Na corda bamba de sombrinha: renda do não trabalho e bem-estar das famílias em contextos de choques sistêmicos

especial pandemia

 

Por André Roncaglia de Carvalho, Eloiza Regina Ferreira de Almeida, Luciana Rosa Souza e Solange Gonçalves

 

20 nov. 2020

 

A loteria do mercado constrói e reproduz desigualdades. Esforço e recompensa são articulados sempre sob o olhar cuidadoso do acaso e sob a força da distribuição de heranças e de competências. As dificuldades típicas da ascensão social são amplificadas pelas quedas recorrentes durante a escalada. Ter onde se apoiar durante um escorregão permite um retorno mais rápido. No entanto, para muitas famílias, a realidade é ainda mais áspera. Não se trata de aspirar ao alto, mas de sobreviver. Dia após dia, a “esperança equilibrista” visa não piorar sua situação.

A diferença entre subir a escala social e escapar do abismo da miséria reside na composição e na estabilidade da renda familiar. Com fontes variadas, esta última é composta pela soma do rendimento do trabalho de todas as pessoas empregadas em um domicílio (ou família) e do rendimento de todas as outras fontes que não se relacionam diretamente ao trabalho remunerado. Os outros rendimentos são chamados de renda do não trabalho, a saber: a) as aposentadorias e pensões; b) os benefícios de programas de transferência de renda, tais como o Programa Bolsa Família, o Benefício de Prestação Continuada (BPC) e outros programas de transferência de renda municipais e estaduais; c) o seguro-desemprego; d) as doações recebidas pelas famílias de organismos não governamentais e privados; bem como e) rendimentos advindos de investimentos, aluguéis e bolsas de estudos.

Na estrutura de distribuição e produção de renda no Brasil atual, a renda do não trabalho é parte significativa do total da renda percebida pelas famílias. Mais do que isso, a redução do nível de pobreza e extrema pobreza observada no país até meados de 2013 é diretamente explicada pelo aumento nas transferências governamentais, em especial ao surgimento e expansão, a partir de 2003, do Programa Bolsa Família (PBF). Se o valor do benefício básico não supera a linha da extrema pobreza, as famílias podem receber recurso extra no valor exato para suprir este déficit de renda. As famílias pobres com crianças de até 15 anos, adolescentes entre 16 e 17 anos ou gestantes e nutrizes também recebem benefícios variáveis. Além dos recursos monetários oferecidos pelo PBF, estudos indicam benefícios potenciais derivados das condicionalidades de frequência escolar e saúde, que podem ter efeitos para a quebra do ciclo intergeracional de pobreza.

Outra fonte de renda do não trabalho com impacto significativo no percentual de famílias em situação de pobreza no Brasil, principalmente nas áreas rurais, é o Benefício de Prestação Continuada (BPC), da Lei Orgânica da Assistência Social (loas). Esse programa garante o benefício de um salário mínimo mensal, reajustado de acordo com as variações do salário mínimo nacional, para pessoas com deficiência e idosos com 65 anos ou mais que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção e não tenham ajuda familiar.

Sendo assim, essas fontes de renda que não estão relacionadas à atividade laboral mensal dos membros de uma família perfazem uma importante fatia do total da renda domiciliar mensal das famílias mais pobres. Além disso, essas fontes de renda – PBF, BPC, aposentadorias, pensões, e outros programas de transferência municipais e estaduais – apresentam maior estabilidade ao longo do tempo. Isso permite que as famílias suavizem e mantenham o seu nível de consumo e o bem-estar dos seus membros, o que é particularmente importante em momentos de choques na renda do trabalho de um ou mais membros. Algumas dessas fontes de renda são garantidas aos indivíduos pelo restante do seu ciclo de vida – tais como aposentadorias, BPC e pensões por morte e invalidez.

A Figura 1 foi construída com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para o período de 2017 a 2019. As famílias foram classificadas entre pobres crônicas e transitórias com base no número de entrevistas em que elas permaneceram na pobreza.[1]

 

Figura 1: Percentual de famílias por tipo de rendimento (2017-19)

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da PNADC 2017-2019.

 

É evidente a relevância das fontes de renda do não trabalho[2] para o orçamento familiar mensal. Somente 14% das famílias cronicamente pobres contam com alguma renda do trabalho, enquanto 35% dessas famílias percebem somente rendimentos do não trabalho, e 30% têm ambas as fontes de renda. Impressiona que 21% dessas famílias não possuam qualquer fonte de renda. Já as famílias em pobreza transitória apresentam perfil de renda semelhante ao perfil dos não pobres (ou nunca pobres, dentre os cinco trimestres em que observamos as famílias na PNADC), sendo a diferença o percentual com nenhuma renda (9% das pobres transitórias) e o percentual que conta apenas com a renda do não trabalho.

Esses dados permitem refletir sobre a centralidade da renda do não trabalho. As famílias em pobreza permanente não sobreviveriam com nível mínimo de bem-estar sem essa fonte de renda. Os pobres transitórios enfrentam situação de privação que é possivelmente determinada pela falta de uma renda mais constante e estável. Choques de mercado de trabalho podem anular a renda do trabalho ou gerar valor insuficiente para se manter fora da pobreza.

Dessa forma, os choques de saúde e de renda provocados pela Covid-19 salientaram as estratégias de sobrevivência das famílias pobres, revelando a importância de políticas de transferência de renda e de assistência e seguridade social. A principal ação pública de alívio para a situação de pobreza das famílias brasileiras ao longo dos últimos seis meses tem sido o Auxílio Emergencial, tema de variados debates acadêmicos e políticos. De acordo com o Ministério da Cidadania, 95,2% dos beneficiários do PBF receberam até a quinta parcela do Auxílio Emergencial.

Dados da PNAD-Covid-19 (IBGE) para os meses de maio e junho de 2020 mostram que 72% das famílias extremamente pobres, 79% das famílias pobres e 32% das famílias não pobres[3] apresentavam algum membro beneficiário do Auxílio Emergencial (Figura 2), evidenciando a importância que esse benefício pode ter tido em relação à manutenção do consumo e bem-estar mínimo de um grande número de famílias no Brasil, em especial daquelas que já vivenciavam algum grau de privação e que poderiam passar a uma situação de miséria e insegurança alimentar ainda mais extrema. Desse universo, 13,6 milhões de famílias (95,2%) recebem a quinta parcela do Auxílio Emergencial e 661 mil permanecem recebendo o valor regular do programa.

 

Figura 2: Percentual de famílias por tipo de beneficiário (maio-junho 2020)

Fonte: Elaborado pelos autores com base nos dados da PNAD-Covid-19.

 

 

Simulações realizadas após a aprovação do Auxílio Emergencial previam uma redução da pobreza em torno de 10 pontos percentuais, assumindo diferentes cenários de perda de emprego.[4] Os dados da pnad-Covid-19 (IBGE) divulgados confirmaram as previsões. Em função da ampla cobertura e do elevado valor do benefício, Duque (2020) estimou uma redução da pobreza de 25% para cerca de 22% e da pobreza extrema de 5% para 3,5% já no primeiro mês de divulgação da pesquisa.

Apesar de o Auxílio Emergencial promover uma redução da desigualdade, amenizando o impacto negativo da queda da renda média dos trabalhadores informais e das famílias mais pobres, questionamentos sobre seus efeitos de médio e longo prazo preocupam. A natureza temporária do benefício alerta para o que pode ocorrer após seu término. Segundo Barbosa e Prates (2020), a pobreza pode atingir um quarto da população e a desigualdade pode crescer vertiginosamente para patamares que não víamos desde os anos 1980. Além disso, dois grupos localizados no meio da distribuição de renda podem estar desprotegidos e ter sofrido perdas sem qualquer compensação, indicando uma possível consequência contraintuitiva da desigualdade de renda com a classe média economicamente afetada, tornando-se mais semelhante aos estratos mais pobres (Prates; Barbosa 2020).[5]

A pandemia colocou em relevo a aflitiva situação material de dezenas de milhões de pessoas no Brasil. Mostrou também como é relativamente “barato” reduzir a pobreza de forma significativa. O desafio persiste e ganha maior vulto. Conforme a tecnologia vai tornando escassos os bons empregos, um maior contingente populacional tende a depender da renda do não trabalho. Andar “na corda bamba de sombrinha” será uma realidade para cada vez mais pessoas mundo afora. Por isso, é melhor pensarmos em como construir um viaduto para atravessarmos os tempos difíceis que o futuro nos guarda.

 

[1] Cálculos realizados conforme os critérios de elegibilidade do Programa Bolsa Família para definição de pobreza (renda domiciliar per capita inferior a R$ 170,00 e R$ 178,00) e extrema pobreza (renda per capita inferior a R$ 85,00 e R$ 89,00), respectivamente entre o primeiro trimestre de 2017 e o segundo trimestre de 2018; e do terceiro trimestre de 2018 ao quarto trimestre de 2019. Considera a amostra de famílias da PNAD (IBGE), de 2017 a 2019, que permaneceram na pesquisa durante cinco trimestres, identificadas como crônicas aquelas que foram classificadas como pobres por quatro ou cinco trimestres; transitórias aquelas classificadas como pobres por um, dois ou três trimestres e não pobres aquelas que não se classificam como pobres em nenhum dos cinco trimestres.

[2] Para o cálculo da renda do não trabalho, são considerados os benefícios do PBF, do BPC e de outros programas sociais do governo; aposentadorias e pensões; rendimentos de seguro-desemprego; doações; rendimentos de aluguel ou arrendamento; e rendimentos como bolsa de estudos, rendimento de caderneta de poupança e aplicações financeiras.

[3] Pobreza e extrema pobreza definidas com base no critério de elegibilidade do Programa Bolsa Família e renda do trabalho efetiva.

[4] Conforme mostram os estudos de Komatsu e Menezes Filho (2020) e de Barbosa e Prates (2020), com simulações dos efeitos partindo dos dados da PNADC e aplicando os critérios de elegibilidade.

[5] Trata-se do grupo de indivíduos que transitam constantemente entre a formalidade e a informalidade, entrando e saindo da pobreza e daqueles que não são elegíveis ao Auxílio Emergencial, que em condições usuais não estariam em risco, mas foram duramente atingidos pela desaceleração econômica e/ou por acordos de redução de salários.

 

Referências bibliográficas

Barbosa, R. J.; Prates, I. “Efeitos do desemprego, do auxílio emergencial e do Programa Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda (MP n. 936/2020) sobre a renda, a pobreza e a desigualdade durante e depois da Pandemia”. Notas Técnicas – Ipea, Mercado de Trabalho, n. 69, jul. 2020.

Duque, D. “Auxílio Emergencial faz pobreza cair em plena pandemia”. Disponível em: <https://blogdoibre.fgv.br/posts/auxilio-emergencial-faz-pobreza-cair-em-plena-pandemia>. Acesso em: 6/10/2020.

Komatsu, B.; Menezes Filho, N. “Simulações de impactos da Covid-19 e da Renda Básica Emergencial sobre o desemprego, renda, pobreza e desigualdade”. Insper, Policy Paper, v. 43, 2020.

Prates, I.; Barbosa, R. J. “The Impact of Covid-19 in Brazil: Labour Market and Social Protection Responses”. The Indian Journal of Labour Economics, 2020, pp. 1-5.

 

Sobre os autores

André Roncaglia de Carvalho é docente do departamento de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador associado ao Cebrap. Tem pesquisas nas áreas de desenvolvimento econômico e desigualdade de renda e riqueza no Brasil.

Eloiza Regina Ferreira de Almeida é mestre em economia e desenvolvimento pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora associada ao Cebrap. Tem pesquisas nas áreas de mercado de trabalho, economia regional e diferenciais de gênero.

Luciana Rosa Souza é docente do departamento de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora na área de políticas públicas para mitigar a pobreza e desigualdade no Brasil e na América Latina. Pesquisadora associada ao Cebrap.

Solange Gonçalves é docente do departamento multidisciplinar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora associada ao Cebrap. Doutora pela Universidade de São Paulo (usp), com pesquisa nas áreas de dinâmica da pobreza, economia do trabalho e avaliação de políticas públicas.

 

Câmara Legislativa do Distrito Federal, 28/4/2015 Foto: Renato Araújo/Agência Brasília. Fonte: WikiCommons.