“A poesia é o diário de um animal marinho que vive na terra e que gostaria de voar.” Esta frase não é de Murilo Mendes, mas é adequada para introduzir-nos em seu universo poético. Ela poderia constar perfeitamente no livro de aforismos do poeta – O Discípulo de Emaús – escrito em 1943. De início, muita coisa é nomeada: o mar, a terra, o céu – e esta abrangência é típica de Murilo Mendes. Ao lado dela, porém, há uma inadaptação evidente.
Resumo
O presente artigo procura analisar alguns aspectos tanto da concepção de poesia, como da atitude de Murilo Mendes frente à realidade, presentes em As Metamorfoses. Foi escolhido, com essa intenção, um dos poemas mais representativos do livro: “Os amantes submarinos”, no qual pode se observar que o Autor atribui à poesia a função de criar uma totalidade, normalmente mediada pela mulher ou pela experiência amorosa, que se oponha à realidade social como um desafio. Naquela totalidade, os conteúdos mais descuidados no cotidiano ganham uma importância fundamental, como o amor, a natureza, o mundo infantil. Vê-se, porém, que a afirmação desses valores delicados e raros exigiu dos poemas um perigoso e frágil afastamento da realidade histórica, a qual começou a cobrar progressivamente os seus direitos. Aquela totalidade passou, então, a ser problematizada desde dentro e o poeta se viu constrangido a reavaliar suas posições. É, portanto, um momento decisivo na trajetória de Murilo Mendes, já que ele desencadeia um processo de transformações em sua obra que terá fundas repercussões nos livros posteriores.
Há um profundo descontentamento com a realidade e uma necessidade igualmente profunda de buscar aquilo que “falta”. Esse descontentamento e essa necessidade de busca marcam em larga medida a poesia contemporânea, desde as suas origens, como na declaração de Rimbaud: “La vraie vie est absente”, ou no poema “Le voyage” de Baudelaire, no qual o poeta, diante da implacável reprodução do mesmo, decide, nos versos finais, arriscar tudo (“Enfer ou ciel, qu’importe?”) em busca do “novo”.
Como se apresenta hoje a poesia brasileira? É a pergunta que tentaremos responder nesta exposição, na verdade uma sondagem, exploratória como toda sondagem, e por isso balanço inconclusivo sobre o estado recente da nossa poesia. Não se trata apenas, como o título parece sugerir, de uma notícia sobre o que há de mais novo na poesia brasileira. Nosso intuito é levantar, do ponto de vista da expressão e da forma, algumas das propensões e linhas características do conjunto da produção poética brasileira dentro de um marco cronológico definido: a década de 80.
Resumo
O artigo procura apontar linhas e características da produção poética brasileira na década de 80, do ponto de vista da expressão e da forma. Comparada às duas décadas anteriores a cena literária dos anos 80 é pouco ruidosa, sem embates teóricos, predominando o pluralismo na arte poética. Mas é possível traçar certas constantes que configuram esse perfil híbrido: a tematização reflexiva da poesia, a técnica do fragmento, o estilo neo-retórico e a configuração epigramática.
A obrigação do crítico privilegiar obras e não autores, considerando aquelas não só em função das tendências estéticas em que se enquadram, mas também dos percalços da vida cultural no período em que aparecem e das idéias que condicionaram a concepção e a prática da poesia.
Michel Foucault identificou o poder “bio-técnico” como a forma caracteristicamente moderna de poder. Bio-poder, escreve ele, designa “aquilo que faz com que a vida e seus mecanismos entrem no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana”.
Resumo
O Projeto Genoma, que tem por objetivo, no prazo de dez anos, mapear todo o DNA humano, simboliza uma nova articulação dos discursos e práticas do que Michel Foucault identificou como bio-poder. O genoma humano será conhecido de tal forma que poderá ser transformado, colocando por assim dizer a vida à mercê do homem. Essa revolução genética tem um potencial inédito de transformação das relações sociais, configurando o que o Autor chama de bio-sociabilidade.
Historicamente, as práticas e discursos do bio-poder agruparam-se em dois pólos distintos: a “anátomo-política do corpo humano”, âncora e alvo das tecnologias disciplinares, e um pólo regulador centrado na população com uma panóplia de estratégias concentradas no saber, no controle e no bem-estar. Minha pesquisa atual focaliza uma nova articulação dos discursos e práticas do bio-poder, simbolizada de maneira geral — embora não restrita a ele — pelo Projeto Genoma [Human Genome Initiative.
Em um texto relativamente recente, Elizabeth Jelin se pergunta em que sentido é legítimo pensar a temática da mulher dentro da problemática dos movimentos sociais, dado que as mulheres “não constituem um grupo social em si” e sim uma categoria “transversal” a outras (serão estas existentes em si?) como “classes”, “comunidades”, “nações”.
Resumo
Este artigo procura problematizar a abordagem das relações de gênero nas análises dos movimentos sociais contemporâneos, especialmente naquelas que buscam interpretar tais movimentos como constituindo uma matriz única de um novo tipo de ação coletiva. Buscando tornar-se um modelo analítico e explicativo da ação, a noção de movimentos sociais tende a dissolver as identidades e práticas de gênero (como as de cor, de etnicidade, de carências sociais e outras), dissolvendo portanto aquilo que, no próprio modelo, caracteriza os movimentos sociais: o sentido de cada prática coletiva ancorado na enunciação dos próprios sujeitos. O artigo sugere que não só há várias incompatibilidades entre estas duas abordagens, como também que dificilmente as práticas simbólicas diversas podem ser descontextualizadas para agregarem-se em uma categoria unificada de interpretação. Sugere, além disso, outra perspectiva de análise que enfrente as diferenças simbólicas sem reduzi-las a um termo único.
Gostaria, aqui, de problematizar esta questão e suas possíveis respostas por um ângulo, talvez, inusitado: pela própria noção de “movimentos sociais”. Ou seja, pela relação, construída nas ciências sociais, entre a noção de “movimentos sociais” como categoria enunciada unificadamente e as práticas de ação/reflexão coletivas que se fizeram aparecer como discursos diferenciados de identidades singulares, fundantes, cada uma, da representação de si mesmas como sujeitos específicos.
Antes que a recorrência repetitiva dos tumultos banalize a crise soviética, camuflando-a com as cores enganosas das coisas desde sempre anunciadas, é bom lembrar: nada mais surpreendente neste fim de século do que o desabamento inapelável do comunismo na Europa Central e na URSS.
Resumo
Passo a passo com os peripaques da “questão russa”, o problema principal das relações internacionais será, doravante, a absorção dos tremores causados pelo terremoto que desagregou o império externo (os países da Europa Central) e o império interno (as repúblicas da URSS) aglutinados pela Revolução de 1917 em torno de Moscou.
Crítica: Livros “Machado de Assis: Impostura e Realismo”, de John Gledson, tradução de Fernando Py, São Paulo, Cia. das Letras, 1991, 196 pp.
Tento aqui descrever um “novo animal”, um subtipo das democracias existentes, que não foi até agora teorizado. Como acontece frequentemente, são muitas as semelhanças deste com outros animais já identificados – alguns casos estão no limite entre o primeiro e alguns tipos do último. Todavia, me convenci de que as diferenças são suficientemente importantes para tentar essa descrição.
Resumo
A transição de regimes autoritários para governos eleitos democraticamente não encerra a tarefa de construção democrática: é necessária uma segunda transição, até o estabelecimento de um regime democrático. A escassez de instituições democráticas e o estilo de governo dos presidentes eleitos em vários países que saíram recentemente de regimes autoritários — particularmente da América Latina — caracterizam uma situação em que, mesmo não havendo ameaças iminentes de regresso ao autoritarismo, é difícil avançar para a consolidação institucional da democracia. O estudo desses casos sugere a existência de um tipo peculiar de democracia em que a delegação prevalece sobre a representação, que o Autor denomina de democracia delegativa.
Em textos, encontros e discussões, aqueles de nós que trabalharam com as transições e a consolidação democrática disseram repetidas vezes que, já que seria obviamente errado supor uma finalidade comum a esses processos, precisávamos de uma tipologia das democracias. Alguns esforços importantes foram feitos, centrados nas consequências, em termos de tipos de democracia e padrões de políticas públicas, de vários caminhos para a democratização.
Crítica: Livros “Estorvo”, de Chico Buarque, São Paulo, Companhia das Letras, 1991, 141 pp.
Crítica: Livros “Análise do Autoritarismo Burocrático”, de Guillermo 0’Donnell, tradução de Cláudia Schilling. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990, 428 pp.
Provavelmente Habermas é o filósofo contemporâneo que mais se tenha dedicado a traçar um diagnóstico completo de nosso tempo; é como se estivesse pintando um vasto afresco onde tudo pode ser pensado. Sob este aspecto, vincula-se àquela tradição do século XIX para a qual a tarefa do filósofo consiste em erguer uma enorme catedral, complexa e diversificada, povoada de lugares diferentes, cada um se situando em relação ao todo arquitetônico e ao percurso deambulatório do fiel.
Resumo
A Teoria do Agir Comunicativo se baseia, entre outras coisas, numa análise da proposição “p”, onde uma opinião (Meinung) é inserida no discurso por um ato performativo. O Autor trata de discutir esse pressuposto, tentando mostrar como fica difícil manter que todo “p” significa o mesmo que “Eu afirmo que p”. Isto modifica a noção de entendimento (Verstaendigung) que, conforme Wittgenstein, não pode ser atraída pela transparência comunicativa.
Sua Teoria do Agir Comunicativo está ancorada numa análise muito peculiar da proposição, cujos pressupostos convém salientar. Suponhamos que dois atores exprimam, de forma diferente, a mesma opinião (Meinung) “p”, conhecimento (Wissen) comum a ambos. O primeiro afirma para outrem uma situação de fato, o segundo, porém, isoladamente, procura, fundado nesta opinião, provocar efeitos exteriores. Ambos empregam a mesma opinião de modo diverso.
A Folha é o jornal brasileiro que mais revela preocupação com a projeção de imagem. Seu noticiário faz frequentes alusões aos procedimentos que teriam sido executados durante o levantamento e tratamento das notícias. O jornal edita e comercializa um Manual Geral da Redação em que se explicitam os princípios que, idealmente, governariam seu processo produtivo. Mais, existe em operação há alguns anos um “Projeto Folha”, que incorpora ações de marketing, reformas editoriais e de processo de produção, todas elas fartamente propagandeadas. Como é natural, um dos efeitos de toda essa divulgação é incutir no leitor a impressão de que o jornal é, de fato, confeccionado de acordo com todos aqueles rigores e estipulações normativas. É como se a notícia carregasse, como texto subjacente, seu próprio atestado de veracidade.
Resumo
Neste ensaio procura-se exibir alguns dos pressupostos da metodologia jornalística professada pela Folha de S. Paulo. Para isso se realiza uma análise parcial do Manual Geral de Redação daquele jornal e se recorre a algumas manifestações públicas de integrantes de sua cúpula dirigente. Conclui-se que a Folha professa uma visão de mundo identificável com o empirismo vulgar. Os pressupostos explícitos da publicação são, então, aplicados ao exame de dois episódios em que o jornal esteve envolvido: a pergunta formulada na televisão por um jornalista da Folha ao então candidato à Prefeitura de São Paulo, Fernando Henrique Cardoso, sobre se este acreditava em Deus; e a publicação de uma lista de professores da Universidade de São Paulo acusados de improdutividade acadêmica.
No exercício se fará referência central às normas explícitas da Folha, conforme expostas no Manual. Delas transparece uma peculiaridade metodológica crucial, a noção predominante no jornal a respeito do que se entende por objetividade. Da particular objetividade da Folha resulta muito do que se reclama nela.
A coexistência de diferentes sistemas cognitivos tem sido variável fundamental para caracterizar sociedades modernas, distinguindo-as daquelas em que a predominância nítida ou quase exclusividade de um sistema sublinharia sua maior homogeneidade.
Resumo
O artigo discute a questão da complexidade da cultura brasileira através das relações entre sistemas cognitivos e sistemas de crenças. A discussão se articula a partir da construção da noção de indivíduo relacionada com as religiões de transe e possessão. Enfatiza-se que a crença em espíritos, transe, mediunidade e possessão cria uma linguagem básica comum que atravessa toda a sociedade brasileira.
Uma sociedade pode estar ancorada a um sistema que consideramos único mas cuja riqueza e densidade não nos permitiria classificá-lo de simples. O caso da Índia, estudado, entre outros, por Bouglé e Dumont, é um bom exemplo de um sistema social e ideológico altamente complexo que, embora não exclusivo, operou com vigorosa predominância durante séculos. No entanto sabemos também que o hinduísmo apresentava variações, seitas, particularidades e dissidências.
A estratégia de alianças econômicas de um país está diretamente relacionada com sua estratégia de desenvolvimento. No caso do Brasil e da América Latina isto é muito claro. A dependência da região em relação à Inglaterra e depois aos Estados Unidos esteve sempre relacionada com o caráter primário-exportador de seu desenvolvimento. Quando, a partir dos anos 30, a estratégia de substituição de importações tornou-se dominante, a relação com os países centrais também mudou.
Resumo
Este artigo coloca em questão a estratégia internacional do Brasil de buscar a integração latinoamericana, ao mesmo tempo que em relação ao resto do mundo busca uma posição equidistante das grandes potências. A superação da estratégia de desenvolvimento substitutiva de importações, que estava intrinsecamente ligada à idéia de integração latino-americana, impõe repensar o problema. Uma perspectiva multilateral não leva em conta o fato de que a Europa e o Japão estão mais interessados em seus próprios blocos regionais. Nestes termos o autor conclui que, sem prejuízo do Mercosul, o Brasil deve dar prioridade à “integração americana”, que implica uma aproximação econômica e política maior com os Estados Unidos.
O regime militar no Brasil, que em 1964 se apresentou com uma retórica antinacionalista, afinal acabou adotando uma política externa essencialmente nacionalista ao manter a estratégia de substituição de importações. No momento, entretanto, em que se tornou claro para todos que essa estratégia de desenvolvimento havia-se esgotado, mesmo para os grandes países latino-americanos, tornou-se urgente rever a estratégia de relações internacionais do Brasil.
Entrevista de Jon Elster a Esther Hamburger.
Crítica: Livros “Manguinhos, do Sonho à Vida: a Ciência na Belle Époque”, de Jaime L. Benchimol (coord.), Rio de Janeiro, Casa de Oswaldo Cruz, Fiocruz, 1990, 248 pp.
Crítica: Livros “Mito e Tragédia na Grécia Antiga”, vol. II, de Jean- Pierre Vernant e Pierre Vidal-Naquet (tradução de Bertha Gurovitz), São Paulo, Brasiliense, 1991.
Reina atualmente uma grande animação no domínio tradicionalmente austero e introvertido dos museus. Quem os visita dispõe de amplos espaços para a mais desenvolta flânerie, abrigando jardins, passarelas, terraços e janelas que trazem a cidade para dentro do museu. Isto sem falar em cafeterias, restaurantes (por vezes entre os melhores da cidade), ateliers, salas de projeção ou de concertos, livrarias etc. As longas filas que se formam à entrada dessas novas “casas de cultura” nem sempre se devem ao antigo amor à arte, concentrada no acervo do museu, mas às múltiplas atrações que enumerei apenas parcialmente. Faltou incluir, ocupando um lugar de destaque, a própria arquitetura.
Resumo
Os assim chamados “novos museus” transformaram inteiramente as relações do espectador com a obra de arte. Neles a abolição da distância estética resolveu-se num fetichismo invertido: a cultura do recolhimento — administrada como um descartável. Obedecendo a um imperativo de “animação cultural”, que alega em seu favor a regeneração de um combalido corpo social, os novos museus são de fato lugares públicos, mas cuja principal performance consiste em encenar a própria ideologia que os anima — quando muito sucedâneos de uma sociabilidade fictícia e, por força dessa transposição, inteiramente estetizada e neutralizada.
O gosto moderno parece ter sancionado de vez o lado pejorativo da expressão museu e seus derivados. Adorno compara-os a gabinetes de história natural do espírito: não podemos mais manter uma relação viva com seres mumificados, empalhados por razões históricas mais do que por uma necessidade atual. A neutralização da cultura transpareceria
assim com maior intensidade nos museus. Mas não seria uma razão para fechá-los — diz Adorno.
O sistema de controle social das sociedades modernas vem se caracterizando – desde o final dos anos 1940 – pelo crescimento simultâneo da burocracia policial e de organizações e serviços de segurança privada. Em geral, a segurança privada inclui tanto as empresas que vendem a seus clientes serviços de vigilância (de residências, condomínios, lojas, centros comerciais e plantas industriais) ou equipamentos de prevenção (como cães treinados e aparelhos de alarme e autodefesa), quanto os departamentos e divisões de segurança interna de empresas e instituições.
Resumo
O artigo discute alguns problemas postos pelo crescimento da indústria de segurança privada, tanto legal quanto ilegal, no Brasil para a implementação dos direitos civis no país. A fragilidade da defesa dos direitos humanos passa a enfrentar uma nova ameaça: aos dilemas “antigos” — de domesticação da polícia e abertura do Judiciário às classes populares — somam-se agora os problemas “modernos” criados pela privatização da segurança.
Alguns autores (como Shearing e Stenning, 1981) não hesitam em descrever a segurança privada como parte de um sistema de justiça privada que responde a percepções generalizadas da incapacidade do Estado de controlar o problema do crime. Mas, como mostra a pesquisa etnográfica de comunidades pobres em cidades norte-americanas (Suttles, 1968; Marry, 1981) e brasileiras (Santos, 1977; Zaluar, 1985), sistemas privados e informais de justiça emergem da rarefação da presença do Estado na periferia social ou da percepção realista dos vieses discriminatórios que contaminam a ação da autoridade nessas comunidades.