Uma arquitetura de comando e conflito: a intervenção no Rio como um laboratório das disputas de poder

Carolina Christoph Grillo
Ensaio

“A intervenção é uma janela de oportunidades”, declarou em coletiva de imprensa o General do Exército Walter Souza Braga Netto, nomeado interventor federal na segurança pública do Estado do Rio de Janeiro. Durante a mesma entrevista, concedida no dia 27 de fevereiro, o general descreveu a “arquitetura de comando e controle e relações institucionais” e anunciou que a intervenção consiste num “trabalho de gestão”, isto é, no gerenciamento da integração e cooperação interagências com a finalidade de “recuperar a capacidade operativa dos órgãos de segurança e baixar os índices de criminalidade”. Afirmou ainda que o “Rio é um laboratório para o Brasil”, dando a entender que há uma expectativa de replicação desta experiência em outros estados. Mas que está sendo testado e por que o “laboratório” é justamente o Rio de Janeiro? O que esperar das ações anunciadas e a quem elas interessam?

Desde o decreto da intervenção federal, assinado em 16 de fevereiro, muito se debateu sobre sua necessidade, constitucionalidade e possíveis efeitos. Parte das críticas à intervenção evocam o fato de o Rio de Janeiro não estar entre os estados mais violentos do país, apresentando uma taxa de homicídios bem inferior à registrada em estados como Sergipe, Alagoas e Ceará[i]. Mas embora a taxa de homicídios seja considerada o principal indicador da violência, poucas são as políticas voltadas para a sua redução no Brasil. A escolha do Governo Federal por intervir na segurança pública do Rio de Janeiro evidencia que é o combate aos crimes contra o patrimônio que desponta como prioridade na agenda pública.

Foi a intensificação das ameaças à propriedade privada que motivou a intervenção federal no Rio.  Ao longo dos últimos cinco anos houve um aumento de 83% nos casos de roubo registrados no estado e de 200% na categoria dos roubos de carga, segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP/SESEG-RJ). Há uma forte pressão de entidades empresariais para que o Estado ofereça maior segurança patrimonial e seus representantes vêm se reunindo com autoridades da segurança pública e defesa para cobrar medidas de combate ao roubo de carga, em especial. Além de pautar notícias de jornal, a FIRJAN produziu o seu próprio relatório sobre o impacto econômico deste tipo de crime no estado, cujo prejuízo estimado é de 6,1 bilhões de reais[ii]. Algumas entidades ameaçam interromper o abastecimento do Rio de Janeiro.

Num contexto de crise econômica e fiscal, o governo estadual encontra-se impossibilitado de aumentar o orçamento da segurança pública, sem antes quitar compromissos em atraso. No entanto, a intervenção possibilita que recursos federais sejam diretamente alocados na segurança pública fluminense a despeito da crise. Em ano eleitoral, bilhões investidos numa pasta que atende aos apelos do empresariado e agrada a opinião pública parece realmente ser uma “janela de oportunidades”. Mas em que consistirão esses gastos e quais os efeitos esperados? Haverá uma diminuição dos roubos?

É de fato provável que haja uma redução temporária na incidência de roubos, contudo, no estado com a polícia mais letal do país – que matou 1.124 pessoas em 2017 –, os reforços no policiamento ostensivo produzem também uma expectativa de aumento das violações de direitos civis e humanos dos moradores de favelas e bairros periféricos. Esta preocupação tem ocupado o cerne da mobilização contrária à intervenção até agora. O emprego de tropas treinadas para a guerra em operações de combate ao crime comum urbano assevera tal receio, que ganha ainda mais força quando o Ministro Raul Jungmann aventa a possibilidade de usar mandados de busca e apreensão coletiva em favelas. Há uma preocupação com a utilização de armas de guerra contra a população e, dentre elas, as práticas de torção da Lei conhecidas como “lawfare”[iii].

O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) e do motorista Anderson Pedro Gomes, na noite do dia 14 de março, elevou todos esses receios ao ápice. Figura política em franca ascensão, Marielle era uma das mais ativas defensoras de direitos humanos no Rio de Janeiro. Presidia a comissão para monitoramento da intervenção na Câmara dos Vereadores e denunciava a violência da Polícia Militar em favelas. Sua execução silenciou uma mulher negra e favelada que representava a promessa de uma nova política, gerando uma profunda e ampla comoção pública. Algumas leituras aventam que a sua morte, além de atacar as minorias e ideais por ela representados e defendidos, integraria também o perverso jogo político das disputas de força entre grupos da Polícia Militar e o Gabinete da Intervenção. Disputas estas que foram deflagradas pelas recentes trocas de comando nas polícias. A morte de Marielle pode tanto se tornar a faísca da mobilização anti-intervenção como ser apropriada para reforçar a necessidade da intervenção. É muito cedo para entender os interesses em jogo e difícil prever seus desdobramentos.

Para compreender os conflitos institucionais vigentes, que podem ter relação com o assassinato de Marielle e Anderson, é necessário prestar maior atenção às declarações do general interventor. Ele ressalta o caráter gerencial da intervenção, que promete colocar em prática a já antiga proposta de integração das fragmentadas forças de segurança e operar a cadeia de comando e controle a partir do Exército, uma instituição que dispõe de ampla superioridade de meios com relação às demais. Tal arquitetura institucional foi um dos “legados” dos megaeventos realizados no país, para cuja segurança foi implementado o Sistema Integrado de Comando e Controle (SICC) e construídos os Centros Integrados de Comando e Controle (CICCs) nas cidades-sede da Copa e em Brasília. O CICC é a base da intervenção no Rio.

Os trabalhos de Bruno de Vasconcelos Cardoso[iv] sobre os preparativos de segurança para a Copa e Olimpíadas oferecem uma descrição do modelo “gerencial-militarizado” que está sendo colocado em prática. Trata-se da “implantação de um novo paradigma operacional baseado em princípios de gerenciamento provenientes do mundo empresarial, reelaborados e adaptados pelas Forças Armadas como uma doutrina militar de operações”[v]. O autor oferece uma lista dos “legados” de infraestrutura e tecnologias de informação e comunicação (TICs) deixados pelos investimentos em segurança para os megaeventos, que envolveram bilhões gastos com um número limitado de empresas privadas e promoveram um alinhamento com as tendências do “novo urbanismo militar”[vi]. Segundo Cardoso, a implantação do SICC visa a “maximizar a eficiência das ações em segurança e defesa a partir do compartilhamento de informações, da ação conjunta e da tomada de decisões apoiada em análise situacional e objetivos estratégicos”. São criados protocolos de ação, baseados em padrões de eficiência, a serem repetidos em situações semelhantes.

Se a preocupação dos defensores de direitos civis e humanos dirige-se à desproporcionalidade da força empregada em operações assim comandadas, as forças estaduais de segurança oferecem outro tipo de crítica a esse modo de gerenciamento. É sabido que não basta alocar representantes de órgãos diversos em um mesmo prédio e sob um mesmo comando para promover a integração institucional. Já era esperada uma forte resistência no interior dos órgãos de segurança, que são eles próprios internamente fragmentados em grupos de poder conflitantes, alguns deles envolvidos com milícias e grupos de extermínio. Ademais, a proposta de controlar a atuação capilarizada das polícias a partir das tecnologias de comando e controle e protocolos operacionais pode esbarrar na própria natureza do trabalho policial. Nele, as iniciativas cruciais emanam dos executantes, responsáveis por decisões tomadas em regime de urgência. A polícia tende a atuar como um instrumento autônomo, com margem de iniciativa, cuja autoridade decorre da Lei para ir “mais baixo” do que a Lei pode ir[vii]. Subordinar as polícias ao comando operacional das Forças Armadas é uma tarefa difícil e muito perigosa. Não sabemos que rearranjos de poder podem emergir disso, mas sabemos que a trincheira está aberta.

Sabemos também que os movimentos de fusão entre as práticas de guerra e policiamento, de tecnologização da segurança e integração das forças numa arquitetura em rede não constituem um fenômeno exclusivo do Rio de Janeiro ou do Brasil e sim uma tendência internacional. Segundo Philippe Bonditti[viii], as doutrinas militares acompanharam mudanças na imagem do mundo geopolítico, em que a rede se tornou a grade de leitura para interpretar os novos conflitos. A guerra já não se dá mais entre Estados e o estado de guerra já prescinde de uma materialidade de guerra. Vivemos a era dos “conflitos de baixa intensidade”, em que armas em rede combatem inimigos difusos, como o “terrorismo” e o “narcotráfico”. Nesse cenário, as ofensivas militares de “contra-insurgência” e “pacificação” revelam o caráter produtivo da violência na fabricação da ordem capitalista, à medida que declaradamente perseguem a defesa da “paz” necessária ao desenvolvimento do mercado e da livre iniciativa[ix].

Há alguns anos Cardoso vem alertando sobre a emergência da chamada “defesa social”, que funde as atribuições de defesa e segurança pública e da qual o Rio é hoje um laboratório. Está sendo testada uma ordem gerencial militarizada que, se “exitosa” em prover segurança patrimonial, pode se tornar um modelo a ser replicado em outros estados, abrindo uma “janela” para bilhões em investimento e semeando formas ainda desconhecidas de autoritarismo. Já a perspectiva de fracasso da intervenção aposta nas resistências colocadas pelas instituições locais de segurança, que, por sua vez, defendem a manutenção das formas já conhecidas de autoritarismo. Está em curso uma disputa entre poderosas organizações de homens armados que competem pelo controle de recursos econômicos e pela prerrogativa de gestão da vida e da morte no estado. Uma disputa que talvez tenha motivado a execução de Marielle e Anderson e que fará ainda muitas vítimas.

 

Carolina Christoph Grillo é Bolsista FAPESP de Pós-doutorado do Departamento de Sociologia da USP.

 

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[i] IPEA e FBSP, Atlas da Violência 2017. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017

[ii] FIRJAN. O impacto econômico do roubo de cargas no estado do Rio de Janeiro. 2017. Disponível em: http://www.firjan.com.br/publicacoes/publicacoes-de-economia/o-impacto-economico-do-roubo-de-cargas-no-brasil.htm

[iii] WEIZMAN, E. “Lawfare in Gaza: legislative attack”. Open Security, 2009.

[iv] CARDOSO, B. “Megaeventos esportivos e modernização tecnológica: planos e discursos sobre o legado em segurança pública”. Horizontes antropol. [online]. 2013, vol.19, n.40

[v] CARDOSO, B. “Segurança Pública e Megaeventos no Brasil”. Fundação Heinrich Böll Brasil, Junho de 2016. Disponível em: https://br.boell.org/sites/default/files/seguranca-publica-megaeventos-brasil_bruno-cardoso.pdf

[vi] GRAHAM, S. Cities Under Siege: the new military urbanism. Verso; London & New York. 2011.

[vii] L’HEUILLET, H. Alta polícia, baixa política: uma visão sobre a polícia e a relação com o poder. Cruz Quebrada: Editorial Notícias, 2004.

[viii] BONDITTI, P. “(Anti)terrorisme: mutations des appareils de sécurité et figure de l’ennemi aus États-Unis depuis 1945.” Critique Internationale, 61, 147-168, 2013/4.

[ix] NEOCLEOUS, M. “The dream of pacification: accumulation, class war, and the hunt”. Socialist Studies, 9(2), 7-31, 2013.

imagem da chamada: Tânia Rêgo/Agência Brasil