Da dolorosa sensação da perda à da saudade serena há longo caminho de idas e vindas. Quando a perda é inesperada, o desalento ressurge quando menos se espera, em expressões de incredulidade ou manifestações de impotência. A perda de um amigo e companheiro de trabalho exige, como outras, um percurso de elaboração: lembranças socializadas com amigos comuns, silêncios cheios de sentido e olhares perdidos no vazio mais tempo do que o devido. Mas a perda de um amigo intelectual oferece sempre a possibilidade de reencontros no revisitar de sua obra. É o caso de John Monteiro, que nos abandonou de forma abrupta em março de 2013.
Resumo
Tive o privilégio de conhecer pessoalmente John Monteiro no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento quando, em 1992, ingressei no Programa de Formação de Quadros Profissionais. Naquela altura, e para desespero de alguns daqueles que reivindicavam relações mais ou menos densas com o já mítico “grupo do Capital” , muitos de nós, por razões variadas, propusemos um grupo de estudos do pensamento social brasileiro, que, coordenado por John Monteiro, durou muitos anos e teve um impacto central em várias dissertações e teses de doutorado em curso. Do grupo participaram ativamente Vinícius Figueiredo e Felipe Chaimovich, da filosofia; Angela Alonso, da sociologia; Miriam Dolhnikoff, Pedro Puntoni e Íris Kantor, da história; eu, Fernanda Peixoto e Luiz Donisete Grupioni, da antropologia. Também frequentava o grupo Maria Helena Machado e, eventualmente, convidávamos Luiz Felipe de Alencastro, Roberto Schwarz e Rodrigo Naves.
Chegará o momento da releitura sistemática da obra de John Monteiro, um balanço de sua contribuição decisiva para a história dos índios no Brasil expressa em livros, artigos, conferências e textos inéditos de sua autoria, mas não só: seu legado está nos trabalhos de um significativo grupo de orientandos e orientandas que, espalhados em sua maioria pelo Brasil e outros países da América Latina, carregam consigo o compromisso apreendido na convivência com o professor e orientador . Sua generosidade, contudo, tornou-o interlocutor de diálogos insuspeitos realizados em grupos de trabalhos de congressos e seminários, em bancas de tese e no dia a dia das instituições nas quais trabalhou.
O propósito aqui – uma breve especulação em torno das relações de seu trabalho sobre a história dos índios no Brasil no processo colonial e sua reflexão primeira, da mesma natureza, sobre as relações entre portugueses e nativos em terras de Goa no século XVI – merece um preâmbulo que, de natureza pessoal, pretende recuperar facetas da trajetória e da atuação de John que tiveram grande impacto em todo um grupo de pesquisadores, entre filósofos, historiadores, antropólogos e sociólogos, parte de uma mesma geração.
Apresento algumas ideias soltas para uma discussão. Estão de tal forma desarrumadas que nem mesmo servem de roteiro para uma pesquisa. É basicamente uma tomada de posição, provocações esperando causar algumas no pensar cotidiano. Parto do fato de que existem códigos morais. Não me interessa se e como são fundados, mas tão só que pessoas aceitem suas regras e se preparem para segui-las. A educação moral se faz pelos mais variados caminhos, mas termina ensinando a distinguir, de modo mais ou menos rígido, a boa e a má ação, assim como a aceitar que a prática dessas valorações está ligada a graus diferentes de reconhecimento, a elogios ou a discriminações.
Resumo
Educada, a pessoa moral é o que também ela deve ser. Não é por isso que sempre age corretamente, mas paga a transgressão pelo remorso, sente-se culpada e até mesmo pode se arrepender. A não ser que se sinta superior ao resto dos mortais, de sorte que toda ação lhe pareça boa porque provém da bondade natural de sua pessoa. Mas esse transgressor ignorante termina comprovando esta nossa observação de que a educação moral puxa a pessoa para além dela. O transgressor ignorante simplesmente se toma como sendo em negativo o que ele deveria ser.
Dificilmente uma educação moral é simples como acabo de sugerir. Ela se mistura com os compromissos familiais, com as lealdades da amizade, com o intercâmbio com os deuses. No entanto, seja como for, desenha um fio vermelho nas condutas humanas que as lançam para além delas próprias, numa transcendência que empresta valor a uma forma de vida, desenho de um modo de ser mais do que o simples fato de sobreviver. A serenidade que a vida moral pode trazer é muito frágil, porque está sempre ameaçada pelos desafios do cotidiano e pela solidariedade com os outros abertos às vicissitudes do mundo. O puritano responde a essa indefinição imaginando a norma como se fosse guilhotina capaz de decapitar os relevos dos fatos. O imoralista, como se seus desejos não afetassem seu perfil moral. São meros suportes da norma e deixam de negociar com ela. Viver moralmente, em contrapartida, é um constante ajuste do fato à norma, sempre tendo no horizonte a possibilidade do sacrifício de um ou de outro. Inclusive o de si mesmo se aceita, numa situação dada, correr risco de vida. Não é o que faz aquele que se lança na água para salvar um desconhecido? Se a pessoa moral acolhe esse perigo é porque se reconhece participando de uma forma de vida. Vida e morte são indissociáveis, embora saibamos, depois de Epicuro, que a morte não é uma experiência da vida.
As assim chamadas “jornadas de junho” brasileiras produziram um tremor de terra, porém não chegaria a qualificá-las, como Marx qualificou as jornadas de 1848, de terremoto, uma vez que o travejamento fundamental da ordem não foi questionado. As relações de classe e propriedade não estiveram diretamente no centro das manifestações e as regras do jogo político foram visadas de maneira difusa. Prova disso é que as propostas de Constituinte exclusiva e plebiscito para a reforma política caíram no vazio, tendo sido esquecidas quase logo depois que o mês acabou.
Resumo
Analisando pesquisas disponíveis sobre a composição social dos acontecimentos de junho, o autor sugere a hipótese de que podem ser simultaneamente expressão de uma classe média tradicional inconformada com diferentes aspectos da realidade nacional e um reflexo daquilo que denomina de “novo proletariado”: os trabalhadores, em geral jovens, que conseguiram emprego com carteira assinada na década lulista (2003-2013), mas que padecem com baixa remuneração, alta rotatividade e más condições de trabalho.
Se a memória não me falha, por volta da quinta-feira, 20, comecei a ouvir referências às manifestações que vinham ocorrendo como as “Jornadas de Junho”. Lembro-me de colegas, nos corredores da universidade, usando a expressão em caráter entre sério e brincalhão. Depois, eu próprio cheguei a utilizá-la em artigo de jornal . Algum tempo passado, no entanto, hesito em repetir a fórmula.
As jornadas originais constam de O 18 Brumário de Luís Bonaparte como nada menos que “o mais colossal acontecimento na história das guerras civis europeias”. Trata-se do momento em que, na conjuntura aberta pela revolução de 1848, o proletariado de Paris lança-se a uma tentativa insurrecional, sendo esmagado pela repressão à bala comandada pelo general Cavaignac. Apesar da derrota armada, Marx empenha-se em registrar que os insurretos sucumbiram com todas as honras, tendo feito a Europa tremer “frente ao terremoto de junho”.
O junho brasileiro também produziu um tremor de terra, porém não chegaria a qualificá-lo de terremoto, uma vez que o travejamento fundamental da ordem não foi questionado. As relações de classe e propriedade não estiveram diretamente no centro das manifestações e as regras do jogo político foram visadas de maneira difusa. Prova disso é que as propostas de Constituinte exclusiva e plebiscito para a reforma política caíram no vazio, tendo sido esquecidas quase logo depois que o mês acabou.
Os “grandes atos” do MPL alavancaram uma onda de protestos cujas dimensões e sentidos políticos ainda estão por ser compreendidos. Tratamos neste texto de levantar as metáforas dramatúrgicas e as realidades teatrais evocadas pela performance do MPL e dos Comitês Populares da Copa (CPC). Inspirados pelas categorias de uma sociologia teatral, nosso olhar se concentra nos eventos anteriores à eclosão das manifestações. Nosso intuito é argumentar que o ferramental analítico extraído do diálogo da sociologia das dinâmicas de confronto com a veia dramatúrgica do interacionismo simbólico não apenas nos ajuda a entender a performance desses atores, como também enriquece a compreensão dos processos por eles desencadeados.
Resumo
O texto aborda as metáforas dramatúrgicas e as realidades teatrais evocadas pela performance do Movimento Passe Livre (MPL) e dos Comitês Populares da Copa (CPC). Inspirado pelas categorias de uma sociologia teatral, concentra-se nos eventos anteriores à eclosão das manifestações. O ferramental analítico extraído do diálogo da sociologia das dinâmicas de confronto com a veia dramatúrgica do interacionismo simbólico não apenas ajuda a entender a performance desses atores, como também enriquece a compreensão dos processos por eles desencadeados. Na análise são destacadas a dramaticidade da violência, a alta dose de contingência das performances públicas, bem como as modalidades organizacionais mais horizontais, no caso do MPL, e mais articuladoras, no exemplo dos CPC.
Espetáculo que merece o nome tem hora, data e local marcados. Dia 13 de junho de 2013, após três “grandes atos”, o Movimento Passe Livre (MPL) convocava simpatizantes para ir às ruas e dar sequência ao seu script, despertando a ira e a paixão dos antagonistas, no mesmo dia, a Folha de S.Paulo publica um editorial em que pede um ponto final nas manifestações “[…] No quarto dia de protestos, que junta milhares de pessoas e paralisa avenidas em São Paulo, a polícia […] reprime violentamente os manifestantes com gás lacrimogêneo e balas de borracha. Há muitos feridos, entre eles muitos repórteres da própria Folha de S.Paulo. As imagens dos feridos chamam a atenção mundial para os protestos. A Anistia Internacional condena a repressão; Alckmin e Haddad não aceitam rever o preço das passagens dos transportes; uma sondagem aponta: a população apoia os protestos” .
Tendo como palco a avenida Paulista, o coração histórico do capitalismo brasileiro, o drama entre manifestantes e repórteres digladiando com “violentos” policiais tocou o grande público. Os números do episódio da noite do dia 13 variam: 5 mil manifestantes de acordo com as forças repressivas e 20 mil segundo os organizadores. Se os conflitos com a polícia não são exatamente uma novidade na trajetória do MPL, o que surpreendeu a ambos, aos protagonistas e ao público, foi a desproporcionalidade com que a corporação policial paulista atuou, reprimindo e adequando-se perfeitamente ao papel de vilão. A mídia hesitou inicialmente, chegando a criminalizar a performance do MPL, mas logo mudou de lado. Apaixonada, a plateia mais ampla não apenas elogiou a peça, mas saiu das fileiras do público para ser ator e autor dela – “não são só 20 centavos”. Naquela noite encerrava-se o prólogo do ciclo de protestos mais espetacular que o Brasil conheceu desde a queda de Fernando Collor.
Para a maioria das pessoas, o recente levante contra o governante Partido da Justiça e do Desenvolvimento (Adalet ve Kalk?nma Partisi – AKP) da Turquia ainda é um enigma. Por que um protesto a respeito de um parque levou tão depressa a uma agitação em todo o país? O governo turco explicou o que aconteceu recorrendo a uma teoria de conspiração, referindo-se a um “lobby da taxa de juro” internacional que planejava derrubar o governo. Contudo, de acordo com uma pesquisa do instituto Konda, 49% dos manifestantes decidiram aderir aos protestos depois de receber notícias sobre a violência excessiva da polícia, o que indica que esse foi o principal detonador do levante.
Resumo
Este artigo descreve as causas políticas e sociais dos protestos do parque Gezi na Turquia, apresentando um esboço da história recente do país. O artigo analisa o desdobramento de queixas acumuladas e das lutas populares resultantes na Turquia durante o ano anterior aos protestos. Em seguida, o artigo emprega o conceito de profecia autorrealizável como um mecanismo que transformou e uniu várias lutas em um único levante de âmbito nacional. A segunda metade do artigo compara os protestos na Turquia e no Brasil, situando as diferenças e semelhanças em um contexto político e histórico mais amplo.
Para entender como um pequeno protesto evoluiu tão depressa para uma agitação em grande escala, sugiro que nos refiramos ao conceito de profecia autorrealizável. O sociólogo americano Robert K. Merton definiu profecia autorrealizável como “uma falsa definição da situação evocando um novo comportamento que torna a falsa concepção original ‘verdadeira’” . Desde o fim de maio, o governo turco agiu com base nas piores hipóteses possíveis e em falsas premissas, muito provavelmente baseado em informações enganosas ou mal avaliadas, que amplificaram, uniram e transformaram os protestos existentes e emergentes em um levante.
O ano anterior aos protestos Gezi já havia sido marcado por uma série de protestos de curdos, mulheres, trabalhadores, indivíduos LGBT, estudantes e alevitas (uma seita heterodoxa do Islã, cujos seguidores constituem uma minoria de 20-25% da população na Turquia), todos acompanhando o histórico impressionante e contínuo de políticas antidemocráticas do AKP: a Turquia sozinha responde por um terço de todas as prisões por terrorismo no mundo depois do 11 de Setembro e tem mais jornalistas presos do que qualquer outro país, seguida por Irã e China . Antes de os protestos de Gezi começarem, manifestantes curdos já haviam ajudado a empurrar o AKP para negociações de paz ao exercerem uma combinação de desobediência civil e armada (que incluiu uma greve de fome de 68 dias de milhares de prisioneiros curdos de setembro a novembro). As mulheres mostraram uma resistência poderosa contra o plano do governo de restringir o aborto; o movimento de trabalhadores nos setores formal e informal se intensificou gradativamente (são exemplos a greve atual da Turkish Airlines e a resistência na Universidade Koç em abril); manifestantes LGBT organizaram uma forte reação pública contra a morte de indivíduos transgênero; o movimento estudantil exibiu uma rápida expansão, em especial depois dos levantes no campus da Middle East Technical University, em Ancara, em dezembro de 2012; e os alevitas protestaram contra a homenagem a Yavuz Süleyman, um sultão otomano considerado responsável pela morte de muitos alevitas no começo do século XVI, na nova ponte sobre o Bósforo, que leva seu nome. Talvez apenas as classes médias secularistas não foram às ruas antes dos protestos Gezi, e sua subsequente participação no movimento de protesto forneceu os grandes números que faltavam.
Nos últimos anos, muitas pessoas passaram a acreditar que possuem uma fórmula para derrubar governos autoritários e substituí-los pela democracia. O método consiste em manifestações de massa pacíficas, persistindo até que atraiam imenso apoio, tanto interno quanto internacional, e se tornando mais intensas enquanto as atrocidades do governo, ao mesmo tempo que as reprimem, são divulgadas pela mídia. Esse foi o modelo das “revoluções coloridas” no antigo bloco soviético; para a Primavera Árabe de 2011 e suas imitações; voltando ainda mais no tempo, o método tem suas raízes no movimento pelos direitos civis norte-americano. Essas revoluções têm êxito ou fracassam em graus variados, como ficou óbvio na sequência das diferentes revoltas da Primavera Árabe. As razões do sucesso ou do fracasso pedem uma análise mais complexa.
Resumo
Revoluções políticas têm êxito ou fracassam em graus variados. O artigo analisa as revoltas da Primavera Árabe por meio de uma distinção entre revolução de ponto de virada e revolução por colapso do Estado. Grandes revoluções são aquelas que trazem grandes mudanças estruturais. Revoluções de ponto de virada, sem uma base de longo prazo nos fatores estruturais que causam o colapso do Estado, são apenas, no melhor dos casos, moderadamente bem-sucedidas; com frequência não conseguem sequer mudanças modestas, degenerando em guerras civis destrutivas ou em completo fracasso.
O tipo de revolução que consiste na mobilização indignada da população até que os autoritários cedam e fujam pode ser chamada de uma revolução de ponto de virada [tipping point]. Ela contrasta com a teoria da revolução por colapso do Estado, formulada por Theda Skocpol, Jack Goldstone, Charles Tilly e outros para mostrar as raízes de longo prazo de revoluções importantes, como a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Russa de 1917, e que usei em outra ocasião para prever a revolução antissoviética de 1989-91 . Grandes revoluções são aquelas que trazem grandes mudanças estruturais (a ascensão ou a queda do comunismo, o fim do feudalismo, etc.). Argumentarei que revoluções de ponto de virada, sem uma base de longo prazo nos fatores estruturais que causam o colapso do Estado, são apenas, no melhor dos casos, moderadamente bem-sucedidas; e com frequência não conseguem sequer mudanças modestas, degenerando em guerras civis destrutivas ou em completo fracasso em causar qualquer mudança no regime.
Alfonsina Storni (1892-1938) e Horacio Quiroga (1878-1937) são escritores profissionais emblemáticos do campo literário argentino, nas três primeiras décadas do século XX, numa conjuntura em que o ofício letrado respondia às necessidades de uma fervilhante indústria cultural de impressos. Prensados entre o rechaço movido pelos líderes da vanguarda martinfierrista e a adulação concedida pelos periódicos de ampla tiragem, eles deram feição inovadora a gêneros canônicos por meio de linguagens ajustadas às preferências do público emergente e aos moldes imperativos da mídia impressa.
Resumo
O artigo analisa as trajetórias biográfico-literárias de Alfonsina Storni (1892-1938) e Horacio Quiroga (1878-1937) e a maneira como suas respectivas obras se moldaram às exigências e às oportunidades de trabalho na imprensa e nas revistas de variedades, conferindo uma feição inovadora a gêneros consagrados por meio de linguagens ajustadas às preferências do público emergente e aos moldes imperativos da mídia impressa. Outsiders para o meio literário argentino canônico, responderam aos intentos de desqualificação com recursos políticos e literários ao seu alcance, juntando a excelência de letrados profissionais à entonação candente do pesadelo privado.
Meu interesse por Alfonsina e Quiroga tem a ver com a condição de escritores menores a que foram relegados por largo tempo pela história e pela crítica literária, numa conjuntura de expansão da indústria cultural de que se tornaram baluartes. A condição marginal favorece a visada do campo literário em gestação pelo flanco de voz dos ilegítimos, pela balança de experiências dissonantes, pela bainha de méritos estéticos denegados. Pretendo, de um lado, esmiuçar as condições que viabilizaram a legitimação contestada de heróis culturais em colisão com o establishment dito inovador e, de outro, evidenciar de que modos essas trajetórias acidentadas supriram a matéria-prima vazada em artefatos literários reticentes aos parâmetros vigentes. Alfonsina e Quiroga foram inovadores sem o saber, dando voz a vivências chocantes em relação ao imaginário romântico-nacionalista da elite criolla.
Quase vinte anos se passaram desde que escrevi Princípios do governo representativo. Embora a substância do livro permanecesse na maior parte inalterada, se tivesse de reescrevê-lo hoje, penso que o capítulo que discute as transformações do governo representativo poderia se beneficiar da incorporação de mais informação empírica do que a que estava disponível para mim à época da redação original.
Resumo
Neste artigo, o autor atualiza e esclarece suas análises da democracia de público à luz de pesquisas recentes, em especial no que diz respeito à erosão das fidelidades partidárias, o papel dos partidos nas democracias contemporâneas e o aumento da participação política não institucionalizada, indicando que a democracia representativa não é incoerente com algum grau de influência direta dos cidadãos na tomada de decisão sobre políticas.
Uma das mudanças mais notáveis das últimas décadas diz respeito aos partidos políticos. Ao que parece, os partidos não estão em grande forma. A “insatisfação com os partidos” tornou-se expressão corrente. Pesquisadores dedicaram inúmeros estudos ao enfraquecimento dos vínculos partidários ou ao declínio dos partidos políticos, avaliando a extensão e as implicações desses fenômenos. Partidos políticos, contudo, são objetos multifacetados. Os partidos tipicamente fazem muitas coisas e atuam em várias arenas. Por exemplo, eles mobilizam eleitores, recrutam membros e ativistas, apresentam candidatos a cargos de governo e organizam o trabalho de legislaturas e governos . Uma menor capacidade em uma área não significa necessariamente declínio em todas as áreas. Supondo, então, que os partidos políticos perderam algumas de suas capacidades, não se pode inferir que eles têm se enfraquecido de forma generalizada. Devo acrescentar que minha explicação anterior da democracia do público e do contraste com a democracia de partidos podia criar a impressão de que os partidos se tornaram, de maneira geral, obsoletos. Não era minha intenção. Em todo caso, se as formulações anteriores eram ambíguas, este é o lugar para torná-las mais precisas.
Uma questão-chave de “Non ou a vã glória de mandar” advém do cotejo entre os cerimoniais de guerra e de morte que compõem a história relatada pelo alferes e as condições mais insípidas de sua própria morte no hospital militar em Luanda. Ao longo do filme, há um fio de relações que se tece pela expressão de rostos e olhares diante da morte e do desastre, algo que se reconfigura a cada episódio.
Resumo
O artigo analisa o modo como o filme “Non, ou a vã glória de mandar” (1990), de Manoel de Oliveira, se compõe como figuração da história de Portugal, desde o momento da formação nacional até o limiar da Revolução dos Cravos, longo percurso que o cineasta condensa através da justaposição de épocas históricas observadas como manifestações de uma recusa reiterada: um implacável princípio do “Non” frustra variadas formas de sonho imperial e tem como cena emblemática a batalha de Alcacer Quibir em 1578. Inspirado numa passagem de sermão do Padre Vieira, o filme traz uma reflexão sobre tal percurso na tônica de uma poética do desastre que, em seu final, ganha nova inflexão pelo cotejo entre o espectro de D. Sebastião e o destino do seu protagonista, o alferes Cabrita, no ocaso da guerra colonial em terras africanas.
O caminhão militar avança pela estrada de terra que rasga a mata tropical. Visto de frente e de perto, sua presença é impositiva. Novas imagens frontais definem um olhar mais afastado que permite descortinar outros veículos que o seguem. Os créditos do filme desfilam na tela.
Terminada a apresentação, a câmera se instala num dos veículos, de modo a encarar um grupo de soldados sentado em sua carroceria, destacando o rosto, um a um, cada qual entretido em devaneios e numa residual atenção ao que o cerca. Nada em sua atitude solicita o contracampo, pois o que estão a ver, sem muito ver, é a imagem que nosso olhar simetricamente descortina: a passagem regular e lateral da mata espessa. Esta compõe um campo de imersão para a longa conversa que virá. De imediato, é a expressão desses jovens calados que interessa sublinhar como primeiro estágio de um desfile de fisionomias que, ao longo do filme, vão expressar uma variedade de estados de espírito que resumem, a cada passo, a relação de distintas personagens com as dores da guerra.
Arte social, arte coletiva, arte da representação, inseparável da vida urbana e da sociabilidade multifacetada, o teatro em São Paulo converteu-se em laboratório voluntário e compulsório dos sonhos acalentados pelas camadas médias e pelas elites. Ele deu forma a assuntos que pulsavam, antecipou comportamentos que se tornaram emblemáticos, forneceu régua e compasso para enquadrar as transformações em curso e, quando a censura e a perseguição política aos setores de esquerda tornaram-se mais violentas com a ditadura militar instaurada em 1964, o palco virou um reduto da resistência. Comprovando, assim, a tese de que a dramaturgia é “a forma literária mais adequada à esfera da ação e, portanto, à ética e a política”.
Resumo
A cena teatral paulista na década de 1960 foi marcada por uma estreita articulação entre cultura e política e por mudanças na composição social do palco. O artigo examina como as dramaturgas Leilah Assumpção e Consuelo de Castro miraram as experiências desconcertantes das protagonistas femininas e os impasses de toda ordem que as condensavam – materiais, profissionais, sexuais, éticos – e, no lugar de encapsularem as personagens no quadro estreito da chamada condição das mulheres, encenaram, em peças como Fala baixo senão eu grito e À flor da pele, relações de gênero.
Improvável, quase inconcebível, seria um encontro entre Mariazinha Mendonça de Morais e Verônica. Modesta e bem-comportada, Mariazinha esforçava-se para estar sempre impecável em seu uniforme do dia a dia, um tailleur discreto. Cumpria com zelo as obrigações: a pontualidade no escritório, o pagamento das prestações do Mappin e da quitinete, adquirida com as economias feitas ao longo de cinco anos de trabalho, transcorrido em ritmo estafante, das 7 às 19 horas. O sonho da casa própria, materializado no apartamento diminuto, valeu a pena porque, segundo ela, além da segurança, iria garantir-lhe o futuro. Mas antes da mudança, na pensão para moças em que residia, Mariazinha contornava a solidão com o auxílio da televisão ligada (Hebe Camargo era um de seus programas preferidos) e dos devaneios. Se pudesse teria feito filosofia. Matéria que lhe parecia a mais adequada para dar conta de sua personalidade mística. O raciocínio complexo, do qual se sentia portadora, era expresso quase sempre em voz alta, para si mesma e para os objetos que compunham o mobiliário de seu quarto: o relógio de parede que herdara do pai, o criado-mudo, a cama e o armário. Todos eles decorados com balões e laçarotes do mesmo tipo que usava para enfeitar os cachinhos dos cabelos na hora de dormir. Quando pequena, ela cabia dentro dos móveis. Adulta, os interrogava para saber se foram eles que cresceram ou ela que diminuíra. A dúvida sobre o tamanho real das coisas – dela, dos móveis, do mundo – embaralhava-se com a perplexidade espicaçada pelo escapismo. Nas palavras de Mariazinha, “eu pensava que as pessoas passavam o dia inteiro pensando em mim” – daí o apuro no traje e o comportamento comedido. Mas elas “não sabiam que eu existia”.
O governo Dilma manteve o regime de política macroeconômica ancorado nas metas de inflação e de superávit fiscal primário e na flutuação (suja) da taxa de câmbio. Não obstante, mudanças importantes introduzidas na gestão desse regime o tornaram mais flexível. A obtenção de taxas mais elevadas de crescimento econômico (com destaque para a recuperação da indústria) passou a ocupar uma posição central entre os objetivos dessa política em 2011 e 2012. Além disso, houve uma ampliação da gama de instrumentos utilizados, que não se limitaram aos instrumentos convencionais das políticas monetária, fiscal e cambial. E, por fim, a melhor coordenação entre as autoridades econômicas, em especial entre o Ministério da Fazenda e o Banco Central do Brasil (BCB), possibilitou uma maior convergência dos objetivos e, consequentemente, uma maior eficácia do conjunto de políticas implementadas.
Resumo
O artigo identifica e analisa o desempenho de três períodos da gestão da política macroeconômica durante os dois primeiros anos do governo Dilma (2011 e 2012). No primeiro, que abarca o primeiro semestre de 2011, as políticas monetária e fiscal tiveram um caráter restritivo, no intuito de arrefecer a atividade econômica e, assim, conter a aceleração inflacionária observada naquele momento. O contexto do segundo, que se inicia em agosto de 2011 e termina em junho de 2012, foi condicionado pelo aprofundamento da crise da área do euro. O terceiro, que compreende o segundo semestre de 2012, foi marcado pelo aprofundamento da desaceleração da atividade econômica.
Entre 2011 e 2012, podem ser identificados três períodos distintos na orientação da política macroeconômica do governo Dilma. No primeiro período, que abarca o primeiro semestre de 2011, as políticas monetária e fiscal tiveram um caráter restritivo, no intuito de arrefecer a atividade econômica e, assim, conter a aceleração inflacionária observada naquele momento. A diretriz de política do novo governo alinhou-se, então, às iniciativas adotadas no final do governo Lula , tais como as medidas macroprudenciais no mercado de crédito de dezembro de 2010, que procuravam reduzir os riscos associados à forte expansão dos empréstimos com recursos livres às famílias, mas que também contribuíram para a desaceleração da demanda. Nesse período, novas medidas macroprudenciais no mercado de câmbio e controles de capitais foram adotados no sentido de conter a tendência de apreciação do real, resultante do maior diferencial entre os juros internos e externos.
O contexto do segundo período, que se inicia em agosto de 2011 e termina em junho de 2012, foi condicionado pelo aprofundamento da crise da área do euro . Diante da acentuada desaceleração da atividade econômica, o governo adotou medidas anticíclicas, embora menos intensas que aquelas tomadas em 2008/09: redução da taxa básica de juros, estímulos creditícios e desoneração tributária. A deterioração do cenário externo e a desaceleração da inflação abriram caminho para a reorientação dos objetivos da política econômica para priorizar a diminuição do diferencial entre a taxa básica de juros brasileira (Selic) e as taxas de juros internacionais. Em contrapartida, para garantir estabilidade monetária com taxas de juros mais baixas e taxa de câmbio competitiva para o setor industrial, o governo anunciou uma contenção adicional de gastos públicos, reforçando seu compromisso com a austeridade fiscal, e ampliou os controles de capitais diante do receio de uma nova enxurrada de capitais externos após a expansão de liquidez pelo Banco Central Europeu (BCE), em dezembro de 2011 e fevereiro de 2012.
Esse conjunto de medidas, todavia, não gerou estímulos suficientes para reativar o nível de atividade e o investimento produtivo. O terceiro período, que compreende o segundo semestre de 2012, foi marcado, então, pelo aprofundamento da desaceleração da atividade econômica. Com o objetivo de estimular a economia, além da redução da meta da taxa básica Selic, os bancos públicos agiram novamente de forma anticíclica (à semelhança do observado em 2008 e 2009), mitigando o efeito negativo sobre a oferta de crédito da perda de ritmo do crédito concedido pelos bancos privados e assegurando que as reduções da taxa básica de juros atingissem os tomadores finais.
Decorridos 25 anos, o diagnóstico que se pode fazer da experiência constitucional brasileira recente é fundamentalmente otimista. Há evidências claras de que os mecanismos de controle da corrupção se fortaleceram e de que a impunidade reduziu-se; a inflação tem se mantido sobre controle há pelo menos duas décadas e a desigualdade, medida pelo índice de Gini, vem monotonicamente reduzindo-se desde 1993. Mais importante: o país atravessou mais de duas décadas de estabilidade institucional, marcadas por episódios potencialmente desestabilizadores como alternância de poder no nível nacional e impeachment presidencial, para citar apenas dois.
Resumo
Este artigo discute o padrão de mudança constitucional dos últimos 25 anos: altas taxas de emendamento e mudança endógena movida pela judicialização de questões políticas de alta visibilidade. O texto argumenta que a taxa de mudança no texto de nossa carta constitucional é indicador pobre de ativismo constitucional: a mudança constitucional de fundo tem acontecido no padrão de alta visibilidade da megapolítica. Esse padrão pode ser explicado pelas escolhas realizadas durante a constituinte: conteúdo detalhado da constituição e regras de emendamento relativamente permissivas. O artigo discute a estrutura de incentivos que levou a essas escolhas e sustenta que, ao contrário da experiência internacional, o ativismo constitucional tem ocorrido em um contexto de extensa constitucionalização. Mas a centralidade adquirida pelo STF na última década é inteiramente não antecipada pelos atores políticos.
Neste artigo, discuto as razões de a mudança constitucional ter assumido a forma que assumiu: reformismo constitucional constante a ponto de um analista ter descrito a política brasileira nas décadas de 1980 e 1990 como um país “em assembleia constituinte permanente” . Para responder a essa pergunta, discuto alguns aspectos normativos relativos à inércia constitucional e sobre mudança institucional. Em seguida, reconstituo os debates em torno da escolha da regra de emendamento constitucional na Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988. Examino algumas hipóteses sobre os determinantes da escolha de regras de emendamento com dados para a América Latina para verificar se os mecanismos causais identificados na análise teórica e histórica podem ser generalizados. Por fim, defendo a tese de que, malgrado a aparente maleabilidade e constante alteração da constituição brasileira, só podemos efetivamente identificar mudança constitucional robusta em dos momentos distintos – durante o “big bang” constitucional (1995-1997) ocorrido no início do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso e a partir do ativismo judicial do STF no período 2008-2012. Esse último padrão, denominado de endógeno na literatura, não foi antecipado nos debates da constituinte. No entanto, não se trata apenas da mudança constitucional endógena porque, combinada com o novo ativismo judicial, ela configura o que Hirschl denominou judicialização da megapolítica: “a judicialização de matérias de clara e fundamental importância política que muitas vezes definem e dividem comunidades políticas inteiras” . No caso brasileiro, a mudança constitucional e o ativismo constitucional têm ocorrido paradoxalmente em um contexto de extensa constitucionalização: contrariamente à experiência norte-americana, por exemplo, o ativismo não mantém relação com a elevada rigidez da carta constitucional daquele país nem tampouco com o caráter generalista dos seus dispositivos.
Para Ella Habiba Shohat, não parecem óbvias as linhas divisórias em torno das quais se articulam alguns dos conflitos mais ardilosos de nosso tempo. Ela define a si mesma como judia árabe, iraquiana israelita, escritora, ativista, intelectual e acadêmica que elegeu os Estados Unidos como país de residência, onde é professora de Estudos Culturais e Gênero na New York University. Não surpreende que as fronteiras constituam a principal inspiração e o eixo articulador de seu trabalho acadêmico: trata-se de discutir como as fronteiras podem ser imaginadas, construídas e desconstruídas.
Resumo
Nesta entrevista, Ella Shohat, professora de Estudos Culturais e Gênero na Universidade de Nova York, discute as tensões subjacentes aos processos de construção de identidades nacionais, étnicas e religiosas desde o final da Segunda Guerra.
Num livro de 1989 (Israeli cinema: East/West and the politics of representation), Ella Shohat discute a construção do Ocidente e do Oriente no cinema de Israel. Mais tarde, em livros como Unthinking eurocentrism: multiculturalism and the media (com Robert Stam, de 1994), contribui para desestabilizar as fronteiras imaginadas entre a Europa e o “resto do mundo”, bem como as linhas divisórias entre um suposto Sul e um suposto Norte globais. Corpos e fronteiras se autodefinem numa relação dinâmica e complexa: é o que nos ensina o último livro de Ella Shohat com Robert Stam, Race in translation. Culture wars around the postcolonial Atlantic (2012), no qual é tratada mais em detalhe a construção das ideias de raça e etnicidade no Brasil, na França e nos Estados Unidos.
Num restaurante Panasia, em Berlim, conversamos com Ella Shohat sobre a politização da cultura e a culturalização da política como vimos observando nas últimas duas ou três décadas. A transcrição da entrevista revela a impressionante capacidade da autora de juntar empatia e sensibilidade, distanciamento e sentido analítico na discussão de temas tão difíceis como circuncisão e islamofobia.
Crítica de “Shoah”, filme de Claude Lanzmann [1985]. Instituto Moreira Salles, 2012, 570 min. Noemi Jaffe
Resenha de “Martinha versus Lucrécia”, de Schwarz, Roberto. Companhia das Letras, 2012.
Resenha de “São Paulo: novos percursos e atores. Sociedade, cultura e política”, de Kowarick, Lúcio e Marques, Eduardo (orgs.). São Paulo: Editora 34/Centro de Estudos da Metrópole, 2011.
Daniel Steegmann Mangrané