Sobre trabalhadores e “vagabundos”

Resenha

 

Por Leonardo Fontes

20 jul. 2020

 

Kowarick, Lúcio. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. 3. ed. São Paulo: Editora 34, 2019.

 

Originalmente publicado em 1987, o livro Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil, de Lúcio Kowarick, ganhou nova edição em 2019. Acrescido de um capítulo que trata do “modo e condição de vida da população livre e despossuída”, o livro merece ser (re)lido por historiadores e cientistas sociais que se interessam pela questão do trabalho no país.

Rigoroso do ponto de vista metodológico – baseado em relatos de viajantes, documentos históricos, dados oficiais e fontes secundárias –, o livro é construído em cima de um referencial teórico marcadamente marxista, sem, com isso, cair nas armadilhas da ortodoxia, como manda a boa tradição da escola uspiana de sociologia. Assim, conceitos como “exército industrial de reserva”, “mais-valia absoluta” e a própria centralidade do trabalho na produção de valor são relidos à luz da realidade brasileira, na qual formas não capitalistas de produção – destacadamente o trabalho escravo – foram usadas para acelerar o avanço global do capitalismo.

Em alguns momentos, contudo, o livro resvala no economicismo, como quando trata do processo de abolição da escravidão sem dar o devido peso ao movimento abolicionista e às resistências organizadas pelos próprios escravos ou quando não cita as tentativas de “embraquecimento” da população brasileira por meio da imigração estrangeira. Os processos, por vezes, aparecem mais como resultado dos movimentos do capital do que das ações de atores e organizações sociais.

A questão que rege o livro trata da formação do mercado de trabalho no Brasil. Mais especificamente, do lugar ocupado por trabalhadores livres e pobres no capitalismo brasileiro ao longo da história. Cada capítulo da obra original trata de um período em que essa questão é explorada: colônia, império, abolição da escravidão, imigração e início da industrialização.

Como assinala o autor, a exploração do trabalho por meio do assalariamento requer a criação de relações sociais de produção, o que significa expropriar o trabalhador em um duplo sentido: material e culturalmente. Ou seja, de um lado, produzir condições materiais que impeçam a reprodução autônoma do trabalhador e o obrigue a vender sua força de trabalho; e, de outro, condicioná-lo psico e socialmente a se incorporar ao processo produtivo, aceitando sua condição de assalariado em vez de buscar qualquer outra alternativa.

Do ponto de vista material, a questão da restrição ao acesso à terra aparece como essencial – resolvida em grande parte pela “lei de terras” de 1850. Culturalmente, emerge a necessidade de produzir no trabalhador a “disposição” de ingressar na disciplina do trabalho organizado. A este segundo ponto, Kowarick dedica boa parte de suas reflexões mais instigantes.

O autor argumenta que “a ordem escravocrata contaminou as relações de trabalho desde os primórdios da colonização” (p. 51). Os livres e pobres eram encarados como segmento que poderia ser tratado de forma semelhante aos cativos, ou seja, sujeitos à superexploração até o limite da sobrevivência. Por sua vez, esses trabalhadores não teriam por que se submeter a tais condições enquanto houvesse mínimas condições de subsistência fora daquele sistema. Para eles, o trabalho organizado e manual era sinônimo da mais degradada forma de existência.

Por consequência, aqueles que não aceitavam as condições similares à escravidão eram tidos como “vadios” e “imprestáveis para o trabalho”. Tratava-se, portanto, de um sistema duplamente excludente, que criava ao mesmo tempo “a senzala e um crescente número de livres e libertos que se transformam nos desclassificados da sociedade” (p. 73).

A ideologia dominante a respeito da “inaptidão” ou “vadiagem” dos brasileiros serviu, por séculos, para justificar a longa permanência da escravidão. Com a abolição e a necessidade de rebaixamento de salários por meio de uma oferta abundante de força de trabalho, a mesma ideologia serviu para legitimar a importação de braços para substituir os ex-escravos.

No século XX, a nascente indústria paulista se valeu dessa mão de obra estrangeira abundante para manter os baixos níveis salariais. A situação muda apenas com início da Primeira Guerra Mundial, que reduziu significativamente o fluxo de imigrantes europeus para o país. Além disso, naquele período, o nascente movimento sindical de cunho anarquista passou a representar uma ameaça aos interesses dos industriais. Com isso, os brasileiros passaram a ser vistos, em algumas situações, como preferíveis aos estrangeiros, uma vez que “se contenta[m] com pouco, não busca[m] lucro fácil e, sobretudo, não reivindica[m]” (p. 127).

O capítulo 6, elaborado para esta nova edição do livro, cobre duas questões exploradas de forma apenas marginal na versão original do texto: a racial e a referente ao detalhamento das condições e do modo de vida no início do século passado. Trata-se de temas essenciais para explicitar a situação de miséria extrema em que se encontravam os trabalhadores no período analisado e o racismo estrutural que nos marca enquanto país.

O negro, que tem pouco destaque antes, aparece em vários momentos nesse novo capítulo, de modo a ressaltar como sua condição de ex-escravo o condenou a permanecer nos estratos mais baixos da pirâmide social e limitou sua atuação profissional a tarefas mais degradadas e mal remuneradas.

As contradições apontadas por Kowarick em torno da constante reprodução de elementos “arcaicos” em nossa modernidade permanecem atuais. Ao criar clivagens internas às classes populares e manter seu nível de reprodução extremamente baixo, o capitalismo brasileiro não cessa de reproduzir desigualdades aviltantes e condições de vida indignas para uma enorme “população livre e despossuída”.

Ademais, os estigmas acerca da ideia de que muitos pobres não prosperam por serem “vadios”, “malandros” “vagabundos” ou “bandidos” seguem presentes em discursos oficiais e se tornaram categorias nativas em nossas periferias urbanas, como atestam pesquisas das últimas décadas (Zaluar, 2000; Feltran, 2011; Fontes, 2018). Com isso, são articuladas justificativas morais para a exclusão social, jogando a responsabilidade pelo “fracasso” econômico sobre a própria população e minimizando os riscos de questionamento da ordem estabelecida (Machado da Silva, 2004).

 

Referências bibliográficas

Feltran, Gabriel. Fronteiras de tensão: política e violência nas periferias de São Paulo. São Paulo: Unesp, 2011.

Fontes, Leonardo. O direito à periferia: experiências de mobilidade social e luta por cidadania entre trabalhadores periféricos de São Paulo. Tese de doutorado – Instituto de Estudo Sociais de Políticos, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

Machado da Silva, Luiz Antonio. “Da informalidade à empregabilidade (reorganizando a dominação no mundo do trabalho)”. Cadernos CRH, v. 15, n. 37, 2002, pp. 81-109.

Zaluar, Alba. A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2000.

 

Sobre o autor

Leonardo Fontes é doutor em sociologia pelo IESP/UERJ, pesquisador de pós-doutorado no IPP Cebrap e bolsista Fapesp (Processo 2019/13125-2).

 

Capa do livro Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil, de Lúcio Kowarick. Foto: Dafne Sampaio.