Alfred Stepan e os problemas da democracia

Paulo Sérgio Pinheiro
Ensaio

Paulo Sérgio Pinheiro

 

Alfred Stepan nos deixou no último 27 de setembro, aos 81 anos, em seu apartamento em  Nova York, com vista para o Rio Hudson, que tanto o encantava. Era Wallace S. Sayre Professor de Governo na Universidade de Columbia e diretor do Centro de Estudos e também ali diretor do Centro de Estudos da Democracia, Tolerância e Religião.

Muitas de suas descobertas conceituais e empíricas em centenas de artigos e  seus dezessete livros publicados tiveram origem em sua pesquisa de campo realizada no Brasil, muitas vezes em colaboração com estudiosos  brasileiros. Desde o começo de sua pesquisa ali, teve condições de construir uma base de hipóteses sobre o que ele considerava como questões fundamentais relativas às rupturas dos regimes democráticos e as relações civis- militares. Empiricamente e teoricamente Stepan acreditava que diferentes países na Ásia ou no Oriente Médio compartilhavam algumas questões-chave presentes em suas pesquisas no Brasil, e que respostas para as perguntas fundamentais que formulava sobre aqueles casos poderiam ser respondidas por pesquisa de campo comparativas.[i]

Stepan contribuiu para criar o moderno campo de estudo relações civis-militares, primeiro com seu livro The Military in Politics: Changing Patterns in Brazil[ii], que foi censurado pelos militares, depois liberado para se tornar um best-selller e novamente censurado pela ditadura militar no Brasil. Em outro livro, Rethinking Military Politics: Brazil and the Southern Cone[iii], publicado muitos anos depois, aprofundou a temática. Ambos foram traduzidos para várias línguas. Outras obras de Stepan, como  seu livro coeditado Authoritarian Brazil e o seu volume The State and Society. Peru in Comparative Perspective[iv] contribuíram para o desenvolvimento de conceitos tais como corporativismo inclusivo e excludente. Com Juan J. Linz, Stepan produziu duas obras fundadoras dos estudos sobre democratização, ambas originadas em sua pesquisa no Brasil. Esses livros são The Breakdown of Democratic Regimes, construído a partir da derrubada da democracia no Brasil em 1964 e o estudo de Linz sobre a queda da República de Weimar na Alemanha, e Problems of Democratic Transition and Consolidation: Southern Europe, South America and Post-Communist Europe construído sobre a análise da abertura no Brasil.

Durante toda sua longa e profícua carreira como autor e pesquisador, Stepan sempre foi um generoso e infatigável construtor de instituições, especialmente de estudos brasileiros e latino-americanos. Stepan recebeu seu PhD da Universidade de Columbia em dezembro de 1969 e em 1970 foi nomeado Professor Assistente na Universidade de Yale, então o mais influente departamento de ciência política nos Estados Unidos. Ele foi rapidamente promovido, e se tornou professor titular, full professor, em 1976.

Em Yale, Stepan foi Diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos de 1971 até 1982. A primeira grande conferência internacional que ele organizou em Yale levou à publicação, em 1973, do livro Authoritarian Brazil: Origins, Policies and Future envolvendo como participantes, entre outros, Fernando Henrique Cardoso, Luciano Martins, Albert Hirschman e Juan J. Linz. Durante a gestão de Stepan o programa de Estudos Latino-Americanos de Yale se fortaleceu pela contratação de Emília Viotti da Costa[v] para o departamento de história e de Albert Fischlow para o departamento de economia. Esse programa aumentou substancialmente, graças ao fato de que Yale ganhou vastos auxílios de pesquisa de várias fundações e programas, como Carnegie e Ford, mais do que qualquer outro programa da América Latina nos Estados Unidos durante este período.

Em 1983, Stepan foi nomeado dean da School of International and Public Affairs (SIPA) na Universidade de Columbia. Como tal, ele criou um Centro para Estudos Brasileiros no SIPA (presidido por ele e dirigido por Albert Fishlow); ofereceu regularmente seminários sobre politica pública brasileira, muitas vezes em parceria com inúmeros acadêmicos brasileiros visitantes que eram convidados pela SIPA.

Em Yale, Columbia, Universidade da Europa Central e Oxford, apesar das tarefas de construção institucional, Stepan insistiu em lecionar, sempre trazendo seu luminoso comprometimento com a democracia, o humanismo e os direitos humanos. Stepan não podia viver sem seminários, aulas, conferências, nas quais milhares de colegas e estudantes participaram, em cinco continentes. Um seminário com Stepan era uma espécie de instalação, une oeuvre totale. De muitos deles participei (e algumas vezes oficiei com ele) em Columbia, na Maison des Sciences de l´Homme, em Paris, e na Universidade de   Oxford. Stepan gostava sempre de mencionar o inesquecível seminário que demos juntos num semestre em 1985 sobre a transição política no Brasil. A cada semana, professores como Maria do Carmo Campello de Souza, Ralph Della Cava, brasileiros ministros do Supremo, antigos ministros, líderes sindicais, advogados (lembro-me de Eduardo Muylaert Antunes, assessor especial do governador Franco Montoro), embaixadores, escritores, se juntavam a esse experimento, transformando-o numa espécie de laboratório para desenvolvimentos posteriores na transição política no Brasil.

A partir desta base na SIPA, Stepan criou o projeto que culminou no livro Democratizing Brazil: Problems of Transition and Consolidation[vi] com o Cebrap. Metade dos que contribuíram para este projeto eram brasileiros (Edmar L. Bacha, Pedro S. Malan, Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort, e Maria do Carmo Campello de Souza). A fim de levar as realizações culturais da América Latina para públicos mais amplos, Stepan conseguiu largo financiamento para uma série televisiva de 10 horas chamadas Americas que recebeu três prêmios.

Em seus períodos de sabático, Stepan visitou frequentemente o Brasil para discutir sua pesquisa com os colegas brasileiros. Na primavera de 1982 ele foi Tinker Visiting Scholar no Cebrap. No outono de 1989 ele foi fellow no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Depois que retornei pela primeira vez da Columbia University para São Paulo, motivado pelo trabalho com Stepan, concentrei-me na dimensão da violência do Estado e direitos humanos, temas que pouco interessavam à maioria dos professores em meu departamento de ciência política na USP. Alguns anos depois, em 1987, inspirado no Center for the Study of Human Rights, de Columbia, o sociólogo Sergio Adorno e eu fundamos o Núcleo de Estudos da Violência, NEV/USP. Durante três décadas, Stepan foi um interlocutor e conselheiro. Sempre que visitava o Brasil vinha discutir conosco as perspectivas do NEV/USP. Ele elogiava o Núcleo tão entusiasticamente que éramos obrigados a fazer um grande esforço para demonstrar  que éramos o que Stepan dizia mundo afora sobre nós[vii].

Em 1993 Stepan tornou-se o fundador e primeiro Reitor e Presidente da Universidade da Europa Central – CEU em Budapeste e Praga. Depois de terminar seu período como Reitor, Stepan se mudou para o Reino Unido, onde ele foi nomeado como Gladstone Professor of Government e fellow do All Souls College, na Universidade de Oxford. Em Oxford, Leslie Bethell trabalhou com Stepan para criar o que veio a se tornar o Centro de Estudos Brasileiros, sob a direção de Bethell.

Stepan foi, de fato, um grande mentor de gerações de acadêmicos, e certamente a vida de muitos deles, de formas inesperadas, foi transformada por terem-no encontrado ou trabalhado com ele (como foi certamente o meu caso). Ele supervisionou ou co- supervisionou mais de 40 dissertações de PhD, pelo menos 25 das quais foram publicadas em livro, que depois se tornaram luminares em seus campos de pesquisa.

Muitos desses inúmeros estudantes se tornaram luminares em suas áreas e reconhecidos internacionalmente: Guillermo O’Donnell, que esteve no primeiro seminário de Stepan em Yale e se tornou o primeiro Diretor Acadêmico do Kellogg Center na Universidade de Notre Dame; Scott Mainwaring, recentemente nomeado para a cadeira de Estudos Brasileiros na Universidade de Harvard e que escreveu sobre a Igreja Católica e os partidos políticos no Brasil; Katherine Sikkink, Ryan Family Professor de Política de Direitos Humanos da JFK School – Harvard University e Margaret Keck, professora de Ciência Política na Universidade Jons Hopkins, que são coautoras do livro que examina em profundidade o caso do Brasil Activists Beyond Borders. Keck foi ainda autora de The Worker´s Party and Democratization in Brazil[viii] um dos primeiros estudos sobre o Partido dos Trabalhadores, hoje considerado clássico; o saudoso Paulo de Mesquita Neto (1961 – 2008), cuja tese de doutoramento foi considerada por Stepan, seu orientador, a melhor já defendida na SIPA na área dos estudos sobre forças armadas e violência do Estado. Paulo, retornando ao Brasil para ser um dos coordenadores do NEV/USP, se revelou até sua morte uma das referências maiores no continente sobre violência e direitos humanos.

Além  de seus postos universitários, Stepan contribuiu de forma consistente  para o desenvolvimento das atividades de direitos humanos na América Latina. O primeiro comitê de Human Rights Watch  de direitos humanos  foi a America’s Watch, da qual Stepan foi um dos primeiros membros. Stepan foi líder e coautor do relatório de 244 páginas sobre a missão da America’s Watch no Chile, publicado como Chile: Human Rights and the Plebiscite em 1988. Sobre essa missão ele escreveu no mesmo ano o artigo “Últimos dias de Pinochet?” para o New York Review of Books. Stepan começou sua carreira como jornalista para o The Economist; contribuiu regularmente com artigos traduzidos para o Project Syndicate, assim como com entrevistas para programas de rádio e televisão como o NPR’s “All Things Considered”, “The Take Away”, BBC World Service, O Globo, e Al Jazeera.

Stepan foi trustee da Universidade de Notre Dame e o Padre Hesburgh, Presidente da Universidade, após receber uma grande doação ,pediu a Stepan para que se incumbisse de elaborar um projeto com três características: teria que ser algo novo, que valesse a pena, e ao mesmo tempo se encaixasse com a missão da Notre Dame. O resultado foi o Kellogg Center, com seu foco pioneiro em Direitos Humanos e Democratização do Cone Sul. Desde sua fundação, o Kellog Center recebeu 44 fellows visitantes e acadêmicos vindos do Brasil.

Como membro do Social Science Research Council sobre a América Latina, Stepan, com outros acadêmicos, foi instrumental para que o Comitê quebrasse sua intelectual e politicamente indefensável tradição de restringir a participação de membros de todos os comitês regionais SSRC para os cidadãos dos Estados Unidos.

Mais além de seu trabalho no Brasil e na América Latina, Stepan estendeu sua pesquisa sobre democratização para análises das novas democracias em países de maioria muçulmana na Indonésia, no Senegal e na Tunísia (país ao qual ele viajou para fazer pesquisa seis vezes desde a Primavera Árabe em 2011). Stepan criou  um dos mais citados conceitos no estudo de religião e democracia, o de “Twin Tolerations”, e com Juan J. Linz fez uma das críticas mais rigorosas da teoria de estado-nação, elaborando em seu lugar a noção de “nação-estado”, entendida como um estado que é capaz de manter dentro de seu território identidades culturais múltiplas, porém, complementares.

Stepan, com base em suas pesquisas, demonstrou teoricamente que todas as tradições religiosas são “multi-vocais”, no sentido que abrigam uma diversidade de crenças e práticas, algumas apoiando a democracia, outras não. Para demonstrar que a democracia é possível em estados com grande diversidade étnica, linguística e cultural, Stepan passou uma década estudando a Índia. Ele demonstrou empiricamente que centenas de milhões de muçulmanos vivem e apoiam a governança democrática em democracias como Índia, Indonésia, Senegal, Albania e Tunisia.[ix]

Alfred Stepan foi seguramente durante meio século um dos mais inovadores e influentes acadêmicos nos campos de política comparada, autoritarismo, democratização e religião e política no mundo[x][xi]. Nenhum outro cientista politico fez pesquisa de campo em 25 diferentes países em cinco continentes.

Stepan criou uma nova ênfase sobre os processos de transição dos regimes autoritários e especialmente a consolidação política nas democracias pós. Ele trouxe o monopólio da violência legítima do Estado para a ciência política depois de décadas de esquecimento.

O afã de toda a vida de Stepan como pesquisador  pode ser bem sintetizado em seu motto[xii] “Todos os aspectos da pesquisa em política comparada são fundamentalmente voltados para a solução de problemas”. Stepan acreditava que não vale a pena pesquisar em ciências sociais a não ser o que seja importante para a vida concreta no mundo. Na sua busca incansável pelos insondáveis e inesperados caminhos para realizar a democracia, sempre com paixão e imensa generosidade, encontrou respostas para novas problemáticas  mundo afora.

 

Paulo Sérgio Pinheiro é professor titular (aposentado) de Ciência Política da USP.

 

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[i] Ver Stepan, Alfred (2016),  A life in comparative politics: Chasing questions in five continents”, International Political Science Review, Vol 37, Issue 5, p.691-705.

[ii] Stepan, Alfred (1979). Os Militares na Política As Mudanças de Padrões na Vida Brasileira. Rio de Janeiro: Artenova.

[iii] Stepan, Alfred (1986). Os Militares: Da Abertura À Nova República, Rio de Janeiro: Paz e Terra.

[iv] Stepan, Alfred (1980). Estado, Corporativismo, Autroitarismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

[v] Emília Viotti faleceu em outubro de 2017 , aos 89 anos . Estudiosa do tema da escravidão, Emília lecionou no Departamento de História da Universidade de São Paulo entre 1964 e 1969, quando foi aposentada pelo AI-5. Na ocasião, seguiu para os Estados Unidos, onde foi professora emérita de história da América Latina na Universidade de Yale (EUA). Voltou ao Brasil no final dos anos 1990 e, em 1999, recebeu o título de professora emérita na USP. http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/11/1932413-morre-historiadora-emilia-viotti-da-costa-89-estudiosa-do-brasil-colonial.shtml.

[vi] Stepan, Alfred (1988). Democratizando O Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

[vii] Reconhecendo os vínculos de Stepan com a USP, numa celebração memorial para Alfred foi transmitido a sua mulher, Nancy Stepan, professora emérita de história da Columbia Uniiversity, um diploma in memoria agraciando Stepan com a medalha Fernando de Azevedo e o título de professor honorário da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, assinado pela diretora da FFLCH, professor Maria Arminda do Nascimento Arruda, entregue pelo professor emérito da mesma Faculdade, Fernando Henrique Cardoso, ex- presidente do Brasil e por Pinheiro.

[viii] Keck, Margaret (1991). PT – A lógica da diferença: o partido dos trabalhadores na construção da democracia brasileira. São Paulo: Ática.

[ix]  Menchik, Jeremy (2017). “Alfred´s Stepan legacy”.  The Immanent Frame, Secularism, Religion and the public sphere .October 31. ver https://tif.ssrc.org/2017/10/31/alfred-stepans-legacy/

[x] Stepan foi eleito como fellow da American Academy of Arts and Sciences em 1991 e fellow da British Academy em 1997. Em 2002 foi agraciado com o título de Comendador da Ordem do Rio Branco. Stepan recebeu o Prêmio Kalman Silvert da LASA em 2009 pelas contribuições durante toda sua vida para o estudo da América Latina. Em 2012 ele recebeu o Prêmio Karl Deutsch, que é a honraria mais elevada ofertada pela Associação Internacional de Ciência Política para pesquisa comparativa. Em 2012, foi publicado um volume comemorativo, um festchrift que incluiu um artigo de Fernando Henrique Cardoso, “Reconciling the Brazilian Military with Democracy: The Power of Alfred Stepan’s ideas”: Chalmers, Douglas & Mainwaring, Scott (eds.) (2012). Problems Confronting Contemporary Democracies: Essays in Honor of Alfred Stepan. Notre Dame: University of Notre Dame Press.

[xi] Brown, Archie (2014). “Alfred Stepan and the Study of Comparative Politics”. Government and Opposition 49. abril: p. 313-330.

[xii] “All aspects of comparative politics research are, in a fundamental sense, problem-driven”.