Pandemia, mobilização social e Atenção Primária à Saúde na cidade de São Paulo

Vera Schattan
especial pandemia

 

Por Vera Schattan P. Coelho, Felipe Szabzon, Maria Izabel Sanches Costa, Lenora Bruhn

12 ago. 2020

 

 

Este texto apresenta resultados das atividades do Observatório da Atenção Primária à Saúde em tempo de Covid-19. O Observatório, em colaboração com o Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento do Cebrap e a equipe de Educação Permanente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, Programa de Atenção Integral à Saúde (SPDM-PAIS), tem realizado encontros periódicos para discutir a atuação da Atenção Primária à Saúde durante a crise no município de São Paulo. Coordenada por Mariane Ceron, a equipe de Educação Permanente da SPDM-PAIS tem organizado as videoconferências “Covid-19 e Atenção Primária”. Coordenados por Vera Schattan P. Coelho, os pesquisadores do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento, Gabriela Lotta, Alex Shankland, Felipe Szabzon, Maria Izabel Sanches Costa, Lenora Bruhn, sistematizaram essas discussões e levantaram, compilaram e analisaram materiais de outras fontes. O resultado vem sendo publicado pelo blog da Novos Estudos. Este é o terceiro artigo da série.

 

Paraisópolis, Maré, Heliópolis, Cidade Tiradentes, Complexo do Alemão e Sapopemba fazem parte de um conjunto bem maior de territórios periféricos onde os moradores estão se mobilizando para definir e implementar estratégias de combate à Covid-19. As ações e os objetivos que orientam essas iniciativas variam, assim como seu estilo, que pode ser mais autônomo ou dependente, combativo ou colaborativo. Apresentamos a seguir uma dessas iniciativas, a da Brigada pela Vida de Sapopemba: recuperamos um pouco da sua história e das suas ações, indagando se e como elas têm se articulado com as instâncias do SUS, sobretudo com aquelas da Atenção Primária à Saúde (APS) que estão presentes no território, para minorar os impactos da pandemia.

A Brigada pela Vida de Sapopemba tem história. Alguns de seus líderes vivem ali desde os anos 1970, quando não havia luz, transporte, saneamento ou asfalto. Desde então, lutam pela melhoria das condições de vida na região, que atualmente conta com uma boa rede de saúde pública, infraestrutura viária, escolas e serviços de assistência social. Ainda assim, Sapopemba tem a maior densidade populacional da zona leste de São Paulo, com mais de 21 mil habitantes por quilômetro quadrado, muitos dos quais vivem em áreas ocupadas sem água canalizada e esgoto e em moradias precárias (Censo 2010).[1] Hoje aparece na triste posição de campeã de mortes por Covid-19 no município.

Com a crise sanitária, inspiradas pela Brigada Emergencial da Saúde (organizada no Nordeste), lideranças de Sapopemba, que há muito militam em diferentes frentes, como os movimentos de Saúde, de Moradia, da Infância e Adolescência e o Centro de Direitos Humanos, se reuniram em torno de um antigo ideal: coordenar as iniciativas e reivindicações. Juntos, têm buscado defender direitos, cobrar e apoiar o poder público e, também, promover a educação popular, ensinando e aprendendo com a população.

Francisca Ivaneide, ativa no movimento popular de saúde desde os anos 1980 e uma das líderes da Brigada, comenta sobre a grata surpresa de ter visto como o movimento avançou rapidamente a partir de reuniões on-line. “Parece que a gente até conseguiu se juntar mais, cada um no seu serviço ou na sua casa, discutindo e apontando soluções para um momento tão difícil como o que estamos vivendo. Fiquei animada, foi tudo muito rápido. Em abril começamos, e em 25 de maio aprovamos o Manifesto da Brigada pela Vida”.

No horizonte, entre vários projetos do grupo, há o desejo de implantar uma Brigada nas 32 subprefeituras do município. O ritmo e o formato que a iniciativa tem seguido variam em função da organização e da estrutura dos movimentos presentes em cada uma dessas regiões. Em Sapopemba, dado o histórico de movimentos sociais, a Brigada está atuando em uma ampla gama de atividades, pressionando as autoridades locais a empreender ações concretas para impedir a disseminação do coronavírus e, também, dando-lhes apoio na busca de soluções localmente adequadas que levem em conta os intrincados problemas socioeconômicos da região.

 

Iniciativas no território

Uma das primeiras iniciativas da Brigada, diante do cenário desolador causado pela pandemia, foi convocar, com a ajuda de vereadores e deputados, reuniões extraordinárias com diferentes pastas do governo municipal para articular ações preventivas relativas à disseminação do vírus. No território, existiam espaços de interlocução já abertos aos movimentos. No caso da saúde, por exemplo, como os conselheiros já tinham uma relação mais próxima com a supervisão técnica da área na região, o contato foi mais fácil, e reuniões regulares têm sido feitas.

Cidadãos e conselheiros têm sido orientados por membros da Brigada a como se conectar digitalmente, o que tem contribuído para garantir um quórum expressivo nas reuniões, que têm periodicidade mensal. No dia 25 de junho, aconteceu a primeira delas, que contou com a participação de cerca de 70 pessoas, entre membros da Brigada, gestores e profissionais de saúde. Durante o encontro foram feitas reivindicações por mais transparência e detalhamento nos dados do número de infectados e de óbitos em cada um dos microterritórios da região.

Já de posse desses dados, a Brigada se articulou com as 16 unidades básicas de saúde do território. Juntos, coordenaram um ato pelas principais vias de cada área, priorizando as mais afetadas. Um mutirão de profissionais ligados a diferentes políticas sociais distribuía nas ruas máscaras de proteção doadas por empresas e conversava com passantes e comerciantes que estavam nas ruas. Lenços pretos foram colocados nos portões em sinal de luto pelas mortes na comunidade, e um carro de som oferecido por um sindicato prestava homenagem às vítimas. Ao mobilizar pessoas que gozam de credibilidade na região e divulgar em linguagem adequada os riscos e o número de mortos nas diferentes áreas do território, esta iniciativa contribuiu para a conscientização da população quanto à gravidade da pandemia. Segundo depoimentos citados por André Ferreira da Silva, coordenador de um centro para crianças e adolescentes e um dos organizadores da iniciativa, “através da ação da Brigada pela Vida, os comerciantes conseguiram visualizar, por exemplo, a seriedade da questão e a mortalidade que tem ocorrido na região. Eles agradeceram muito. Muitas vezes não tinham acesso a informações mais desagregadas”.

Em outro momento, os membros da Brigada chamaram a atenção para situações com grande potencial de contaminação como a das feiras livres. Como oferecem produtos a preços atrativos, são muito populares e normalmente estão organizadas em três fileiras, a formação de aglomerações é favorecida. A Brigada procurou a secretaria de subprefeituras para sugerir que, em vez de organizadas em três fileiras, as feiras fossem montadas em uma longa linha, a fim de evitar aglomerações.

Outra ação que tem mobilizado a diretoria da Brigada é a organização de uma pesquisa (estilo survey) para compreender quais são efetivamente os elementos que têm impedido as pessoas de realizar o distanciamento social. A expectativa é de que a pesquisa traga elementos que ajudem a identificar tanto prioridades a partir das quais a Brigada possa atuar como também ações que possam ser cobradas do governo para sanar os problemas.

 

Participação e governança da Atenção Primária à Saúde em tempos de Covid-19

“Quando o movimento anda, a Secretaria anda.” Ouvir essa frase sendo proferida tanto por brigadistas como por gestores da saúde reforça a aposta na contribuição que a Brigada pela Vida de Sapopemba pode dar ao trabalho da APS. Acompanhando as iniciativas acima descritas, vemos exemplos de como o conhecimento das dinâmicas locais e a articulação comunitária das lideranças sociais entre si e com gestores públicos têm auxiliado o trabalho da APS, seja na comunicação com a população, seja na articulação entre políticas sociais, ou, ainda, na prevenção da contaminação pela Covid-19.

A imagem de uma cidadania ativa abre caminho para refletirmos sobre a tão discutida urgência de renovação nos arranjos de participação social no SUS. Diante das pressões postas pela pandemia e da trágica realidade de Sapopemba, campeã das mortes na cidade, a Brigada inovou ao encetar uma ação menos segmentada, mais integrada entre os setores – saúde, assistência, educação, justiça – e mais focada em ações concretas de enfrentamento da Covid-19.

Em um momento de crise, o capital político acumulado ao longo de muitos anos contribuiu para que as lideranças da Brigada, ao articularem setores da sociedade civil organizada em diferentes áreas da política social, fomentassem ações intersetoriais e valorizassem o conhecimento de quem vive a realidade local e conhece as necessidades dos seus moradores. Esse enfoque inovador, combinado à ação conjugada do movimento com os serviços e gestores públicos da região, permitiu aliar estratégias e saberes, fazendo convergir informação e mobilização a partir de uma concepção de saúde atenta à prevenção, à promoção e aos direitos.

 

[1] Censo Demográfico (2010). Características da população e dos domicílios: resultados do universo. Rio de Janeiro: IBGE, 2011.

 

Sobre os autores

Vera Schattan P. Coelho é doutora em políticas públicas, pesquisadora associada do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), coordenadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap e professora do programa de Políticas Públicas da UFABC.

Felipe Szabzon é mestre em saúde pública e pesquisador do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap.

Maria Izabel Sanches Costa é doutora em saúde pública e pesquisadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap.

Lenora Bruhn é mestre em sociologia e pesquisadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap.

 

Ato Promovido pela Brigada em parceria com as Unidades Básicas de Saúde. Foto: Elisabete Silvério.