Correspondência entre Kracauer e Adorno (1938). Tradução de Júlia Bussius.
Caro Teddie,
Escrevi para o instituto no dia 26 de julho — com o pedido de me comunicar com você — dizendo que havia recebido seu manuscrito e lhe escreveria sobre ele muito em breve. Me perdoe, por favor, por isso só ter acontecido hoje. Mas tive semanas cheias de agitações, que não permitiram nem fazer uma carta, e além disso eu sabia que você estava de férias.
O interesse da sociologia pelos estudos do mercado de trabalho tem variado ao sabor dos desafios postos por distintas conjunturas históricas e dos debates intelectuais nelas travados. Este artigo procura acompanhar como se constituiu a moderna sociologia do mercado de trabalho, apontando as suas interfaces com outros domínios temáticos da sociologia e destacando sua importância para a formação de um pensamento latino?americano sobre a especificidade das nossas sociedades. Os debates da nova sociologia econômica arejaram a agenda e renovaram os instrumentos conceituais da sociologia dos mercados de trabalho, como mostra os resultados de estudo recente sobre o mercado de intermediação de oportunidades ocupacionais em São Paulo.
Tem sido crescente o interesse da sociologia brasileira pelos estudos do mercado de trabalho e das formas e experiências associadas ao desemprego, depois de um longo período de jejum intelectual durante o qual haviam dominado as análises sobre as condições de organização e uso do trabalho no cotidiano das empresas e sobre as formas da ação coletiva sustentada pelos sindicatos.
Este artigo toma a luta política da passagem do Império para a República como chave de leitura da produção intelectual da primeira década republicana. Argumento que a clivagem do debate intelectual do período é eminentemente política, originando duas identidades relacionais: “monarquistas de pena”, isto é, ex?aristocratas de corte, convertidos em defensores do regime deposto, e jacobinos, membros de grupos sociais ascendentes com a República, que trabalharam na demolição dos símbolos da velha ordem e na legitimação da nova.
Os dois personagens de A capital federal, do republicano Coelho Neto, não podiam ser mais expressivos do debate público brasileiro no comecinho da República. O golpe republicano de 1889 suscitou manifestos, ensaios, romances, historiografia, memórias e autobiografias que permitem mapear duas movimentações intelectuais. Os republicanos escreveram legitimando o novo arcabouço político e a sociedade também nova que com ele se estabelecia. Os monarquistas arremeteram contra essa “decadência”, louvando o antigo regime e a sociedade aristocrática consigo desmoronada. A luta entre republicanos e monarquistas travou?se, pois, tanto em torno da dominação política como da representação simbólica do Império deposto e da República nascente.
Este artigo procura dimensionar a importância de Corola (2000), de Claudia Roquette?Pinto, no quadro da poesia contemporânea. A partir de elementos que compõem as figurações e as ambigüidades sintáticas de seu lirismo simulado, identifica?se a peculiaridade da voz feminina que, confinada na cena de um jardim, fala nos poemas. A análise textual mostra o funcionamento conflituoso das fantasias de autodestruição e o estudo do medo como componentes essenciais de uma poesia que expressa em toda a sua atualidade a experiência de um corpo que não quer morrer.
Os versos iniciais deste poema declaram que nada há a ser contemplado e representado. Nem flores, nem natureza, apenas conjeturas imagéticas em negativo, apesar de Corola ser um livro que retoma elementos tradicionais do lirismo e cultiva a exuberância de um jardim cheio de flores, folhagens, bichinhos e zumbidos. Mesmo que tenha a aparência eventual de um locus amoenus, esse jardim se anuncia desde as primeiras linhas por meio de “formas improváveis”, isto é, formas negativas menos reconhecíveis, que não oferecem maior expectativa de germinar ou florir. Embora o primeiro verso seja uma afirmação prosaica e rotineira, o que vem a seguir são complicações imaginárias do que é aí afirmado, interceptadas pelo ritmo quebrado e suspensivo dos versos. E no mesmo fluxo em que a paisagem se desrealiza, o sujeito declara a nulidade do próprio foco de observação num lusco?fusco progressivo.
Este artigo analisa três novelas de juventude escritas por Fiódor Dostoiévski: Pobre gente, O duplo e Coração frágil . O texto tem dois objetivos fundamentais: primeiro, recusar a tese de que o autor russo, proverbial analista da alma humana, teria se despreocupado com os condicionantes sociais da ação dos seus personagens; em segundo lugar, pretende-se defender que a sociedade se faz presente nesses escritos por meio de uma “intuição sociológica” que Dostoiévski opera quando analisa os baixos funcionários da Rússia do século XIX. O texto está dividido em três partes: na primeira, descrevo a estrutura estatal da sociedade russa no século XIX; na segunda, apresento a descrição das condições de vida dos personagens e, por fim, analiso a forma pela qual o autor russo apresenta as interações sociais em que eles estão inseridos.
Com alguma freqüência, os estudiosos da literatura interessam-se pela perspicácia sociológica de romancistas consagrados. Raymundo Faoro e Roberto Schwarz procuraram captar os traços da sociedade escravista nas obras de Machado de Assis; Karl Marx admirava a síntese balzaquiana da sociedade burguesa da França do século XIX; George Steiner mostrou como o mundo rural russo ocupava lugar central na teologia tolstoiana. Os exemplos são inúmeros.
Resenha de Teoria dos direitos fundamentais, de Robert Alexy.
Resumo
O livro Teoria dos direitos fundamentais é um dos mais citados e estudados atualmente no Brasil no campo das ciências jurídicas. Não só pesquisadores, mas também advogados e juízes utilizam a teoria de Alexy para embasar pareceres, petições e decisões. O constante uso das idéias do jurista alemão inclusive pelos ministros do Supremo Tribunal Federal motivou estudos recentes sobre o assunto.
Pretende?se aqui dar enfoque a uma das idéias centrais do trabalho e apontar um debate no qual o livro se insere e que é ainda pouco explorado nas discussões da literatura nacional. Desse modo, a resenha terá como ponto de partida a estrutura das normas de direitos fundamentais descrita por Alexy (capítulo 3), detendo?se especialmente na idéia de sopesamento e nas críticas à teoria analisadas no posfácio do livro, escrito em 2002 e também traduzido na versão em português.
Resenha de Dialética negativa, de Theodor W. Adorno.
Resumo
A fama de certos livros costuma induzir o leitor a enganos. A Dialética negativa, publicada originalmente em 1966, poderia ser muito bem recebida no Brasil como a consumação da obra filosófica de Theodor W. Adorno.
A aura de obra difícil, reforçada por décadas de inacessibilidade em língua portuguesa, seria uma preparação condizente com o posto de obra?prima. Tal fetiche poderia naturalmente justificar?se em diversos elementos que, de fato, se encontram no livro. Os leitores familiarizados com outros textos do autor não terão dificuldade em encontrá?los, embora alguma suspeita não faça mal a quem folheia o livro pela primeira vez. Os interessados, por exemplo, na gênese das idéias de Adorno saberão rastrear temas que remontam àquelas primeiras conferências do início da década de 1930, sobre “A atualidade da filosofia” e sobre a “Idéia de história natural”. Nestes trabalhos programáticos, com as quais um jovem e pretensioso filósofo estreava na cena universitária alemã, delineava?se o confronto do panorama da filosofia contemporânea, herdeira, segundo Adorno, do idealismo alemão, com uma noção ainda bastante vaga de filosofia materialista, inspirada nos escritos de juventude de Walter Benjamin. Essa intenção de realizar uma crítica imanente da filosofia idealista alemã, avaliando?a pelas suas próprias pretensões, de modo a extrair, nesta crítica, uma concepção bastante singular de materialismo, certamente pode ser reencontrada na Dialética negativa.
Correspondência entre Kracauer e Adorno (1923-1966). Tradução de Júlia Bussius.
Meu caro Friedel,
Hoje por fim cheguei a uma carta; depois de algumas semanas muito atribuladas estou de volta às minhas quatro paredes, não vejo ninguém fora os professores, trabalho e estudo a existência. Um piano, velho mas utilizável, fica no meu quarto; a prateleira de livros está lá faz tempo, com muitos Kierkgaard, Lila vai ficar fora por um período indeterminado (no mínimo seis semanas!), e assim é possível viver, se quisermos. Eu estou constantemente triste, solitário, sem entusiasmo tanto no sentido vitoriano como no maldito sentido psicológico imanente, e tenho saudades de você, a quem agora, que seja sempre assim até que haja algum término, estou atado na morte e na vida. A única coisa que me dá suporte é o trabalho, ou mais exatamente o ato de compor, que anda devagar mas segue com seriedade: dois dias atrás ficaram prontas as variações para um quarteto de cordas, hoje uma pequena peça para orquestra (a primeira de um ciclo), para a qual preciso apenas de dois dias: para o meu temperamento, muito depressa. Também o principal, o grande trio tem progredido: espero encerrar a primeira frase na próxima semana, entretanto fiquei três meses escrevendo sobre ela e ainda preciso mudar muita coisa. Eu sei que você é avesso a todas as crenças nos atos criativos e já evita tão vaga menção como “alguém ter no trabalho seu suporte”; mas o suporte também é significativo e eu não posso evitar acostumar?me à melancolia diante da vida incompleta.
Correspondência entre Kracauer e Adorno (1951). Tradução de Júlia Bussius.
Caro Teddie
Eu tenho a terrível consciência de que passei semanas sem lhe agradecer Minima moralia. Minha única desculpa é que tive de fazer (graças a Leo) um grande relatório para o Voice of America, com um deadline ahead of me. Eu ainda não acabei, mas se eu quisesse esperar até o fim do trabalho tudo estaria arruinado e distante demais. Não há de ser muita coisa e não posso apostar em nada, mas é o melhor que posso fazer agora. Você deveria vir para Nova York e então eu gostaria de lhe falar muito detalhadamente sobre todo o livro.
Este artigo examina formas de cidadania associadas ao urbanismo contemporâneo. Concentra?se em três espaços paradigmáticos: o enclave fechado, a ocupação regulamentada e o campo. Os autores argumentam que a paisagem formada pela cidadania urbana é crescentemente fragmentada e dividida. Essas geografias são constituídas por soberanias múltiplas e concorrentes que, quando exercidas sobre o território, dão origem a feudos de regulação ou a zonas “sem lei”. A fim de entender essas práticas, os autores empregam o quadro conceitual da “cidade medieval”. O uso da história como teoria joga luz em tipos particulares de cidadania urbana, tais como a “cidade livre” ou o “bairro étnico”, presentes em diferentes momentos do medievalismo e que guardam semelhanças com processos atuais.
A renovação do interesse pelas cidades marcou o início do novo século. O século XXI será um século urbano, quando mais pessoas viverão em cidades do que em qualquer outro tipo de formação espacial. Há o temor de que grande parte desse processo de urbanização se dê nas cidades do Sul global, cidades que têm sido caracterizadas pelo hipercrescimento. Para além da hipérbole demográfica,há também a constatação de que as cidades são os locais centrais de administração e controle do capitalismo global contemporâneo. Os teóricos da “cidade global” retratam uma ecologia da globalização que é essencialmente uma hierarquia de cidades e que pode ser entendida tanto como um argumento darwinista sobre a “sobrevivência do mais apto” quanto como uma análise durkheimiana da divisão do trabalho. Aceite?se ou não tais mapeamentos ecológicos da globalização, o tema persiste: apesar do discurso da desterritorialização, as cidades e seus territórios ainda importam.
Uma análise comparada da regulação da relação de emprego de fins dos anos de 1970 ao plano Real. Este artigo apresenta uma análise do conteúdo normativo de acordos coletivos em comparação com a legislação estatal, com o objetivo de verificar se, e em que medida, as negociações coletivas de trabalho criaram regras não previstas no amplo conjunto de normas estatais que caracteriza o sistema brasileiro de relações de trabalho. Trata-se de um estudo empírico com base em dados de unidades de negociação da indústria do Rio Grande do Sul, no período entre 1978 e 1995. A evidência sugere que as negociações coletivas fortaleceram-se na sua função regulatória, fazendo crescer o conjunto de direitos dos empregados, ao mesmo tempo em que também propiciaram o ajuste de regras de interesse dos empregadores.
Com as transformações institucionais por que passou o Brasil na década de 1930, a relação de emprego veio a ser predominantemente regulada pela legislação estatal. O ressurgimento do movimento sindical na segunda metade da década de 1970, entretanto, fez com que um amplo espectro das relações de trabalho passasse a ser normatizado também pelas negociações coletivas, expandindo-se o escopo temático dos acordos trabalhistas. Essa expansão foi vista como um sinal de fortalecimento das negociações coletivas. Considerando,todavia, o amplo marco regulatório previamente fixado na CLT e nas demais peças da legislação trabalhista, é preciso ter cautela quanto às conclusões que se extraem exclusivamente com base no crescimento do número de cláusulas coletivas. Uma questão central, a que o dado isolado sobre o aumento no número de cláusulas não oferece resposta, consiste em saber se, e em que extensão, os acordos coletivos vieram a criar regras adicionais às vigentes na legislação estatal. É exatamente esta a questão que orienta o presente artigo.
Neste ensaio, Theodor Adorno combina memórias pessoais à análise da obra de Siegfried Kracauer, acentuando suas particularidades, como o traço anti?sistemático, a aversão ao idealismo, à especialização e aos métodos convencionais de análise, com forte lastro na própria experiência, o que possibilitou ao autor de O ornamento da massa descobrir novos objetos com uma rara liberdade, notavelmente antiideológica.
Nos últimos anos, voltou a estar acessível na Alemanha uma série de escritos de Siegfried Kracauer. Mas, a partir de tais escritos, bastante diversificados, a imagem do autor não se tornou até agora tão clara ao público alemão quanto mereceria. Para começar a fazê?lo e delinear algo da figura de Kracauer, creio estar qualificado pela mais simples razão: somos amigos desde minha juventude. Eu era secundarista quando o conheci, por volta do final da Primeira Guerra. Fomos ambos convidados por uma amiga de meus pais, Rosie Stern, professora efetiva no colégio Philanthropin, a cujo corpo docente pertencia o tio de Kracauer, o historiógrafo dos judeus de Frankfurt. Como era certamente a intenção de nossa anfitriã, estabeleceu?se entre nós intenso contato.
Este artigo procura responder à seguinte ordem de questões: Por que os romances são escritos em prosa? Por que tão freqüentemente são histórias de aventuras? Por que houve, ao longo do século XVIII, uma ascensão do romance na Europa? O objetivo é alargar a noção de romance e os campos abarcados pelos estudos literários.
Existem muitas maneiras de falar sobre a teoria do romance, e a minha consistirá em colocar três questões: por que os romances são escritos em prosa; por que tão freqüentemente são histórias de aventuras; e por que houve, ao longo do século XVIII, uma ascensão do romance na Europa, e não na China. Por disparatadas que possam parecer, essas questões têm origem em uma mesma idéia, que orienta a coleção O romance: “alongar, alargar e aprofundar o campo literário”, em outras palavras, torná?lo historicamente mais longo, geograficamente mais largo e morfologicamente mais profundo do que aqueles poucos clássicos do realismo europeu ocidental do século XIX que têm dominado a teoria recente do romance (e meus próprios trabalhos). O que essas questões têm em comum, portanto, é que elas todas apontam para processos onipresentes na história do romance, mas não em sua teoria. Neste artigo, vou refletir sobre essa discrepância e sugerir algumas alternativas possíveis.
O artigo pretende aferir algumas das correspondências e problematizações presentes no livro de S. Kracauer, O ornamento da massa, e nas cartas trocadas entre ele e Theodor W. Adorno.
O ornamento da massa foi publicado em 1963, quando Siegfried Kracauer tinha 74 anos. A idade era algo que ele procurava de todos os modos ocultar; nas cartas que trocou com Theodor Wiesengrund Adorno, à época da organização e publicação do livro, essa questão aflora com a maior intensidade e é nomeada por Adorno um tabu — e assim aceita por Kracauer. Podemos cogitar que Kracauer — nascido em 1889 — se sentisse um homem de outro tempo, cuja vida havia sido vivida em um outro mundo, que não aquele dos anos de 1960. O que é verdade, embora não resuma toda a verdade.
O artigo sugere hipóteses para compreender o realinhamento eleitoral que teria ocorrido em 2006. O subproletariado, que sempre se manteve distante de Lula, aderiu em bloco à sua candidatura depois do primeiro mandato, ao mesmo tempo em que a classe média se afastou dela. A explicação estaria em uma nova configuração ideológica, que mistura elementos de esquerda e de direita. O discurso e a prática, que unem manutenção da estabilidade e ação distributiva do Estado, encontram?se na raiz da formação do lulismo.
Talvez no futuro, quando for escrita a crônica factual dos dois mandatos presidenciais de Luiz Inácio Lula da Silva, o pleito de 29 de outubro de 2006 apareça como mera repetição dos resultados numéricos de quatro anos antes, em que o candidato do PT venceu o do PSDB por uma diferença em torno de 20 milhões de votos. Remanescerá então encoberto, sob cifras quase idênticas, o deslocamento que, com o aspecto superficial da consagração do lulismo, pode ter significado, na verdade, um importante realinhamento político de estratos decisivos do eleitorado.
Edu Marin Kessedjian