Um ano da morte de Marielle Franco

Entrevista

Novos Estudos entrevistou a socióloga Carolina Christoph Grillo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Cidadania Conflito e Violência Urbana (NECVU) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Grupo de Estudos sobre Novos Ilegalismos (GENI) da UFF. Autora de artigo sobre a intervenção federal no Rio publicado no blog da revista em março de 2018, Carolina Grillo comenta aqui o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes, que hoje completa um ano, e a ação dos chamados “milicianos” no estado do Rio.

 

Quando Marielle Franco foi assassinada, em 14 de março do ano passado, o Rio de Janeiro estava sob intervenção federal, encerrada em dezembro passado. Quais as implicações da morte de uma vereadora em um estado sob intervenção?

O assassinato de Marielle e Anderson foi desmoralizante para a Intervenção Federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que logo mais completaria um mês. Na ocasião, algumas pessoas chegam a responsabilizar o próprio Gabinete de Intervenção pelo crime, dado que a vereadora tinha anunciado a formação de uma comissão para averiguar violações de direitos humanos praticadas. Jamais acreditei nessa hipótese. Os interventores imediatamente acusaram as milícias, antes de qualquer resultado de investigação. Foi uma acusação imprudente, mas, ao que tudo indica, procedente.

Uma das leituras possíveis sobre o crime é a de que grupos criminosos ligados às polícias – hoje englobados na categoria “milícia” – estariam afrontando o Gabinete de Intervenção por meio do assassinato de Marielle. Não se trata de afirmar que tenha sido essa a motivação do crime, mas de que as disputas internas aos órgãos de segurança pública ofereceram o contexto para que o crime ocorresse justo nesse momento. A Intervenção Federal buscou subordinar as forças de segurança estaduais dentro de uma “cadeia de comando e controle” liderada por generais do Exército. Assumiu a Secretaria de Estado de Segurança (SESEG-RJ) e substituiu comandantes, delegados e chefe de polícia, prometendo combater as milícias e a corrupção policial. Obviamente, encontraram grande resistência dentro das polícias militar e civil, instituições conhecidamente ingovernáveis e caracterizadas por um tênue equilíbrio de forças entre poderosos grupos, muitos deles ligados ao crime organizado. Se os interventores acreditaram em algum momento que imporiam de cima para baixo uma nova ordem às polícias, logo aprenderam que não poderiam interferir nos negócios de determinados grupos.

Acredito que o assassinato de Marielle, já desejado há muito tempo pelos grupos criminosos que ela desafiava em sua atuação política, tenha funcionado nesse contexto como uma demonstração de força de certos blocos de poder dentro das polícias face à intervenção. Essa demonstração de força não se resumiu à execução de Marielle e Anderson, mas à obstrução das investigações ao longo de todo o período da intervenção. Como foi revelado recentemente, o chamado Escritório do Crime – organização de tipo “milícia” formada por policiais da ativa e da reserva – interferiu no andamento das investigações, que progrediram somente após a interferência da Polícia Federal e do Ministério Público. Tal revelação escancara o completo fracasso da intervenção em controlar as polícias e combater os grupos criminosos ligados a estas instituições.

 

Hoje se fala não mais nas milícias como poder paralelo, mas como o próprio Estado no que diz respeito ao Rio de Janeiro. Como se organizam esses grupos em relação ao tráfico e ao Estado propriamente? Como agem?

O termo “milícia” opera hoje como um guarda-chuva para designar organizações criminosas que exercem controle territorial em determinadas áreas e extraem recursos de diferentes maneiras, mas guardam em comum a participação de agentes e ex-agentes de segurança pública e defesa em seus quadros, além da íntima relação com políticos. Muitos dos grupos a que hoje denominamos “milícias” são originários dos “grupos de extermínio”, “polícia mineira”, as chamadas “máfias da van” e mesmo quadrilhas ligadas aos jogos de azar ilegais. Trata-se de quadrilhas que se utilizam do seu poder armado e das ligações com agentes públicos para impor taxas de segurança a comerciantes e explorar serviços como água, luz e TV a cabo desviadas e transporte informal. Moradia é também um importante mercado para esses grupos.

As milícias se beneficiaram bastante do déficit habitacional no Rio de Janeiro e cresceram junto com a expansão urbana na zona oeste da capital e municípios da região metropolitana. Milicianos trabalham com a grilagem de terras, loteando e vendendo terrenos, além de operarem como imobiliárias informais que cobram taxas sobre a compra, venda e aluguel de moradias. Como os moradores dessas áreas muitas vezes não possuem os títulos de propriedade de suas residências, os “contratos de gaveta” produzidos por milicianos conferem autenticidade às transações, pois estão respaldados por agentes públicos. Inclusive muitos condomínios do Minha Casa Minha Vida foram tomados por milícias, que definem quem pode morar lá e realizam a administração condominial.

Esses grupos de profissionais da violência também exercem práticas clientelistas, utilizando-se de suas ligações políticas para mediar o acesso a serviços públicos de saúde, educação e saneamento. Trabalham para estabelecer as bases eleitorais dos políticos a eles ligados e proíbem campanhas de outros candidatos em suas áreas. Essas ligações são de suma importância para a manutenção de seus negócios, pois as milícias perseguidas pela polícia são sempre e apenas aquelas ligadas a políticos que perderam influência nas casas legislativas, Prefeitura e Governo do Estado. À medida que cresce o contingente populacional sob o controle desses grupos, cresce também a sua influência sobre o poder público.

No início dos anos 2000, muitos políticos e a própria imprensa defendiam a expansão das milícias como uma alternativa ao controle territorial exercido por traficantes de facções como o Comando Vermelho, Amigos dos Amigos e Terceiro Comando Puro. No entanto, ficou claro com o passar dos anos que as milícias são mais violentas do que os “comandos”, sendo as taxas de homicídio muito mais elevadas em suas circunscrições de atuação. Além disso, milicianos estão cada vez mais envolvidos com a venda de drogas.

 

A alguns dias de se completar um ano da morte de Marielle, foram presos dois acusados de serem os assassinos. São nomes associados às milícias, que ampliaram muito seu poder nos últimos anos no estado do Rio. Como entender esse cruzamento da atuação política de Marielle e a ameaça que essa atuação pode ter representado para os milicianos?

Na verdade, as investigações ainda não estabeleceram com clareza qual a ligação dos dois acusados com as milícias, tampouco com quais milícias. Sabe-se que possuíam relações de amizade com membros do Escritório do Crime e com os executores da Juíza Patrícia Accioly, mas eles próprios não foram apontados como membros. Ronnie Lessa – vizinho de Jair Bolsonaro –, em particular, possui uma trajetória bastante emblemática das relações perigosas entre polícias e crime organizado. E essas relações em muito antecedem as milícias. Refiro-me aos grupos de extermínio, jogo do bicho e tráfico de armas.

No período em que Lessa integrou o extinto 9º BPM, recebeu uma série de “promoções por bravura”, a chamada “gratificação faroeste” concedida pelo ex-governador Marcelo Alencar a policiais que matavam suspeitos em serviço. O grupo de policiais matadores do 9º BPM chamava-se “Cavalos Corredores” e foram eles os responsáveis pela chacina em Vigário Geral. Lessa então foi cedido pela Polícia Militar à Polícia Civil e tornou-se adido da Delegacia de Repressão a Armas e Explosivos (DRAE), período em que trabalhou como segurança pessoal do famoso banqueiro do jogo do bicho, Castor de Andrade. Envolvido com as disputas territoriais do jogo do bicho, Lessa sofreu um atentado à bomba e perdeu uma perna, recebendo do Estado uma aposentadoria por invalidez. Reputado por sua mira infalível, tornou-se um conhecido “matador de aluguel”. Não sabemos ao certo se é propriamente um miliciano, mas a apreensão de armas realizada anteontem indica tratar-se de um poderoso traficante de armas.

É difícil saber qual a frente de atuação política da Marielle que motivou a sua execução. Ela vinha denunciando publicamente os homicídios praticados por policiais do 41° BPM – batalhão que substituiu o 9º BPM – e tinha participado ativamente da CPI das Milícias enquanto assessora do deputado Marcelo Freixo. Também vinha denunciando grilagens de terra praticadas por milicianos e parece que estava buscando uma aproximação com moradores de áreas de milícias. No mais, trabalhou sempre oferecendo suporte aos familiares de vítimas da violência do Estado que buscavam justiça e reparação. Não acredito que a sua atuação representasse de fato uma ameaça a esses poderosos grupos, mas o seu assassinato foi certamente um recado de intimidação para toda a militância e, talvez, também para o Gabinete de Intervenção. Este sim representava uma ameaça real aos negócios de determinados grupos criminosos ligados às polícias.

 

Em termos simbólicos, o assassinato, sem disfarces, de uma vereadora no centro da segunda cidade mais importante do país é um recado contundente e demonstração de poder. Agora, para explicar a motivação do crime, a polícia fala em “crime de ódio” e caracteriza um dos assassinos como alguém “obcecado por pessoas de esquerda”. Como ler essas narrativas à luz da disputa de forças no Rio?

Nota-se uma tentativa de encerrar o caso com a prisão dos executores. Daí as insinuações de que o crime talvez não possua mandantes. No ano passado, o ex-ministro Raul Jungmann afirmou ter certeza da participação de “poderosos” no assassinato de Marielle. Com a descoberta de que o Escritório do Crime vinha trabalhando para obstruir as investigações, a Polícia Federal e o Ministério Público, passaram a atuar também no caso. Estas são instituições que não estão submetidas aos desmandos de milicianos e a sua participação foi fundamental para que se encontrassem os suspeitos. Ainda assim, dependendo do quão poderosos forem os mandantes, talvez mesmo a PF e o MP sejam impedidos de chegar até eles.

A própria militância de esquerda oferece argumentos aos interessados em enterrar o caso quando insiste que Marielle foi morta por ser mulher, negra, favelada, LGBT e defensora dos direitos humanos. É evidente que esses elementos foram determinantes para que fosse ela a parlamentar escolhida para ser executada. No entanto, é também fundamental manter em vista que estamos nos referindo a assassinos profissionais relacionados a poderosos grupos do crime organizado, e não a indivíduos com problemas mentais como os jovens atiradores de Suzano. É certo que houve uma motivação pragmática para além do ódio. Estabelecidos profissionais da violência não se dariam ao trabalho de cometer um crime tão arriscado e bem planejado como esse apenas por ódio. São matadores de aluguel.

 

Como você conheceu Marielle? Que tipo de atuação teve na sua campanha para vereadora?

Além de ativista de direitos humanos, Marielle era, como eu, uma socióloga que pesquisava temas relacionados à violência e segurança pública. Tínhamos muitos amigos pessoais em comum e nossas filhas estudavam na mesma escola, mas não éramos amigas próximas. Com frequência eu a encontrava em eventos políticos e acadêmicos, blocos de carnaval e bares, mas tive apenas uma única conversa mais longa com Marielle.

Foi numa roda de conversa sobre milícias em 2014 na extinta Casa Nuvem, um espaço/coletivo de artistas ativistas. Após Marielle ter apresentado o trabalho e os resultados da CPI da Milícias, levantei alguns questionamentos sobre efeitos não esperados da tipificação do crime de “constituição de milícia privada”, que fora um dos legados da CPI. Meu argumento, baseado numa experiência de trabalho de campo em Gardênia Azul, era de que as associações de moradores desses bairros tinham sido criminalizadas e fechadas, o que de certo modo cerceava a possibilidade de mobilização dos moradores. Finda a roda de conversa, Marielle me interpelou para ouvir mais sobre o que eu tinha a dizer e demonstrou uma sincera preocupação com a viabilização da participação política dos moradores de áreas controladas por milícia.

Sempre admirei muito a sua atuação política e a força de suas falas públicas, por isso, transbordei de felicidade quando eu soube que Marielle ia se candidatar. Jamais me engajei formalmente em sua campanha, mas eu me empenhei em divulgar a sua candidatura nas redes sociais e pessoalmente. Usava adesivos, ia aos comícios e a “tietava” tirando fotos. Chorei de emoção quando ela foi eleita e tive o privilégio de poder abraçá-la em comemoração. Chorei copiosamente com a sua morte e jamais me conformarei.

 

 

Marielle Franco (By Mídia Ninja – Flickr, CC BY-SA 2.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=67353938)

 

a socióloga Carolina Cristoph Grillo (acervo pessoal)