvemos a autonomia de pensamento e extraímos a seiva da resistência (Carneiro, 2023, p.308). A valorização da nossa negritude deve ser capaz de engendrar uma autonomia de pensamento mobilizadora de uma ação política em vista da emancipação coletiva.

A filosofia carneiriana presente em Dispositivo de racialidade nos oferece ferramentas teóricas valiosas não só para compreendermos a complexidade do racismo brasileiro em suas variadas dimensões, como também para criarmos estratégias coletivas de resistência e enfrentamento à opressão racial. Por isso, considero que a filosofia prática carneiriana pode ser nomeada como uma filosofia de resistência afro-brasileira, ou, se se quiser, uma filosofia antirracista. Se quisermos tecer formas de combate ao racismo e sexismo, ler e absorver a obra de Sueli Carneiro é se municiar de ideias que nos conduzem à ação política libertadora. Ler Sueli Carneiro é fundamental para fabularmos novos horizontes utópicos nos quais a liberdade e a igualdade serão direitos concretamente universalizados.

 

Vinícius Santana Cerqueira é mestrando em Filosofia (PPGF/IFCH) e membro do Grupo de Pesquisa em Filosofia Política da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP).

 

Referências

Bartholomeu, Juliana. “Escrevivências: as contribuições de Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez ao pensamento social brasileiro”. Pensata, v.9, n.2, 2020.

Carneiro, Sueli. Dispositivo de racialidade: a construção do outro como não-ser como fundamento do ser. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

Mano a Mano: Sueli Carneiro. Entrevistada: Sueli Carneiro. Entrevistadores: Mano Brown e Semayat Oliveira. São Paulo: MugShot, Boogie Naipe, 26 mai. 2022. Podcast. Disponível em: <https://open.spotify.com/episode/2eTloWb3Nrjmog0RkUnCPr?si=67c53e1879ca400f>. Acesso em: 10/9/2023.

Mills, Charles. O contrato racial: edição comemorativa de 25 anos. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

 

Crédidos da imagem: A filósofa e educadora Sueli Carneiro. Foto de Marcus Steinmayer. 19 Abr. 2021. Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sueli_Marcus_Steinmayer.png>. Acesso em: 15/2/2023.