Cultura, pandemia e a crise do que já estava em crise

especial pandemia

Por Maria Carolina Vasconcelos Oliveira

8 jun. 2020

Um assunto que tem sido recorrente nas análises produzidas mundialmente sobre a pandemia de Covid-19 é o dos seus impactos no setor cultural. A Unesco declarou estarmos vivendo uma situação de “emergência cultural”: instituições e equipamentos culturais estão perdendo milhões a cada dia e tendo que fazer demissões massivas; artistas estão lutando para manter condições básicas de sobrevivência. No contexto brasileiro, a FGV Projetos calculou uma perda de R$ 46,5 bilhões e um encolhimento de 24% no setor da cultura e das indústrias criativas nacionais (Caldeira, 2020). Já o Cedeplar (Machado et al., 2020), baseado em prospecções feitas a partir do Sistema de Indicadores e Informações Culturais do IBGE, previu que uma paralisação de três meses na prestação de serviços artísticos e culturais realizados fora do domicílio resultaria numa queda de R$ 11,1 bilhões na economia brasileira – considerando que cada R$ 1 a menos investido no setor reverbera em R$ 1,6 a menos na economia – e numa queda de 21,2% no valor bruto anual da produção do próprio setor. O mesmo informe afirma que “a pertinência da formulação de políticas públicas que incentivem o setor cultural é gritante” (ibidem, p. 17).

Naquela que considero a mais interessante pesquisa produzida nacionalmente sobre o tema – por seu esforço em produzir dados primários, por seu alcance nacional, por não ser restrita a determinadas linguagens artísticas ou expressões culturais e por estar sendo produzida em instituições que estão fora do eixo de produção de conhecimento do Sudeste –, o Observatório de Economia Criativa da Bahia (2020) mostra que mais de 70% dos indivíduos e das organizações que responderam à pesquisa no início do mês de maio acreditam que sofrerão diminuição nas suas receitas pelo menos até o final de 2020 (ou para além de 2020). Pela mesma pesquisa, intitulada Impactos da Covid-19 na economia criativa, 90% dos entrevistados relataram cancelamento de atividades de trabalho desde o início da pandemia, sendo que mais de 60% relataram terem tido de cancelar entre metade e a totalidade de suas atividades (Observatório de Economia Criativa da Bahia, 2020). Além de noticiar e tentar dimensionar a crise, vemos instituições no mundo todo, como a própria Unesco, proferindo em tom quase emotivo: agora precisamos da cultura mais do que nunca. “A cultura nos faz resiliente e nos dá esperança”; “nos lembra de que não estamos sozinhos” (Unesco, 2020). Entre precariedade e romantização, seguimos.

Algo que me parece tão fundamental quanto óbvio afirmar, neste momento, é que não se trata de uma crise que afeta um contexto que, no momento anterior, não estava em crise. Ao contrário, trata-se de crise sobre crise. Obviamente isso não significa minimizar os efeitos da pandemia no setor cultural (ou em nenhuma outra esfera da existência, vale deixar claro), mas somente reconhecer que essa catástrofe sanitária e a decorrente necessidade de paralisação das atividades externas – fundamental para garantir alguma capacidade de operação ao sistema de saúde – agravam brutalmente algumas situações de vulnerabilidade que a esfera da cultura já vinha vivenciando no contexto brasileiro, e que vieram se deteriorando de forma especialmente acentuada nos últimos cinco anos.

Algumas dessas fragilidades são relativamente comuns a campos culturais de outros países do mundo, por exemplo, a precariedade vivenciada pelos trabalhadores da cultura que, via de regra, não têm amparo institucional para lidar com a intermitência, uma característica recorrente desses mercados de trabalho, e convivem com a informalidade, a ausência de direitos trabalhistas e sociais e a necessidade de atuar em muitas frentes de trabalho ao mesmo tempo, de modo a tentar minimizar períodos sem rendimento. Uma pesquisa recente que realizamos no Cebrap (em parceria com o Fundo Internacional para a Diversidade Cultural da Unesco), e que envolveu um diagnóstico de circuitos de produção cultural periférica de quatro cidades de diferentes regiões brasileiras, mostrou que mais de 40% dos artistas ou agentes culturais entrevistados utilizavam recursos próprios para financiar suas atividades culturais, normalmente oriundos de outros trabalhos (muitos deles, “bicos”). Nunca é demais lembrar também que o “mercado” já não era a solução para uma parte considerável do setor cultural mesmo antes da pandemia. Nas artes cênicas, por exemplo, há estudos mostrando que, em grande parte das produções, os recursos oriundos de bilheterias não são suficientes para cobrir as despesas necessárias ao desenvolvimento das obras (e isso em países como a França, que não vivenciam a escassez de públicos com a mesma intensidade que ocorre aqui).

A crise trazida pela pandemia reacende discussões sobre condições especiais de seguridade social para artistas e trabalhadores da cultura em países como Portugal e Espanha (ver, por exemplo, Guedes, 2020, que discute a condição dos trabalhadores das artes do espetáculo em Portugal), bem como dentro do debate da própria Unesco. Não seria exagerado dizer que a pandemia escancara a ausência de proteção social, a precariedade e a falta de reconhecimento de certas ocupações culturais como “trabalhos”. E, com uma dose talvez exagerada de otimismo, seguimos esperando que, num futuro utópico pós-pandêmico, essa crise possa desencadear discussão mais estrutural e profunda sobre as condições de trabalho na cultura.

Outra vulnerabilidade que a pandemia escancara em diversos países, especialmente no Sul Global, é a fragilidade das estruturas de política cultural, além da própria escassez de orçamentos para as pastas da cultura. No Brasil, impressiona a rapidez com que estruturas institucionais desenvolvidas nas últimas décadas podem ser inteiramente desmontadas. A dança das cadeiras no antigo Ministério da Cultura, ele próprio agora extinto, presenciada depois do golpe de 2016, bem como a facilidade com que políticas e processos são interrompidos, é assustadora. O próprio Sistema Nacional de Cultura, fruto de discussões de quase uma década e que, pesadas suas necessidades de ajustes, era de fato uma política cultural consistente e uma proposta sólida de atuação do Estado junto à sociedade civil no universo da cultura – a ponto de ter sido incluído no texto da Constituição Federal –, parece ser agora uma agenda completamente abandonada no nível federal. Isso leva grande parte da comunidade cultural à percepção de que “não temos garantia de nada”, mesmo a despeito da criação de instituições, aparatos legais, cargos. A sensação é a de que nunca dá tempo de os processos que ocorrem na esfera da política cultural serem institucionalizados de fato.

A situação se revela ainda mais grave quando lembramos que parte considerável dos setores culturais depende de investimentos públicos, especialmente investimentos diretos, que tendem a ser drasticamente cortados em períodos de crise. Como se não bastasse, vivenciamos ainda outra camada de vulnerabilidade, que, a meu ver, é a mais problemática dos últimos anos – talvez porque simplesmente já tenha me acostumado às outras. Trata-se de uma ameaça que opera no campo da Política com P maiúsculo (ou da politics), expressa por uma violenta disputa de narrativa da direita conservadora sobre aquilo que deve ser considerado “cultura”, ou “a boa cultura”, ou ao menos “a cultura que merece investimento público”. Um dos tantos responsáveis pela pasta de cultura que circularam na esfera federal nos últimos anos foi bastante explícito ao convocar artistas conservadores a se unirem numa “guerra cultural” contra o pensamento entendido como “marxista” ou simplesmente “de esquerda”.

Claro que isso não é uma exclusividade do Brasil: há literatura de outros países do mundo atestando que uma das pautas prediletas dos governos mais orientados à direita e/ou a agendas conservadoras em termos morais é o corte de recursos e a tentativa de asfixia dos setores culturais, e ainda mais especialmente de suas agendas relacionadas à diversidade (de expressões culturais, de identidades e de gêneros). No Brasil recente, no entanto, essa disputa parece vir ganhando um tratamento estético peculiar, algo que oscila entre (ou às vezes sobrepõe) o extremamente violento, o fantasioso e o cômico. E há o agravante de que parte considerável da população está aderindo às narrativas de que os artistas e agentes culturais “não são trabalhadores” e ao discurso que deslegitima não só o investimento público em cultura, como a própria existência daquilo que vem se constituindo como a comunidade cultural nas últimas décadas – e aqui a metáfora da guerra, mobilizada pelo antigo secretário, é suficientemente clara em sua proposição de extermínio. Ou seja, a necessidade de resistência da comunidade cultural e dos trabalhadores da cultura, no momento atual, além de material e física (relacionada ao contexto da pandemia), é também simbólica.

No que diz respeito a este último ponto, algumas das visões romantizadas que operam dentro das próprias classes culturais, especialmente artísticas, a respeito do fazer artístico como algo que, de tão especial, não pode ser tratado nos mesmos termos de outras ocupações, tende a dificultar ainda mais a situação, na medida em que reforça a separação entre esses atores sociais e o que seria o “cidadão comum” – ou o “trabalhador”, termo que a direita conservadora vem utilizando para definir o cidadão que merece alguma consideração do Estado e da própria sociedade. A dificuldade de reconhecimento do estatuto de trabalhador para os artistas e outros realizadores culturais, a meu ver, vem em parte dessas narrativas, que sabemos serem heranças dos períodos em que os campos artísticos conquistaram suas autonomias e se estabeleceram em suas formas modernas (via de regra, na passagem do século XIX para o XX). Minha posição é a de que algumas dessas representações precisam ser superadas para podermos conquistar o reconhecimento dos artistas e realizadores culturais como trabalhadores e portadores de direitos trabalhistas.

Os movimentos culturais nacionais têm mostrado uma capacidade de mobilização relativamente alta nas últimas décadas, ainda que no momento atual, por diversos motivos, as condições não sejam muito propícias para a mobilização. Ainda assim, vale destacar uma conquista recente, a aprovação, na Câmara dos Deputados, do Projeto de Lei 1.075/2020, que dispõe sobre ações emergenciais para o setor cultural, uma resposta à pandemia que prevê ações de compensação para indivíduos mais vulneráveis e espaços culturais. Esse projeto de lei foi desenhado com participação de movimentos da sociedade civil, o que pode sugerir que, se não parece haver diálogo com o poder executivo no nível federal, talvez ainda seja possível uma disputa democrática no legislativo – e esperamos que continue sendo. Em alguns estados e municípios há medidas sendo tomadas diretamente pelo poder executivo, o que também significa alguma margem de ação.

Outra decorrência da crise que merece destaque é a emergência de ações de solidariedade postas em práticas pelos próprios movimentos culturais da sociedade civil (ligados tanto às linguagens artísticas, como associações de classe, quanto ao território, como os de periferias, ou a grupos culturais específicos). Em muitos locais, esses grupos têm desenvolvido suas próprias medidas emergenciais e compensatórias, como campanhas de doação, coleta e distribuição de cestas básicas, campanhas de sensibilização, entre outras. Menciono essas iniciativas – que, vale dizer, deveriam ser obrigações do Estado – não para romantizá-las, mas para atestar a existência de uma capacidade (ou ao menos de uma potência) de mobilização por parte das comunidades culturais.

Seria desejável, antes de mais nada, retomar a capacidade do Estado de garantir direitos básicos para a população que se encontra em situação mais vulnerável durante a pandemia, independente do setor de ocupação. E é claro que a luta pelo tratamento específico a trabalhadores e instituições culturais faz sentido neste momento, tendo em vista que a necessidade de isolamento social afeta brutalmente a produção cultural em todas as suas etapas – criação, circulação e consumo. De outro lado, é importante também termos em mente que a atual crise lança luz sobre algumas vulnerabilidades que não estarão resolvidas depois que a pandemia terminar.

Para finalizar esta reflexão, é fundamental lembrarmos ainda que a cultura não se resume à sua dimensão sociológica, ou à porção que é organizada socialmente em torno da produção de bens e serviços específicos. O universo das expressões culturais engloba também práticas e valores que não podem ser enquadrados dentro de uma perspectiva econômica (mesmo quando pensamos no sentido mais sociológico do termo economia). Para além da discussão sobre o setor cultural, há a dimensão da cultura como modo de vida, há o reconhecimento do exercício da cultura como dimensão da cidadania e como algo que se relaciona a processos de construção de identidades e relações de pertencimento. E nesse ponto, há de se lembrar que alguns grupos e algumas comunidades culturais estão em situação ainda mais vulnerável do que os grupos que são identificados como “setores culturais”, e aqui poderíamos pensar nas comunidades indígenas, quilombolas, além de grande parte das comunidades culturais de periferia – para os quais o risco de vida, associado à possibilidade de contrair a doença e à dificuldade de conseguir tratamento, talvez ainda grite mais alto do que o econômico.

 

Maria Carolina Oliveira é socióloga e artista cênica, pesquisadora e professora em temas relacionados às artes e à cultura. É mestre e doutora em Sociologia (FFLCH-USP) e pós-doutoranda no Instituto de Artes da Unesp. Integra o Núcleo de Desenvolvimento do Cebrap desde 2005.

 

Referências bibliográficas:

CALDEIRA, João Bernardo. “Com o coronavírus, cultura deve perder R$ 46,5 bilhões”. Valor Econômico, 09/04/2020. Disponível em: <https://valor.globo.com/eu-e/noticia/2020/04/09/com-o-coronavirus-cultura-deve-perder-r-465-bilhoes.ghtml?fbclid=IwAR0nPNpdP6kTH7eVWxOFuau84VphZkwz8SxoWnITixy_XXzZiKEDcDBw8eQ>. Acesso em: abril de 2020.

GUEDES, Tiago. “Estranha forma de vida”. Público, 29/04/2020. Disponível em: <https://www.publico.pt/2020/04/29/culturaipsilon/opiniao/estranha-forma-vida-1914197>. Acesso em: maio de 2020.

MACHADO, Ana Flávia; FREIRE, Débora; MICHEL, Rodrigo; MELO, Gabriel, GUIMARÃES, Alice. “Nota técnica: Efeitos da Covid-19 na Economia da Cultura no Brasil”. CEDEPLAR, UFMG, 23/04/2020. Disponível em: https://www.cedeplar.ufmg.br/noticias/1235-nota-tecnica-efeitos-da-covid-19-na-economia-da-cultura-no-brasil?fbclid=IwAR3NTzOtXgv2v5IGcni5_Fe8U4NXtTg3Ur_12r6J986rL-wl9zmvl4y_2DQ

OBSERVATÓRIO DE ECONOMIA CRIATIVA DA BAHIA (2020). “Impactos da Covid-19 na Economia Criativa”. Disponível em: <https://ufrb.edu.br/proext/economiacriativa-covid19/>. Acesso em: maio de 2020.

PROJETO DE LEI N. 1.075/2020. Dispõe sobre ações emergenciais destinadas ao setor cultural, enquanto as medidas de isolamento ou quarentena estiverem vigentes. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2242136>. Acesso em maio de 2020.

UNESCO, 2020. “ResiliArt: Artists and Creativity beyond Crisis”. Disponível em: <https://en.unesco.org/creativity/news/resiliart-artists-creativity-beyond-crisis> Acesso em: abril de 2020.

 

Fonte: foto de Antony Ruggiero disponível em FreeImages.