Neste 24 de outubro, em que se completam dois meses da morte do cientista político Lúcio Kowarick, a Novos Estudos publica o artigo que ele submetera à revista e que não pôde ver publicado. Com apresentação de Adrian Gurza Lavalle e Eduardo Marques, o artigo será publicado no próximo número da revista.
Apresentação
Adrian Gurza Lavalle*
Eduardo Marques**
Um diálogo profundo e crítico de Lúcio Kowarick consigo e sua geração, à busca do compromisso que ancorou as suas indagações mais persistentes, bem como da origem e desenvolvimento de sua principal contribuição à sociologia urbana. Eis a riqueza do manuscrito que Lúcio entregou à Novos Estudos sem que soubéssemos que seria o último e precioso aporte em uma longa trajetória iniciada na primeira metade dos anos 1970.
Longe de um exercício memorialístico, ao qual a obra e a idade poderiam dar ensejo, o escrito revisita com parcimônia o passado com intuito propositivo. Nele, o leitor comparece, não propriamente como destinatário, mas ao modo de um espelho que, em leitura retrospectiva, permite refletir a luz para tecer relações, introduzir ênfases e reiterar correções em diálogo que o autor trava consigo. Por isso, não há concessões ao leitor nem passagens propedêuticas. A trajetória resta implícita e informações contextuais são elusivas. Atenta-se apenas para elementos fundamentais: experiências que vincaram fundo nas escolhas morais e cognitivas, o cerne conceitual do seu diagnóstico sobre a relação entre desigualdade social e dinâmicas urbanas, e um problema recorrente na obra de Lúcio que, na sua autoavaliação, não recebera resposta satisfatória dele e de sua geração.
A espoliação urbana, publicado em 1979, é a contribuição seminal de Lúcio para a constituição da sociologia urbana no país. Por certo, não foi o primeiro e muito menos o último livro, mas sim o mais influente, e aquele que contém sua principal contribuição teórica. O livro elabora um elegante encontro entre reflexões do marxismo dos anos 1970 sobre marginalidade, cujo debate fora dirimido em sua tese de doutoramento e primeiro livro — Capitalismo e marginalidade na América Latina (1975) —, e os achados de campo de pesquisas pioneiras realizadas no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) sobre favelas em São Paulo, vinculando analiticamente populações marginais e produção do espaço urbano. Vem desse trabalho de campo, na favela Jardim Panorama, a experiência de dor e perda causados pela remoção da população e soterramento de barracos que Lúcio continuaria a rememorar ao longo de toda sua trajetória. Por sua vez, a síntese, “não ortodoxa” nas suas palavras, foi sem dúvida inovadora e criativa, relativizando o determinismo estruturalista comum nesses anos, caracterizado em Escritos urbanos como “determinismo sem sujeitos”. A cidade mal podia ser compreendida como mero rebatimento do modo de produção, e serviços urbanos, decisões governamentais, investimentos e escolhas das personagens que vivem às margens se articulam reproduzindo desigualdades propriamente urbanas.
Em retrospectiva, sua compreensão da espoliação urbana como soma de extorsões operada pela ausência e precariedade de serviços e equipamentos públicos, à época uma rajada de ar fresco em face do estruturalismo imperante, parece-lhe “economicista”. A razão não é, em primeira instância, que a espoliação se sobreponha à exploração no mercado de trabalho com efeitos de dilapidação da mão de obra, permitindo leituras funcionalistas. Antes, a razão que lhe interessa guarda clara afinidade a sua posição ética e teórica no debate sobre a marginalidade: a aposta moral e pessoal na possibilidade de transformação social impulsionadas pelos segmentos da população subalternizados mediante a reprodução das desigualdades. A ação coletiva não é uma simples derivação da espoliação ou da exploração. Ela passa pela construção de sentidos, do sentimento compartilhado de injustiça, pela vivência e pela nomeação do que é comum. Não é fortuito, assim, que parte importante de sua obra tenha se dedicado ao estudo dos movimentos sociais, sempre tendo como horizonte suas conexões com as condições de existência em nossas favelas e periferias, assim como a dinâmica dos direitos. No manuscrito ora publicado, Lúcio se debruça sobre nova síntese: a reconstrução da espoliação urbana como instrumento de análise para entender a dimensão objetiva e subjetiva da mobilização social em nossas cidades.
* Adrian Gurza Lavalle, professor do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, é pesquisador do CEM (Centro de Estudos da Metrópole) e do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), e editor-chefe da Brazilian Political Science Review.
** Eduardo Marques, professor do departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo, é pesquisador e diretor do CEM (Centro de Estudos da Metrópole).
Sobre a construção de um instrumento de análise: a espoliação urbana
Por Lúcio Kowarick
- Apontamentos sobre a violência urbana, valores e ética
É procedente afirmar que São Paulo estrutura-se numa “urbanização anômica” no sentido de ser destituída de diretrizes que permitam uma ocupação racional do espaço urbano. Ao contrário, a ausência do poder público libera as forças do mercado tendo por consequências a produção de novas periferias destituídas de serviços básicos: a fronteira urbana é constantemente ampliada e marcada por intenso crescimento populacional cuja localização no território da cidade e de sua região metropolitana situa-se em crescentes aumentos nas horas que ligam o domicílio ao local de trabalho.
Além disto, impera o que pode ser chamado de “laissez-faire urbano”. Ele favorece a confecção de uma metrópole que visa primordialmente ao lucro advindo da especulação imobiliária financeira. A seu turno, o poder público desde os anos 1940, quando se intensifica a construção de moradias nas áreas periféricas, deixou de criar regras urbanísticas para a ocupação do solo: cada família edificava sua habitação onde podia, resultando em vastas glebas vazias entre um aglomerado residencial e outro: daí o aumento constante dos assim chamados custos de urbanização.
Assim, talvez seja possível afirmar que, seguindo uma tradição não ortodoxa do marxismo, ocorra um processo que pode ser designado de “mais-valia urbana”: intervenções no tecido urbano – saneamento, postos de saúde, escolas etc. –, no mais das vezes realizadas pelo poder público, conduzem à valorização de terrenos ou edificações, aumentando o lucro dos proprietários sem que eles tenham realizado qualquer investimento.
Com base nesses alicerces teóricos, realizou-se uma pesquisa pioneira em 1973 que serviu de base para meus escritos posteriores. Refiro-me a uma investigação coordenada por mim e Ruth Correia Cardoso: “Integração e desintegração de populações marginais”. Tratava-se de um estudo sobre favelas contíguas à Marginal Pinheiros (Kowarick; Cardoso, 1973).
Do lado esquerdo da Marginal, pequeno aglomerado, denominado de Cidade Jardim. Nele, não há água encanada. Necessário contar com a boa vontade da vizinhança. O que espanta não é falta desse serviço básico, fenômeno comum nesses anos iniciais de 1970 quando São Paulo tinha apenas cerca de 1,5% dos habitantes morando em favelas.
O que espanta é a perspicácia da fala de alguns habitantes dessa favela. Por exemplo, é Joel quem diz: “Eles escolhem os que têm 20 anos pois têm mais 10 anos para trabalhar. Há 2 anos estou neste serviço de estafeta. Quando era pequeno aprendi uma poesia: mas eis que chega janeiro, ano novo, ano inteiro, de espera que se bem diz”. É sua a poesia? “Não, não é minha! Se fosse poeta, não vivia de mensagens, vivia de letras”. E assim por diante.
Na margem direita do rio Pinheiros, uma favela ainda pouco ocupada: Jardim Panorama. Na encosta da Marginal, a paisagem é tranquila, até bucólica: os lotes são grandes, permitem o plantio de algumas verduras e o pasto de alguns poucos cavalos.
Do outro lado do morro, nada é tranquilo nem muito menos bucólico: caminhões basculantes e tratores jogam terra, pedras, entulho de todas espécies a fim de aterrar os vazios e aplainar o terreno para um empreendimento imobiliário destinado às camadas abastadas.
Embaixo, cerca de doze famílias esperam a terra, o entulho, as pedras chegarem perto de seus barracos. Esperam que algo aconteça a fim de dar um destino diferente desta situação. Nada acontece: os projetos, anseios, aspirações não têm base na realidade do soterramento que chega cada vez mais perto.
Face à importância desse cenário para minha formação intelectual, não tenho dúvida em fazer uso de uma longa citação.
Com a palavra, os mais idosos: “O desespero do goleiro Cláudio e a prostração do camponês Honório têm algo em comum: de certo modo, ambos vivem o fim de uma festa que não houve. São trabalhadores que não têm mais a única coisa que tiveram no decorrer de suas vidas: a força de trabalho para vender. Criaram riquezas, plantaram, construíram, defenderam pênaltis. Mas nada disto lhes pertence. […] Para eles, não há mais a criação de um futuro. E também não há revolta. Inexiste o sentimento de união, de percepção do semelhante: a tragédia não se adiciona: […] a tragédia é natural, ela é assim porque as coisas sempre foram assim. Por isso não enxergam violência das pedras que caem e soterram os barracos. A violência vivida e revivida no cotidiano do trabalho, tanto no campo como na cidade, impregnou-se como algo inerente ao fato de existir. A violência venceu. Ela não é percebida. A consciência foi soterrada”.
Os mais jovens, João e Otaviano, fazem planos. “Sair do aterro. Tirar a carteira de motorista ou arranjar um servicinho melhor. Eles também têm algo em comum: têm o vigor da juventude. Têm para vender a energia do corpo. Criam riquezas e procriam os filhos que produzirão a riqueza do futuro. […] Certamente, ambos tentarão dar aos filhos a educação que não tiveram […]. E um não reconhece o outro na semelhança dos contrastes. Nem reconhecem os outros que a eles se opõem […]. Impera o imediatismo das soluções que permanecem no presente, jogando um tempo do futuro. Talvez porque ambos sintam, isso sim, que seu futuro é o presente de Cláudio e Honório – força de trabalho que se esgota ao criar uma riqueza que não é sua”. Destas anotações resulta a pergunta: “Ou há um outro fim e outro começo para a história das consciências soterradas?” (Kowarick; Gordinho; Graeff, 1979, pp. 183-4).
Qual a importância dessa pesquisa para minha formação intelectual? Em primeiro lugar, despontou uma ética de compromisso com o modo e condição de vida dos majoritários grupos cujo cotidiano é marcado por vulnerabilidade em suas múltiplas facetas.
Ademais, minhas investigações futuras procuraram equacionar aqueles que respondem às perguntas não enquanto “objeto de pesquisa”, mas como “personagens”. “Personagens”, pois trata-se uma construção analítica na medida em que sempre é necessário escolher certas falas enquanto outras são mantidas em silêncio: quem edifica a visão do mundo dos “personagens” não são eles, mas, sim, o pesquisador.
A premissa de uma análise científica, para mim, supõe um conteúdo ético que se formula nos quadros cujas tintas seguem colorações de cunho humanista. Humanismo no sentido forte do termo, pois seus alicerces não se fundamentam na racionalidade dedutiva e/ou indutiva implícitas na construção de aparatos conceituais que forjam teorias de caráter científico. Humanismo também no sentido forte do termo, pois ele é portador de um conjunto variado de valores, entre os quais, no mais das vezes, destaca-se a autopercepção de dignidade por ser um trabalhador que tem responsabilidades em relação à sua família e à comunidade em que habita. Tudo isto apesar dos baixos rendimentos, do risco de tornar-se um desempregado e de ser confundido pela polícia que o enxerga como bandido em potencial.
Em termos simplificados: o que antecede as formulações teóricas nas minhas investigações são valores que norteiam os caminhos que precedem os rumos das elaborações de cunho analítico e interpretativo.
Não me encontro isolado ao formular estas colocações. Um exemplo: no Futuro da democracia, uma defesa das regras do jogo, Norberto Bobbio, mestre de todos nós, aponta para a existência de cinco valores básicos para a consolidação de um sistema democrático de governo: a tolerância, a não violência, o livre debate das ideias, a mudança de mentalidades e, por último, o ideal da irmandade (Bobbio, 1986, p. 20).
O cerne da questão equacionada pelo autor não diz respeito tão somente ao que é democracia, mas enfrenta a questão do que é uma “boa democracia”: não há autor, independente de sua coloração teórica, que, ao caracterizar os elementos básicos de um sistema democrático, deixe de enunciar proposições de caráter normativo: portanto, o que é certo e o que é errado, e, em consequência, apoiado em posicionamentos de forte conteúdo ético.
- Primeiros passos: a lógica da desordem
A mencionada experiência de pesquisa constituiu o alicerce sobre o qual se edificou a busca de artefatos teóricos que dessem conta das múltiplas e variadas situações urbanas. Para além da postura humanista implícita nestas elaborações, era necessário fazer uso das teorias decorrentes de parâmetros científicos.
Daí o empenho para analisar e entender a lógica que conduz a uma aparente desordem urbana. De um lado, ela é decorrente do fato de que as forças do mercado agem livremente com poucos constrangimentos impostos pelos poderes públicos.
Por outro lado, neste caso específico, o artigo estrutura-se numa crítica aos governantes – no caso, militares/ditadores. Ao mesmo tempo que aposta na atuação da assim chamada sociedade civil a fim de superar as flagrantes condições de vulnerabilidade, nos seus múltiplos e variados aspectos.
“A lógica da desordem”, capítulo do livro São Paulo, crescimento e pobreza, procurou realizar uma primeira síntese teórica da problemática urbana. O passo seguinte foi verificar suas conexões a uma modalidade de crescimento econômico que também se apoiava – e ainda se apoia – na manutenção da pobreza marcadamente presente entre os moradores de cortiços, favelas, bem como nas crescentes periferias baseadas na autoconstrução de habitações.
Mas ainda perdurava um vazio teórico que desse conta dos processos urbanos por mim analisadas: “A lógica da desordem” trazia implícito um processo que só se tornou explícito no final dos anos 1970: A espoliação urbana (Kowarick, 1979).
A conjugação destes termos traz um explícito componente ético: valores condicionam de antemão a dualidade entre opressores e oprimidos, o que se torna evidente, como será detalhado quando exposto o conteúdo de sua definição.
Sem dúvida, há um colorido humanista nesta oposição que decorre do fato de haver uma aposta num processo emancipatório que marca os grupos, camadas ou até as classes que se encontram numa condição de subalternidade.
O livro traz um esforço teórico em relação à relativa autonomia da assim chamada questão urbana. Mas ainda está conectado e resultante da dinâmica econômica. A citação que segue aponta de modo claro essa conexão. Afirmava-se que era “possível fazer uma leitura dessas condições através da análise da expansão urbana, com seus serviços e infraestrutura ainda diretamente ligados ao processo de acumulação do capital” (Kowarick, 1979, p. 33).
Esse tipo de afirmação atualmente me parece demasiadamente “economicista” na medida em que a condição estrutural condicionaria a um destino de antemão determinado. Ou seja: este tipo de colocação carece de mediações sem as quais não é possível o surgimento de reivindicações ou movimentos sociais de maior envergadura.
Posteriormente, passei a ressaltar a afirmação de que a espoliação urbana, bem como a exploração do trabalho constituem mera matéria-prima a partir da qual desponta uma subjetividade coletiva alicerçada numa percepção apoiada em sentimentos generalizados de “escanteamento” social e/ou econômico (Kowarick, 2019, capítulo 4).
Semelhante colocação desvenda os caminhos que fundamentam a problemática das mediações, entre as quais as assim chamadas condições materiais objetivas e as mudanças levadas a cabo pelos movimentos sociais. Para tornar mais precisos esses alicerces, faço uso de citação que equaciona de forma direta esta minha mudança de paradigmas teóricos: “[…] não considero possível deduzir as lutas sociais das determinações macroestruturais, posto que não há ligação direta entre a precariedade das condições de existência e os embates levados adiante pelos contingentes por ela afetados. Isto porque, malgrado uma situação variável mas comum de exclusão socioeconômica, os conflitos se manifestam de maneira diversa e, sobretudo, as experiências de luta têm trajetórias extremamente díspares, apontando para impasses e saídas para as quais as condições materiais objetivas constituem na melhor das hipóteses apenas um grande pano de fundo. Não se trata de desconsiderá-las, mas de reconhecer que, em si, a pauperização e a espoliação são apenas matérias-primas que potencialmente alimentam os conflitos sociais: entre as condições (estruturais) imperantes e as lutas propriamente ditas há todo um processo de experiências – na acepção de Edward P. Thompson – que não está de antemão tecido nas teias das determinações estruturais”( Idem, p. 69).
Como será exposto, estes suportes teóricos bebem nas águas de autores apoiados em diferentes universos teóricos. Esse ecletismo teórico está na base que estrutura minhas interpretações presentes neste ensaio, como será detalhado no item 4.
- Primeira versão – A espoliação urbana: uma noção em construção
A concepção de espoliação urbana tem uma origem na Escola Marxista Francesa de Sociologia Urbana. Autores em torno desta tradição teórica, fortemente predominante na França na década de 1970, produziram vários escritos. Analisaram o período auge da sociedade francesa nos vinte anos após 1945 – “Les Vingt Glorieuses”. Nesse momento era significativo o “Estado de Bem-Estar Social” que subsidiava o acesso a programas tais como “Habitation à Loyer Modéré” (HLM), além dos transportes coletivos, ensino de 1º e 2º grau, ou creches, para só citar alguns exemplos (Lipietz,1977; Préteceille, 1976;Topalov, 1979).
Na sociedade brasileira, em contraponto ao caso francês, os sinais se invertem, pois, enquanto lá há vasta e variada oferta de serviços públicos, nestas bandas do Equador e dos Trópicos persiste sua precariedade. Em outros termos: lá é vasta e ampla oferta dos assim chamados salários indiretos, ou seja, serviço subsidiados pela ação estatal, enquanto na sociedade brasileira eles são raros e, no mais das vezes, limitados.
Necessário apontar que, frequentemente, espoliação e exploração caminham juntas, pois quem ganha pouco, no mais das vezes, mora em sofríveis condições de habitabilidade. Contudo, pode haver um aumento salarial enquanto as condições urbanas continuam marcadas pela falta de bens de consumo coletivos, tais como transportes, saneamento, segurança pública, para ficar em alguns itens necessários à vida nas metrópoles. Ou, inversamente, quando ocorrem melhorias nos bairros, enquanto nas empresas perdura o mesmo nível de remuneração.
Assim, tudo indica que se trata de dois processos ao mesmo tempo interligados, mas independentes e que se encontram em universos empíricos e teóricos diversos.
Chega o momento de definir o que entendia no final dos anos 1970 por espoliação urbana: “ela constitui a somatória de extorsões que se opera através da inexistência ou precariedade dos serviços de consumo coletivos que agudizam ainda mais a dilapidação que operam nas esfera produtiva” (Kowarick, 1979, capítulo 3)
Nestes processos, o papel do Estado é fundamental, pois é o principal agente que tem por encargo gerar benfeitorias ligadas às necessidades da reprodução urbana das várias camadas de trabalhadores.
Para finaliza este item, penso que esta primeira aproximação do processo de espoliação urbana está contaminada com o que já foi designado de “dedutivismo estrutural”: isto é, as condições materiais de vida seriam suficientes para condicionar ou mesmo determinar o surgimento de lutas sociais e políticas. Por outro lado, desponta uma abordagem “genético-finalista”, ou seja, que por uma espécie de vocação metafísica chega-se a um fim de antemão predeterminado. Em síntese, estes equacionamentos carecem de mediações entre uma condição estrutural e as reivindicações e lutas que visam a transformações sociais ou políticas.
- Segunda versão – A espoliação urbana: um processo sempre em movimento.
Dou continuidade a este ensaio, afirmando que cabe introduzir a trama complexa que une objetividade-subjetividade e frisar, ainda uma vez, que as assim chamadas condições materiais objetivas – a exploração do trabalho e a espoliação urbana – nada mais são do que o pano de fundo de um cenário socioeconômico no qual os atores não seguem um texto de antemão redigido ou decorado.
Isso significa dizer que elas, de per si, não constituem motores de transformação, pois o que importa é o processo de mediações da qual decorrem os sentidos e significados que a espoliação urbana ou exploração do trabalho passam a ter para os múltiplos grupos, camadas ou classes sociais. Em termos diretos: os debates e embates a fim de obter algum benefício para suprir as necessidades da vida cotidiana não advêm de uma experiência direta da pobreza nem muito menos da miséria.
Ao contrário, o que move os atores sociais são os anseios, expectativas ou projetos que estão sendo subtraídos. Nestas circunstâncias, quando se forja uma conjuntura histórica coletivamente vivenciada que conduz a uma reivindicação e até mesmo a um confronto, eles só podem ocorrer quando desponta uma percepção generalizada de lesão, ofensa ou denegação, em suma, privação de algo percebido como necessário à vida cotidiana.
Cabe assinalar que em tempos mais recentes o encaminhar dos embates sociais e debates teóricos abre novos horizontes políticos e interpretativos e traz novos leituras sobre o que é importante detectar nos múltiplos cenários das cidades brasileiras.
Sem dúvida, as referências macroestruturais continuam presentes em muitos esquemas interpretativos. Mas o fulcro da teia explicativa deixou de privilegiar o aumento das exclusões sociais e econômicas: o questionamento de por que os grupos, camadas ou classes se mobilizam deixou de se ater ao grau de carências e marginalizações, sejam elas advindas do mundo do trabalho ou daquelas que marcam o cotidiano dos bairros populares. Em temos simples e diretos: se o grau de exclusões sociais e econômicas fosse suficiente para explicar os movimentos sociais, as ciências humanas não teriam razão de existir.
Repita-se quantas vezes necessário for: não considero possível deduzir as lutas sociais das determinações macroestruturais. Não se trata de desconsiderá-las, mas de reconhecer que elas são apenas matérias um esboço que potencialmente alimentam os movimentos sociais: entre as condições imperantes e as lutas propriamente ditas há todo um processo de produção de “experiências” – seguindo as trilhas da historiografia marxista inglesa – que não está de antemão tecido na teia das determinações estruturais (Kowarick, 2019, p. 69).
Em suma: não importa mais a magnitude da exploração, espoliação, mas o significado que atores coletivos atribuem a estes processos: enfim, trata-se da produção de um relato com sinais positivos e negativos de uma determinada realidade social que fundamenta o que já foi designado de “matrizes discursivas” equacionadas não só em discursos, mas também, sobretudo, em práticas. Em outras palavras, trata-se da produção de uma semântica que de sentido e significação à tríade do (in): justiça, dignidade ou moralidade que desaba de maneira particular sobre as populações marginalizadas de nossas cidades, de onde decorre o que já foi designado de ”nomeação do vivido” (Sader, 1988, p. 142): no caso em pauta, as condições espoliativas de vida vigentes nos bairros populares. Mais adiante, continua o autor: “as matrizes discursivas devem ser, pois, como modos de abordagem da realidade que implicam diversas atribuições de significado. Implicam também em decorrência o uso de determinadas categoriais de nomeação e interpretação […] como na referência a determinados valores e objetivos. Mas não são simples ideias: sua produção e reprodução dependem de lugares e práticas materiais de onde são emitidas as falas” (Idem, p. 143).
Isto posto, e em complemento ao que foi acima assinalado, é oportuno ressaltar que a confecção de uma identidade coletiva requer a construção de uma gramática que leve à “luta por reconhecimento” (Honnet, 2014, capítulo 4). Ela implica a produção de uma subjetividade compartilhada por grupos, camadas ou classes que se percebam como excluídos de algum benefício social ou econômico. Para que isto ocorra é necessário que os atores sociais se reconheçam e percebam a quem a eles se opõem.
Em consequência ao que foi afirmado anteriormente, para superar a condição de subcidadania, torna-se importante compartilhar um conjunto de valores, expectativas, atitudes e até mesmo normas de conduta: em síntese, um sistema cognitivo de pretensões que dinamize processos que levem à construção de movimentos sociais, o que supõe, a seu turno, ações para superar situações percebidas como rebaixamento social ( idem, pp. 227 e ss.).
Nesse sentido, existem numerosos caminhos teóricos que, não obstante situarem-se em posições interpretativas diversas, apresentam como denominador comum a revalorização da “subjetividade social”. “Subjetividade social” não na acepção de direito positivo, mas na de produção simbólica realizada por atores coletivos que interpretam, confeccionam discursos com seu sinais positivos e negativos sob uma determinada situação concreta: os escritos sobre a questão da “dignidade”, a historiografia marxista ou não, que, ao refletir sobre as dinâmicas da “insubordinação” ou da “obediência”, introduzem a problemática da “economia moral” da “injustiça” e da “indignidade”. Eles constituem alguns empenhos que procuram discutir a vasta e aberta problemática das mudanças sociais (respectivamente, Thompson, 1977; Moore Jr., 1987; Weil, 1979).
Balizado por esta diversa tradição interpretativa, retomo e reatualizo a problemática da espoliação urbana produzindo uma definição que difere daquela apontada no item 3 deste ensaio: ela se refere à somatória de extorsões que se refletem na ausência ou precariedade de serviços de consumo coletivos que se mostram socialmente necessários à reprodução urbana dos trabalhadores. A seu turno, o que é percebido como socialmente necessário varia no tempo e no espaço, portanto, só pode ser entendido enquanto uma produção histórica.
Além disto, o processo espoliativo resulta de uma somatória de extorsões que nada mais é do que retirar de um grupo, camada ou classe social o que estes atores consideram direitos seus. Não na acepção de legislação positiva, mas no sentido de um processo cognitivo segundo o qual existe legitimidade na reivindicação e cuja negação constitui, repita-se, uma injustiça, indignidade ou imoralidade: o legítimo pode institucionalizar-se e até transformar-se em regra jurídica. Mas igualmente importante é a lenta, oscilante e contraditória dinâmica de desnaturalização do escanteamento presente no cotidiano de nossas metrópoles.
Colocado desta forma, penso que a problemática das lutas urbanas pode enfrentar de modo teoricamente mais calibrado os vários aspectos das exclusões que desabam sobre os moradores e trabalhadores, bem como o processo de institucionalização dos direitos.
Assim, abre-se a possibilidade de amplos debates e embates ligados ao processo de extensão e consolidação da cidadania.
Referências bibliográficas
Bobbio, Norberto. O futuro da democracia, uma defesa das regras do jogo. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986.
Honnet, Axel. A luta por reconhecimento. São Paulo: Editora 34, 2014.
Kowarick, Lúcio. Escritos urbanos. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2019.
_____. A espoliação urbana. 1. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
_____; Gordinho, Margarida Cintra; Graeff, Eduardo. “Os cidadãos da marginal”. In: Kowarick, Lúcio. A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
_____; Cardoso, Ruth Correia (coords.). Integração e desintegração de populações marginais. São Paulo: Cebrap, mimeo, 1973.
Lipietz, Alain. Le Capital et son espace. Paris: Éditions Anthropos, 1977.
Moore Jr., Barington. Injustiça: as bases sociais da desobediência e da revolta. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Pinçon-Charlot, Monique; Préteceille, Edmond; Rendu, Paul. Ségrégation urbaine, classes sociales et équipement collectifs em région parisienne. Paris: Éditions Anthropos, 1986.
Sader, Eder. Quando novos personagens entram em cena: experiências da luta dos trabalhadores na Grande São Paulo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
Thompson, Edward P. Tradición, revuelta y conciencia de clase: estudios sobre la crisis de la sociedade pre-industrial. Barcelona: Crítica, 1977.
Topalov, Christian. La Urbanización capitalista: algunos elementos para su analisis. Cidade do México: Edicol, 1979.
Weil, Simone. A condição operária e outros estudos sobre a repressão. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.