A democracia na crise da meia-idade

Laura Carvalho
Debate, Resenha

Runciman, David. Como a democracia chega ao fim. São Paulo: Todavia, 2018

resenha por Laura Carvalho

 

“A motocicleta da meia-idade é usada poucas vezes e acaba estacionada para sempre. Ou passada adiante. A crise precisa ser resolvida de algum outro modo, se é que tem solução. Pois a democracia dos Estados Unidos está vivendo sua crise da meia-idade. Donald Trump é a motocicleta.” (Runciman, p. 11)

Através da metáfora utilizada desde a introdução de Como a democracia chega ao fim, David Runciman deixa claro que, ao contrário do que o título sugere, seu livro não é um atestado de óbito da democracia. A democracia de diversos países ricos estaria vivendo uma crise da meia-idade, como aquelas em que o homem infeliz chega aos 50 anos e compra uma motocicleta para se sentir jovem outra vez. Em ambos os casos, a crise não é fácil de atravessar e oferece riscos ao longo do percurso, mas o erro maior estaria em tentar retornar àquilo que não existe mais.

Muito embora considere que a democracia possa sobreviver por muito tempo, sobretudo nos países em que ainda é jovem, Runciman é fatalista: a democracia nunca mais voltará a ser o que era. O livro aborda com profundidade alguns desses sinais de envelhecimento – ou, se não aceitarmos o fatalismo do autor, dessas mudanças.

Seu ponto forte está, sem dúvida, na análise dos efeitos da revolução tecnológica e digital. Na visão de Runciman, a internet proporciona para os indivíduos o sentimento de participação e pertencimento que o sistema político democrático não tem conseguido gerar. Quanto mais as pessoas encontram o espaço para expressar suas frustrações e desejos nas redes sociais, menos se sentem representadas pela política partidária, que é enxergada como uma “atividade de grupelhos”. Daí a força dos chamados “movimentos políticos”, como o liderado por Emmanuel Macron na França, e dos “políticos que não se comportam como políticos”.

Mas como aponta o autor, a possibilidade de participação que as redes sociais oferecem é apenas pseudodemocrática, já que sua atividade é controlada por grupos econômicos gigantes, como o Facebook e o Google, que podem ser ainda mais opacos e refratários ao controle social do que os sistemas políticos nacionais.

“As redes sociais conferiram uma aparência de falsidade à democracia representativa. As versões falsas que existem na internet nos parecem mais reais. Por enquanto, destruímos uma coisa sem saber como substituí-la. O único substituto que temos é a versão esvaziada do mesmo que tínhamos antes. A máquina perdeu. A máquina venceu.”  (p. 161)

Embora não nos dê a resposta exata, Runciman nos convence de que algo novo deve ser construído para devolver aos indivíduos a possibilidade de participar do sistema político e sentir-se parte dele. Só assim seria possível competir com a ilusão democrática que as redes sociais proporcionam, talvez até utilizando a própria internet para isso.

O autor é muito menos feliz quando estabelece, em outras passagens, que as democracias maduras perderam a possibilidade de entregar resultados materiais para o conjunto da população.

“As batalhas para aumentar os direitos dos cidadãos já foram travadas e em grande parte vencidas. O Estado arca com os custos da vasta gama de serviços públicos que se espera que forneça. Os níveis da dívida, tanto pública quanto privada, estão altos. Os impostos talvez pudessem subir – já foram mais altos em alguns períodos, ao longo dos cem anos –, mas o apetite popular por pagar um valor maior é extremamente limitado.” (p. 79)

Em uma das raras vezes em que tratou de economia no livro, Runciman parece considerar o desmonte do Estado de Bem-Estar social observado nas últimas décadas inescapável. O Estado não teria mais a possibilidade de aumentar seus gastos, pois haveria um limite para o crescimento da dívida e da carga tributária.

Basta tomar o exemplo dos EUA para entender que sua hipótese é, no mínimo, questionável. Primeiro, não parece haver nenhum limite para a demanda por títulos da dívida pública norte-americana. Tais títulos continuam a desempenhar o papel de ativo de reserva de bancos centrais ao redor do mundo, pois apresentam baixíssimo risco e alta liquidez.

Segundo, a carga tributária norte-americana é muito inferior à de países europeus, por exemplo, e não há consenso na literatura econômica sobre qual seria a carga ideal, muito menos a máxima. Tampouco é verdade que a imensa maioria da população não teria “apetite” por aumentar impostos para os mais ricos, que concentram cada vez mais a renda e a riqueza nacional.

Terceiro, não está claro por que a economia não poderia continuar crescendo, gerando assim cada vez mais receitas para o Estado. Com uma população em queda, isso já seria suficiente para criar espaço para serviços públicos mais abrangentes e de maior qualidade. Se há um limite para o crescimento econômico, este é dado pela capacidade de absorção do planeta, que, infelizmente, não tem sido levada muito a sério.

Não há base concreta, portanto, para considerar que as demandas por um Estado que redistribua melhor a renda por meio da tributação e dos gastos sociais seriam outra forma de saudosismo, como sugere o autor. Runciman parece confundir, nesse caso, os limites que o neoliberalismo vem impondo à democracia – aquilo que nos trouxe ao que Pierre Dardot e Christian Laval, em A nova razão do mundo, chamam de era pós-democrática – com uma evolução inexorável do próprio regime democrático.

Quando observamos tantos dos elementos identificados por Runciman em uma democracia jovem como a brasileira, somos levados a crer que não estamos diante de sinais de velhice, e sim de sintomas de uma doença remediável, ou até mesmo, de marcas de agressão.

 

Laura Carvalho é economista, professora da FEA/USP, colunista da Folha de S.Paulo e autora de Valsa brasileira (Todavia, 2018)

Capa do livro de David Runciman