Resenha de A ideia de justiça, de Amartya Sen.
Resumo
Uma teoria da Justiça, de John Rawls, publicada em 1971, é certamente a obra mais importante da filosofia política do pós?guerra, e impregnou profundamente a reflexão sobre a ideia de justiça. Qual o objeto e a finalidade de uma teoria da justiça; como definir as liberdades básicas dos cidadãos e conciliá?las com igualdade democrática; qual a distribuição mais apropriada dos bens sociais básicos (liberdades, renda e riqueza, oportunidades, bem?estar, autorrespeito); como justificar os princípios que devem orientar a configuração das instituições públicas de uma sociedade justa; como o debate público político deve estar estruturado de modo a incluir a diversidade de interesses e valores; como conciliar os direitos subjetivos individuais e o ideal do bem comum, são algumas das questões levantadas pela teoria da justiça de Rawls e que pautam (para alguns positivamente e para outros negativamente) a agenda de discussão há pelo menos quatro décadas. Com A ideia de justiça, Amartya Sen desenvolve uma formulação própria da justiça que pretende lançar as bases de uma teoria da justiça que vá além de Rawls e tenha uma influência prática mais direta na formulação de políticas públicas de eliminação das injustiças.
Em vez de insistir no normativismo abstrato voltado para as estruturas institucionais de uma sociedade justa bem?ordenada, Sen pretende desenvolver uma teoria da justiça que leve em conta a posição real das pessoas no mundo, seus padrões de comportamento e circunstâncias socioeconômicas concretas em que vivem. Essa perspectiva prática teria sido excluída da filosofia política contemporânea, dominada por um idealismo normativo à la Rawls. Na abordagem de Sen, em vez dos arranjos institucionais ideais, uma teoria da justiça deveria levar em conta a vida que as pessoas são realmente capazes de levar. O que é central numa teoria da justiça é a identificação de injustiças corrigíveis por meio de uma análise real das assimetrias produtoras dessas injustiças na vida das pessoas reais. “A justiça está fundamentalmente conectada ao modo como as pessoas vivem e não meramente à natureza das instituições que a cercam”. A ideia de justiça pode ser considerada a incursão de maior fôlego de Sen no âmbito da filosofia política; resume e pressupõe a familiaridade dos leitores com argumentos e conceitos desenvolvidos em suas obras anteriores na filosofia política, economia e teoria da escolha social. Com um caráter enciclopédico, os argumentos do livro são ilustrados por uma rica gama de anedotas e exemplos extraídos da literatura, história e acontecimentos recentes. Suas ideias centrais são relativamente poucas, ainda que de grande importância na reflexão sobre a justiça, e são retomadas várias vezes no desdobramento da argumentação.
Resumo
A multiplicação de experiências participativas visando ampliar o controle social sobre políticas e políticos tornou?se fenômeno relevante no Brasil e mundo afora. Neste artigo é apresentado um quadro analítico útil à comparação da diversidade da inovação democrática enquanto arquitetura da participação orientada para o controle social. Mediante a aplicação desse quadro, examinamos a configuração de duas arquiteturas contrastantes, originárias de dois contextos nacionais distintos: México e Brasil.
Na América Latina houve uma multiplicação de experiências participativas orientadas, implícita ou explicitamente, pelas noções de accountability e controle social democrático sobre atores políticos e políticas públicas. Avaliar o alcance e as limitações dessas experiências, bem como identificar os fatores que aumentam ou obstruem sua capacidade, constitui um exercício particularmente fértil para sociedades nas quais foi arriscada a implantação de tais experiências na expectativa de melhorar a qualidade das políticas públicas e de reduzir diversos déficits das instituições políticas que ordenam a vida de tais sociedades. Esse é especialmente o caso do Brasil, onde a institucionalização de experiências participativas colocou o desafio de desenvolver um campo de investigação sobre as chamadas “instituições participativas” e sua efetividade.
Resumo
O autor discute as sucessivas crises econômicas ocorridas nos países capitalistas desde os anos 1970, interpretando-as como produto de tensões e contradições endêmicas entre mercados capitalistas e políticas democráticas.
O colapso do sistema financeiro norte-americano que ocorreu em 2008 converteu-se em uma crise econômica e política de dimensões globais. Como esse evento mundialmente impactante pode ser conceitualizado? As teorias econômicas predominantes tendem a conceber a sociedade como uma entidade regida por uma tendência geral ao equilíbrio, em que as crises e a mudança não passam de desvios temporários do estado estável de um sistema normalmente bem integrado. Um sociólogo, no entanto, não é obrigado a compartilhar dessa visão. Em vez de interpretar nossa atual atribulação como um distúrbio isolado em uma condição essencialmente estável, vou considerar a “Grande Recessão” e o (quase) colapso subsequente das finanças públicas como a manifestação de uma tensão elementar subjacente à configuração político-econômica das sociedades capitalistas avançadas — uma tensão que faz do desequilíbrio e da instabilidade regra, e não exceção, e que encontrou expressão numa sucessão histórica de distúrbios no interior da ordem socioeconômica. Mais especificamente, vou argumentar que a crise atual só pode ser plenamente compreendida à luz das transformações contínuas e inerentemente conflituosas da formação social que chamamos de “capitalismo democrático”.
Resumo
Guillermo possuía uma habilidade irreal de enxergar grandes fenômenos escondidos no horizonte da história. Ele simplesmente tinha a intuição, o olfato, de dar sentido aos perigos iminentes. Mas era também capaz de ver as pequenas brechas que podiam criar aberturas para a ação. Ele era dotado de um senso profundo da tragédia da história – Guillermo não era um otimista -, mas também de uma determinação implacável de seguir lutando, mesmo nas situações mais desesperadas.
Foi ele quem nos fez entender a barbárie iminente da nova forma de ditadura na Argentina. Com Phillipe Schmitter, foi ele quem nos levou a conceber as estratégias para livrar o mundo do autoritarismo. Jamais foi seduzido pelas celebrações da democracia: Guillermo via o fim das ditaduras apenas como uma chance para lutarmos pela realização de nossos ideais, e via muitos problemas nas novas democracias. Era exemplo do postulado de Gramsci: “pessimismo do intelecto, otimismo da vontade”. Guillermo era um líder. Seu impacto pessoal e intelectual era enorme. Estudantes coreanos escreviam teses sobre o “autoritarismo burocrático” em seu país, acadêmicos russos discutiam “democracia delegativa”, e “accountability horizontal” se tornou a linguagem na qual intelectuais pensavam a separação dos poderes. O projeto Woodrow Wilson sobre transição de regimes, que ele coorganizou e codirigiu definiu a agenda de mais de uma geração de pesquisadores no mundo todo.
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A partir de uma leitura de “O avesso da dialética”, de Gérard Lebrun, o autor relembra a influência do filósofo francês no debate filosófico brasileiro contemporâneo.
Gérard Lebrun chegou ao Brasil pela primeira vez em 1960. Vinha substituir Gilles Gastón Granger, que terminara sua segunda estadia entre nós, na posição de professor de lógica. Seu maior interesse era escrever sua tese sobre Kant. Aos poucos, porém, foi adensando o diálogo com seus colegas e alunos. De um lado, colaborou para perfazer nossa formação filosófica; de outro, nos ajudou a desconfiar das modas parisienses. E desde logo tomou distância daquele nosso esforço de repensar o marxismo. Só mais tarde percebi a situação difícil em que o coloquei ao pedir que escrevesse a orelha de Origens da dialética do trabalho. Basta lê?la para que se perceba a delicadeza com que diverge de minha interpretação, ele que havia lido o Hegel de Alexandre Kojève e fora aluno de Jean Beaufret.
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Em 2009, a prestigiosa publicação The Comics Journal colocou Krazy Kat, de George Herriman (1880?1944), no topo de uma lista das melhores tiras de jornal do século XX. Foi uma decisão pouco polêmica. Herriman é, há muito tempo, considerado um dos mais importantes artistas da riquíssima história da arte americana desse século. Em panegírico de 1922, o crítico Gilbert Seldes se refere a ele como “o maior artista vivo e em atividade”.
Krazy Kat estreou em 1913 no New York Evening Journal, de propriedade do magnata das comunicações William Randolph Hearst, e foi publicada até a morte de seu criador, em 1944. Herriman, um mestiço de Nova Orleans de traços indefinidos — foi apelidado de “O Grego” por um colega de jornal —, passou por vários jornais com algumas tiras e personagens de relativa importância até ser definitivamente adotado por Hearst. Herriman pagou a atenção do magnata com sua maior criação: um triângulo amoroso multirracial, homossexual e sadomasoquista entre um gato, um rato e um cachorro. O gato é Krazy Kat, personagem amoroso, estranhamente ingênuo e de sexualidade indefinida. Também sua linguagem é indefinida. Krazy manifesta suas divagações existenciais estapafúrdias tanto em creole, no dialeto yap das ruas de Nova Orleans, no iídiche nova?iorquino ou na fala mestiça das fronteiras mexicanas e navajo. E assim como o seu gênero e a sua fala, os próprios cenários de suas aventuras (a cidade de Coconino e seus arredores) modificam?se de quadro a quadro, sendo o próprio local da trama um vilarejo quase imaginário da região de Monument Valley (nos estados norte?americanos de Utah e Arizona). Quase porque as formações que compõem o pano de fundo da tira (e que lembram mãos voltadas para os céus ou patas de elefantes), apesar de realmente existirem, não batem palmas quando entusiasmadas ou saem andando???????????????????????????????????????? para lá e para cá, como em Krazy Kat, reforçando o estranhamento que a fala do protagonista e também a trama bizarra causam ao leitor.
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A partir de ensaio de Luiz Dantas, uma análise do conto “Atrás da catedral de Ruão”, de Mário de Andrade, seus paralelos com Amar, verbo intransitivo e os temas de paixão, desejo e repressão.
No número 7 da revista Remate de Males, organizado por Antonio Arnoni Prado em 1987 e intitulado “Intervalo de aula”, Luiz Dantas publicou “Amar sem aulas práticas”, análise de “Atrás da catedral de Ruão”, de Mário de Andrade. Com exceção de algumas alusões ou referências, este é o único estudo que conheço até essa data, inteira- mente dedicado ao conto, antecedendo em doze anos o ensaio esclarecedor de Ivone Daré Rabello a respeito dos Contos novos, onde se situa a narrativa.
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O início da crise financeira global em 2008 foi interpretado como um desafio fundamental à governança neoliberal. O artigo explora algumas das consequências de curto e longo prazo da crise econômica em relação aos processos da neoliberalização e propõe referências teóricas para uma compreensão adequada da natureza desse modelo político e socioeconômico e de suas manifestações e desenvolvimentos socioespaciais.
O projeto do livre mercado está nas últimas. Nunca antes se debateu a questão do papel — “culpa” talvez fosse uma expressão melhor — político, econômico e social do neoliberalismo com tanta premência, tão globalmente e de forma tão pública. A crise financeira de 2008 já causou, entre outras coisas, um repúdio explícito, por todo o espectro político, ao credo do livre mercado; a encenação de atos de contrição e mea culpa públicos (pontuados por acusações ocasionais) pelas elites financeiras e empresariais; uma abrupta expunção de cerca de uma década de valorização do mercado de ações e imobiliário; o colapso de economias inteiras, incluindo Islândia, Hungria e “Detroit”; um sofrimento imenso resultante de ondas sucessivas de demissões e execuções de hipotecas, poupanças perdidas e aposentadorias dizimadas; além de distúrbios nas ruas e mobilizações políticas em todo o mundo, de que não escapou nem a reunião de abril de 2009 do Grupo dos 20 (G20). Enquanto crises anteriores da era neoliberal, como o???????????????????????????????????????????? ?????????descumprimento da dívida por países da América Latina e o colapso financeiro asiático, podem ter sido (problematicamente) “administradas” por meio de uma série de ajustes de percurso na governança, discurso e estratégia neoliberais, a crise atual ameaça, talvez fatalmente, minar a legitimidade política do neoliberalismo. Também pode — apesar de, com certeza, não ser a mesma coisa — enfim subjugar a capacidade adaptativa do neoliberalismo, seu caráter de regime mutante flexível da “regra de mercado”. A singularidade da ameaça atual não reside apenas no escopo e na escala da crise, apesar de isso já ser suficientemente alarmante; acima de tudo, ela atinge o coração do projeto — o nexo entre mercados financeiros mal regulados e o poder americano. A resposta ideológica e institucional ao que certamente parece ser uma crise prolongada estará “entre as questões políticas e sociais mais importantes de nossos tempos”. Embora o socialismo não tenha retornado à pauta, formas de reflação keynesianas decorrentes da crise, políticas industriais improvisadas e até pseudonacionalizações estão em curso. Estaríamos adentrando um mundo “pós-neoliberal”?
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O autor discute o artigo “O Brasil de Lula”, do historiador inglês Perry Anderson, publicado em Novos Estudos 91, questionando a parcialidade de sua avaliação do governo Lula.
O artigo do historiador inglês Perry Anderson aproxima?se de uma hagiografia do ex?presidente Lula. Não obstante os êxitos, mas também os escândalos, que permearam os dois mandatos de Lula, sua figura se destaca imensamente no texto e sofre apenas de passagem um ou outro arranhão.
Mesmo quando censura, com veemência, atos de corrupção, ou o que chama de “lado sombrio do PT”, Anderson poupa a figura presidencial. Em poucas palavras, tal como ocorre desde o tempo das monarquias absolutas, o “rei” acerta sempre e os erros, as transgressões são culpa dos falíveis ministros, os membros do primeiro ou do segundo escalão, na linguagem de hoje.
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A guerra mundial contra as drogas – nome pelo qual ficaram conhecidas parte das substâncias psicoativas que alteram a consciência e a percepção – completa, este ano, um século. Ainda que as resoluções da Primeira Conferência Internacional do Ópio de 1912, realizada em Haia, tenham sido praticamente abandonadas nos anos conturbados entre as duas grandes guerras, o modelo ali esboçado foi triunfante.
Defendida, patrocinada e sediada pelos EUA, já sob a coordenação da ONU, a Convenção Única sobre Entorpecentes, de 1961, implantou globalmente o paradigma proibicionista no seu formato atual. Os países signatários da Convenção se comprometeram à luta contra o “flagelo das drogas” e, para tanto, a punir quem as produzisse, vendesse ou consumisse.
Proibicionismo é uma forma simplificada de classificar o paradigma que rege a atuação dos Estados em relação a determinado conjunto de substâncias. Seus desdobramentos, entretanto, vão muito além das convenções e legislações nacionais. O proibicionismo modulou o entendimento contemporâneo de substâncias psicoativas quando estabeleceu os limites arbitrários para usos de drogas legais/ positivas e ilegais/ negativas. Entre outras consequências, a própria produção científica terminou entrincheirada, na maior parte das vezes do lado “certo” da batalha, ou seja, na luta contra as drogas. O proibicionismo não esgota o fenômeno contemporâneo das drogas, mas o marca decisivamente.
Resumo
As origens do modelo macroeconômico espanhol remontam ao programa de modernização levado a cabo pela ditadura de Francisco Franco a partir do final dos anos 1950, que se fundamentava no desenvolvimento de um mercado de turismo de massa para o norte da Europa e na expansão da propriedade imobiliária. As contradições dos arranjos econômicos da Comunidade Europeia e da zona do euro complicaram esse modelo já frágil, com graves efeitos para a economia e para a sociedade espanholas.
Antes da débacle de 2008, a economia espanhola era vista com grande admiração pelos comentadores ocidentais. Segundo as metáforas pitorescas da imprensa financeira, o touro espanhol teve um desempenho muito melhor nos anos 1990 e no início dos anos 2000 do que os leões deprimidos da “velha Europa”. Entre 1995 e 2005, 7 milhões de empregos foram criados e a economia cresceu a uma taxa de cerca de 4% ao ano. Entre 1995 e 2007, a riqueza nominal das famílias triplicou. A especialização histórica da Espanha nos setores imobiliário e de turismo parecia perfeitamente adequada à era da globalização, que, por sua vez, parecia sorrir para o país. A construção civil expandiu-se rapidamente seguindo a elevação acelerada dos preços dos imóveis, que cresceram 220% entre 1997 e 2007, enquanto o estoque imobiliário expandiu-se 30%, ou 7 milhões de unidades. A sensação de ser apenas o ?????????maior país da periferia do continente foi dissipada por uma nova imagem de modernidade, que não só alcançou, mas de certo modo ultrapassou, as expectativas europeias normais — pelo menos quando o dinamismo espanhol era comparado à rigidez das economias do centro da zona do euro. Some-se a isso o retorno ao poder, em 2004, do Partido Socialista, sob a liderança do jovem José Luis Rodríguez Zapatero, e o efeito de leis fundamentalmente “modernizadoras”, como aquela a respeito do casamento entre pessoas do mesmo sexo, e a mistura adquireo buquê de um vinho tinto jovem: extremamente robusto no palato.