Porque preferi Hamon a Mélenchon

Ruy Fausto
Ensaio

No primeiro turno das eleições presidenciais francesas, diversos eleitores potenciais de Benoît Hamon decidiram votar no candidato Mélenchon, pensando que isso constituiria um voto útil. Outros se dispuseram até mesmo a votar em Macron por temerem uma vitória do Front Nacional (FN). Quando a mim, votei em Hamon.

 

Por que Hamon e não Mélenchon? Sem dúvida, Mélenchon fez uma bela campanha. Suas qualidades de tribuno e de debatedor não podem ser negadas. E, mesmo assim, temos aqui um problema. Diferente do que frequentemente se supôs, a questão não está no programa econômico de Mélenchon. Diria que a dificuldade principal também não está nas suas posições acerca da Europa. Façamos uma revisão das diferenças após o debate (ou melhor, o diálogo) entre os economistas Jacques Généreux e Thomas Piketty, que são, respectivamente, conselheiros de Mélenchon e de Hamon. As divergências no plano econômico são mínimas. Nada que pudesse justificar duas candidaturas distintas. Quanto à Europa, talvez haja um hiato um pouco maior, mas, a meu ver, nada de extraordinário. Nos dois casos, eles se dispõem a negociar melhores condições para a participação da França na União Europeia. Para os dois candidatos, não se exclui tampouco a possibilidade de uma eventual saída dessa União. Ao menos essa é a impressão que tive ao ouvir os representantes de cada um.

 

Restam ainda outros pontos, sobre os quais as pessoas discutem um pouco, mas não o suficiente, na minha opinião. Trata -se das posições de Jacques Mélenchon no plano da política internacional e de sua visão global da esquerda. Mélenchon não esconde sua simpatia por Chavez, posiciona-se favoravelmente ao governo chinês quanto à repressão do Tibet, é um grande admirador dos irmãos Castro e tem uma posição no mínimo ambígua diante do autocrata Putin e do criminoso Assad. Tudo isso não teria tanta importância? Não consigo acreditar.  Essas são questões decisivas e que pesam muito no momento de escolher o candidato da esquerda. Quanto a mim, vejo-me totalmente impossibilitado em apoiar um candidato de esquerda que se posicione dessa maneira. Mélenchon justifica sua opinião sobre as personagens aqui citadas dizendo que procura sempre “o que elas têm de melhor, e não o seu lado negativo”. Essa formulação (que é quase literal) é completamente insuficiente. Ou até mesmo escandalosa. Poderíamos dizer que se buscarmos “o lado bom” de qualquer um sempre encontraremos alguma coisa. Hitler fez estradas magníficas na Alemanha; por outro lado, liquidou 6 milhões de judeus… Esse é um jeito de argumentar completamente irresponsável.

E, mesmo assim, em nome do voto útil, muitas pessoas que deveriam ter votado em Hamon deixaram todas essas questões de lado e votaram no Mélenchon. Não se trata de culpabilizar. Eu também tive um momento (embora bem breve) de hesitação.  Esse voto útil foi um erro. Assim como, a fortiori, o voto em Macron no primeiro turno.

O programa de Hamon era bom, muito bom. Por outro lado, a sua campanha não foi mais que mediana. Ele deveria  justamente ter discutido com o outro candidato de esquerda, sem medo de um embate “fraternal” (esses confrontos, se soubermos como conduzi-los, podem ser positivos e não negativos, para todos os envolvidos).  A campanha de Hamon teve suas outras insuficiências, por exemplo, não ter falado o suficiente sobre desemprego apesar do seu interessante projeto de renda mínima universal, mas vamos em frente.

O resultado do voto alegadamente “útil” fez com que enfraquecêssemos perigosamente a candidatura de Hamon. Claro, essa migração dos votos permitiu que Mélenchon chegasse a quase 20% do eleitorado. Bom resultado para a esquerda, porém inflado em nome de um candidato que professa um credo político – de esquerda, é verdade, mas bem contestável em vários aspectos. Claro que houve também o fator “carisma“ (a meu ver, em alguma medida, indispensável em política), que esteve presente em Mélenchon, e ausente em Hamon. Mas, de minha parte, não creio que o carisma  do primeiro seja inseparável de pelo menos uma boa parte do conteúdo das suas posições. E, de uma forma mais geral, não acho que o carisma vá necessariamente junto com certas deformações históricas da esquerda.

Conhecidos os resultados, que classificam Macron e Le Pen para o segundo turno, Mélenchon não dá orientação de voto. Erro manifesto, que é, além de tudo, sintomático. Macron é, certamente, um liberal que não tem nada a ver com a esquerda. Só que, do outro lado, há uma candidatura chauvinista e xenófoba, que representa um perigo para a democracia (por mais imperfeita que ela seja na França e em qualquer outro lugar). Não podemos dizer o mesmo da candidatura de Macron, mesmo se seu programa liberal não prometa, no melhor dos cenários, mais do que uma continuação da situação terrível em que vivemos (desemprego) e, no pior deles, um agravamento desta.

Le Pen não é diferente nesse aspecto. Não nos enganemos com seu programa social e “estatizante”. O Front Nacional se vangloria de não pertencer ao “sistema” –  esse argumento também irá assolar a campanha do segundo turno e poderá causar estragos.  Há uma meia verdade nessa afirmação: o FN e Le Pen, em certo sentido, estão fora do sistema; no sentido de representarem o apodrecimento do sistema, a atualização de tudo o que há de pior nele. Mutatis mutandis, poderíamos dizer do FN e de Le Pen o mesmo que diríamos de Mussolini e do fascismo. Eles encarnavam justamente a decomposição do sistema (a decomposição em si; e não qualquer estágio posterior: aliás devemos sempre verificar se o “novo” é melhor ou pior). Ao mesmo tempo, e por essa mesma razão, os partidos chauvinistas reafirmam os princípios do sistema. Afinal, ou eles não trazem nada de novo ou eles trazem algo de novo, mas no  pior sentido, o novo representado pela decadência e a putrefação.

Nestas circunstâncias, o voto Macron no segundo turno, sem qualquer tipo de compromisso mais amplo com esse candidato, é absolutamente essencial  – um gênero  de iniciativa  que, é bom lembrar, Mélenchou tomou no passado. Ao não se posicionar claramente entre os dois candidatos no segundo turno, Mélenchon mostra suas deficiências e ambiguidades no que diz respeito à democracia. Um verdadeiro democrata não duvidaria  um só instante de que é necessário votar em Macron, independentemente das qualidades negativas  desse candidato. De resto, Mélenchon e os seus apoiadores se apresentam como grandes vencedores, e há até quem reprove Hamon e seus eleitores por não terem apoiado o candidato da France Insoumise (Franca Insubmissa), no final da campanha do primeiro turno. Esquecem-se de que cerca de um quarto dos votos de Mélenchon, ou até mais, vem de eleitores potenciais de Hamon, o que já é muito.

Agora, além do esforço necessário para impedir uma vitória do FN no dia 7 de maio (bem improvável, mas não impossível, infelizmente), deve-se reorganizar a esquerda. Reorganizar com base na clareza, lucidez e na coragem de dizer aquilo que deve ser dito, sem temer cisões dentro de nossas linhas. É pelo embate de ideias que a esquerda progride. Não por capitulações teóricas e práticas, ou pela confusão ideológica em nome de uma frente unidade e de pseudo-exigências do pragmatismo. As atitudes políticas “úteis” não estão muitas vezes onde o senso comum acha que estão. É ao afirmar os princípios de uma esquerda democrática, anticapitalista, ecológica, antipopulista que iremos progredir verdadeiramente, quaisquer que sejam as derrotas transitórias que ela esteja fadada a sofrer.

Deve-se prestar atenção para a pluralidade de deformações que podem afetar a esquerda (e que realmente a afetaram) nos últimos cem anos. Há o reformismo-adesista, o neototalitarismo, o populismo. À propósito, a meu ver, apesar de seu estilo, o ponto fraco de Mélenchon está mais para aquele que citei em segundo lugar do que para aquele que citei em terceiro. Ele não procura a conciliação de classes e sua conduta não tem vestígios de nepotismo. Nesse sentido, mesmo que seu estilo possa ser chamado de populista (além de sua simpatia por gente como  Chavez), o candidato da France Insoumise não é “populista”, a rigor. Suas insuficiências são melhor caracterizadas se dissermos que ele tem uma certa fraqueza por tudo que é “neototalitário”. Não quero dizer com isso que ele é totalitário, mas eu afirmaria que, nesse ponto, ele se posiciona de uma maneira mais do que ambígua.  Apesar das aparências, esse tipo de erro não é pequeno, mesmo de uma perspectiva prática imediata.

Dito isso, façamos uma avaliação realista e corajosa do primeiro turno da eleição presidencial. Avancemos com um bom programa, mas com mais combatividade e coragem para a discussão (principalmente dentro da esquerda). E, naturalmente, busquemos o caminho para um discurso que, sem populismo ou outras deformações, seja audível para as grandes massas da população, mais ou menos desorientadas, diante da situação muito difícil  em que o capitalismo “financeirizado” globalizado as deixou. Se tivermos realmente consciência de tudo isso e agirmos em conformidade, a situação política da esquerda não será tão negativa quanto se pensa. Apesar de tudo, há, de fato, vários sinais positivos.

Artigo escrito em francês e traduzido por Juliana Ruiz.

Ruy Fausto é professor emérito da USP e doutor em filosofia pela Universidade Paris I