Riscos privados em lugares públicos: as PPPs do Metrô de São Paulo

Daniela Costanzo de Assis Pereira
Ensaio

Recentemente, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, concedeu mais duas linhas do Metrô para a iniciativa privada, as linhas 17-Ouro e 5-Lilás, as quais se somam às outras duas já concedidas, 4-Amarela e 6-Laranja, todas no formato de parceria público-privada (PPP). A ideia é que tais parcerias compensariam a dificuldade de conseguir investimentos públicos para expandir o sistema, possibilitando uma expansão mais rápida e menos onerosa para os cofres do governo. Tal ideia não é recente, ela existia na Companhia do Metropolitano de São Paulo há décadas e seus efeitos esperados não equivalem exatamente àqueles encontrados até agora.

O modelo inicial de financiamento do Metrô de São Paulo é filho de seu tempo. Fundado na ditadura militar, suas primeiras linhas (1-Azul e 3-Vermelha) foram construídas combinando empréstimos externos, nacionalização de empresas estrangeiras, investimento na engenharia nacional, fundo nacional do BNDES destinado a máquinas e equipamentos e dinheiro público dos três entes federativos. Como se sabe, o modelo de desenvolvimento da ditadura militar se baseava justamente neste padrão: industrialização nacional pesada com empréstimos externos. A construção destas duas linhas foi o período de formação da Companhia do Metrô como uma empresa de ponta e capacitada, tanto por ter dinheiro – sobretudo em comparação com os ferroviários, que sofriam com a falta de investimento – quanto por ter os melhores engenheiros, formados na Escola Politécnica da USP, financiados pelo Metrô para adquirir conhecimentos de outros sistemas mundo afora e com salários altos, competitivos em relação ao mercado da época. Neste período, não só o financiamento do Metrô dependia do governo federal como este também tinha grande influência nas decisões de traçado tomadas dentro da empresa pública, pois foi o presidente Geisel quem tomou a decisão final de que a Linha 3-Vermelha iria para a Zona Leste, tendo sido desenhada inicialmente para seguir até o bairro Vila Maria, na Zona Norte da capital paulista.

As coisas começaram a se transformar no final dos anos 1980 e durante os anos 1990, quando uma série de acontecimentos econômicos e políticos, internos e externos à Companhia, mudaram seu caráter. A economia brasileira parou de crescer, acabaram os planos de desenvolvimento, o país passou por ajustes sucessivos, os empréstimos externos não eram mais possíveis e o investimento público passava por dificuldades. As fontes tradicionais de financiamento do sistema de metrô secaram, o governo federal parou de investir e sobrou apenas o dinheiro do governo estadual para construir a terceira linha do metrô de São Paulo, a qual virou a Linha 2-Verde. Dentro da Companhia do Metrô, decisões políticas tiveram grande efeito e chegaram a mudar o caráter da empresa pública. Ao mesmo tempo que os engenheiros começaram a sair da empresa e montar suas próprias consultorias a fim de prestar serviço para o próprio metrô, a equipe técnica restante deixou de ter voz dentro da empresa, passando o poder dos gerentes e técnicos para os diretores, em um regime mais fechado. A mesma equipe técnica passou por cortes quantitativos e qualitativos, diminuindo seu número, importância e heterogeneidade. Os treinamentos no exterior também minguaram. Nesta época, todas as decisões sobre a Companhia estavam ligadas ao governo estadual e as mudanças descritas foram feitas sobretudo nos governos de Mário Covas, a partir de 1995.

A alternativa privada já começa a aparecer de forma mais efetiva na Companhia em 1989, quando é criado o programa “Empreendimentos Associados”, tendo dois focos: combinar capitais públicos e privados na expansão do sistema e aproveitar áreas remanescentes das estações e das linhas em construção para conseguir recursos com a parceiros privados. A partir daí, o Metrô passou a ser pioneiro nas relações com o setor privado: foi grande influenciador da elaboração e aprovação da Lei Estadual 7.835 de 1992, que regulariza a concessão de obras públicas e de serviços públicos via licitação; da Lei Estadual 11.688 de 2004, criadora das Parcerias Público-Privadas e de uma companhia para administrá-las no âmbito estadual (a Companhia Paulista de Parcerias) – antes mesmo da lei de PPPs existir no âmbito federal (Lei Federal 11.079 de 2004) -; e foi também a sede da primeira PPP do país, a da Linha 4-Amarela.

Pode-se dizer que o Metrô foi um laboratório no país para as relações público-privadas contemporâneas. Vale lembrar que a lei federal das PPPs foi elaborada e enviada ao congresso por Fernando Haddad, então assessor especial do Ministério do Planejamento, justamente com a intenção de permitir o investimento em infraestrutura sem “afetar” as contas públicas[1]. Na prática, a lei brasileira das PPPs trouxe a possibilidade de contraprestação direta do parceiro privado pelo parceiro público, a qual pode chegar a até 70% da remuneração do contratado privado e em casos especiais a 80% ou até 90%. A ideia é que o parceiro privado invista em infraestrutura e obtenha a amortização e a remuneração deste investimento por meio de sua exploração a longo prazo. Quase tudo no contrato pode ser negociado: quais serão os investimentos por parte de cada parceiro, quais serão os riscos e como eles serão alocados, quais garantias o setor público oferecerá ao setor privado e como será a remuneração pelo serviço. Tudo isso se aplica à concessão mais comum das PPPs brasileiras, a patrocinada, mas a lei permite também a concessão administrativa, na qual o usuário do serviço é o próprio setor público e a contraprestação por parte deste é, portanto, total.

Voltando ao caso da Linha 4-Amarela, o Metrô começou as negociações com o Banco Mundial (BM) com o intuito de obter recursos para o empreendimento ainda em 1992. O modelo de funcionamento do banco já é conhecido das economias periféricas: os governos e o FMI ajustam de um lado e o os bancos multilaterais como BID e BIRD investem de outro, sob a forma de empréstimos condicionados[2]. No caso da Linha 4-Amarela, o BM sugeriu como condição algo que, como já foi dito, já ocorria dentro do Metrô: a participação de um parceiro privado. Outro ator importante nessa história, mas pouco conhecido, é o International Finance Corporation (IFC), braço do BM que avalia a atratividade e rentabilidade dos empreendimentos. No caso em questão, o IFC discutiu o projeto com segmentos do mercado em diversos países do mundo e fez recomendações a serem levadas em conta na elaboração da PPP. Todas elas foram acatadas pelo Metrô e constituem dois dos principais motivos para esta parceria ter sido muito prejudicial para o lado público da história, quais sejam:

 

(i) Mudança nas etapas de construção da linha: o Metrô havia definido como trecho prioritário da linha aquele entre Vila Sônia e Paulista (com todas as estações entregues, ou seja, sem “buracos” no meio da linha), entretanto o IFC recomendou que fossem incluídas as estações Luz e República, possuidoras de maior demanda e arrecadação, captando mais passageiros em um trecho mais curto, mais rápido e mais barato de operar. Todavia não havia dinheiro para a construção entre o trecho Luz e Vila Sônia, e era fundamental chegar até esta para a manutenção no Pátio. A solução foi construir a linha em três etapas, priorizando a entrega de estações mais lucrativas – Luz, República, Paulista, Pinheiros e Butantã – satisfazendo, portanto, as necessidades da operadora privada, e deixando “buracos” de estações não acabadas ao longo da linha. A finalização destas estações, em andamento agora, depende de obras que necessitam da paralisação da linha toda, ocorridas aos domingos e feriados. Assim sendo, tais decisões atrasaram ainda mais as obras e atrapalham o serviço.

 

(ii) Divisão tarifária: quando um usuário do Metrô utiliza a Linha 4, o Metrô paga para a ViaQuatro, mas quando um usuário da Linha 4 usa o Metrô, a ViaQuatro não paga para o Metrô. Como a tarifa é uma das formas de remuneração da concessionária no contrato de concessão da linha, também incide sobre ela um ajuste anual segundo os índices de preços do mercado e do consumidor. A divisão das tarifas é feita assim: o usuário paga a mesma tarifa para o Metrô ou para a ViaQuatro, mas a ViaQuatro recebe um valor diferente da tarifa, conhecida como tarifa de remuneração[3], paga integralmente para a ViaQuatro através de uma Câmara de Compensação[4] – uma personalidade jurídica que centraliza as tarifas arrecadadas pelo Metrô, CPTM e pela ViaQuatro e as distribui com preferência de pagamento para a ViaQuatro. Gratuidades e descontos também são pagos com valor cheio para a concessionária privada. Na distribuição dos pagamentos, o Metrô e a CPTM são os últimos a receber, isto é, ficam com o que sobra. Como a tarifa paga para a ViaQuatro é reajustada anualmente e o valor pago pelos usuários não, o Estado tem arcado com um valor cada vez mais alto. Caso haja queda na demanda de passageiros, a tarifa de remuneração fica mais cara para o Metrô.

Acrescenta-se a isso características bem conhecidas do nosso empresariado e do nosso mercado, algo que F.H. Cardoso chamaria de anti-empreendedorismo e situação de não concorrência[5]. O Metrô e o Banco Mundial abriram a primeira licitação da PPP da Linha 4 em um modelo no qual o parceiro privado ficaria responsável pela construção, operação da linha e pelo investimento em sistemas, mas neste modelo não apareceram empresas interessadas[6]. O redesenho da licitação resultou em um contrato único de concessão, de forma que o Metrô construiu cerca de 80% da obra e a iniciativa privada apenas a opera. Até aqui, o Metrô fica com os riscos e os investimentos e a iniciativa privada com os lucros. No entanto, há ainda os interesses das empresas que construíram a obra, contratadas separadamente pelo metrô, em 4 lotes diferentes. Os consórcios vencedores dos três primeiros lotes – necessários para operar o trecho de maior lucro para o parceiro privado – têm em comum com o consórcio vencedor da PPP a participação das empresas Camargo Correa e Andrade Gutierrez. Em outras palavras, as duas empresas não tiveram interesse em fazer a parceria quando teriam de construir e operar, contudo o interesse apareceu quando os contratos foram licitados separadamente. O único lote licitado que não foi para essas empresas baseava-se na finalização das estações da segunda fase, sem interesse para a operação privada. Quem venceu esse lote foi o consórcio Isolux Corsán-Corviam, que não entregou as obras e acarretou atrasos e multas para o Metrô.

Os detalhes tratados acima conformam um quadro no qual necessariamente o Metrô perderia, pois assumiu todos os riscos, prejuízos e investimentos, enquanto seu parceiro privado teve todas as garantias sem correr riscos[7]. Este modelo de concessão adotado para a Linha 4, além de ter resultados muito prejudiciais para o Metrô, é um modelo com prazo de validade, dado que a tarifa de remuneração paga para a Via Quatro tende a aumentar com o passar dos anos, enquanto seu peso na divisão tarifária também aumenta, afetando a arrecadação do Metrô e da CPTM e se tornando insustentável no longo prazo.

Entretanto, o modelo foi basicamente repetido na concessão mais recente da empresa pública, a das Linhas 5 e 17. Os riscos de demanda e de atraso na construção das linhas são integralmente responsabilidade do Metrô, os investimentos na construção também, sendo que mais de 30% dos recursos para a construção da linha 17 ainda precisam ser viabilizados pela companhia pública. Assim, é plausível prever resultados muito próximos aos observados no caso da Linha 4-Amarela. Vale ressaltar também que a única linha do metrô concedida integralmente – construção e operação – para a iniciativa privada, a saber, a Linha 6-Laranja, está com as obras paradas.

 

Daniela Costanzo de Assis Pereira é doutoranda em Ciência Política na USP, pesquisadora do Cebrap e mestra em Ciência Política pela USP com a dissertação Relações público-privadas no Metrô de São Paulo.

 

Referências Bibliográficas

Arantes, Pedro Fiori. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.

Cardoso, Fernando Henrique. Empresário industrial e desenvolvimento econômico. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1964.

De Paula, Pedro do Carmo Baumgratz. As parcerias público-privadas de Metrô em São Paulo: as empresas estatais e o aprendizado institucional no financiamento da infraestrutura de serviços públicos no Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2014.

Haddad, Fernando. “Seminário Internacional Parceria Público Privada (PPP) na Prestação de Serviço de Infra-estrutura”. Disponível em:

<http://www.bndespar.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/seminario/PPP_discurso2.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2016.

Marques, Eduardo Cesar Leão. “Government, Political Actors and Governance in Urban Policies in Brazil and São Paulo: concepts for a future research agenda”. Brazilian Political Science Review, v.7, n. 3, 2013.

_________. Redes Sociais, Instituições e Atores Políticos no Governo da Cidade de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2003.

[1] HADDAD, Fernando. Seminário Internacional Parceria Público-Privada (PPP) na Prestação de Serviço de Infra-estrutura. Disponível em:

<http://www.bndespar.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/seminario/PPP_discurso2.pdf>. Acesso em: 21 nov. 2016.

[2] Sobre isso, ver Arantes, Pedro. O ajuste urbano: as políticas do Banco Mundial e do BID para as cidades latino-americanas. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2004.

[3] Em fevereiro de 2017, os valores eram R$2,0187 para usuários integrados e R$4,0373 para usuários exclusivos da Linha 4-Amarela

[4] Para mais detalhes sobre esta solução jurídica, ver, Pedro do Carmo Baumgratz de Paula, 2014.

[5] Empresário industrial e Desenvolvimento econômico (1964), especialmente nos trechos: “As significações da ação do dirigente industrial que, no Brasil, está atento às portarias e decretos governamentais e que procura influir junto aos Governos para obter concessões, empréstimos, isenções, etc., exprimem-se num contexto social e econômico em que a eliminação da competição é tentada como um recurso para manter níveis tecnicamente insatisfatórios de produção e altos lucros unitários. A defesa desta política é feita em nome da necessidade de construir-se a ‘indústria nacional’, o que se justifica até certo ponto, mas os resultados dela ultrapassam frequentemente os propósitos enunciados para se fixarem na manutenção de padrões arcaicos de atividades econômicas” (p. 128-129) e “Se acrescentarmos que ao ideal do ‘mercado fechado’ e dos favores governamentais os industriais desta categoria juntam uma visão tradicionalista da empresa, dos operários, do mercado e da sociedade, ter-se-á a imagem do anti-empreendedor que a industrialização extensiva’ e a duplicidade tecnológica, favorecidas pelos mercados de concorrência imperfeita, continuam a alimentar” (p. 129).

[6] Sobre as especificidades do mercado de infraestrutura no Brasil, ver o que Marques (2013) aponta sobre a tendência das empresas deste setor tentarem influenciar o preço, as características dos produtos e as quantidades, pois o Estado é o único comprador neste nicho: “o mercado de infraestrutura, portanto, é intrinsecamente político, e há incentivos para que se busque continuamente construir e ampliar a permeabilidade estatal” (Marques, 2003, p. 50).

[7] E tem, ainda, captado bilhões de reais em debêntures com a Linha 4, como mostra a reportagem do Jornal Valor: <http://www.valor.com.br/financas/5423825/viaquatro-capta-r-12-bilhao-com-debentures-de-dez-anos>. Acesso em: 09 maio. 2018.

 

Imagem de divulgação: wikimedia commons. Entrega da nova estação Higienópolis-Mackenzie, da linha 4 (Amarela) do Metrô. Local: São Paulo/SP. Data: 23/01/2018. Foto: Alexandre Carvalho/A2img