Polícia e política: o regime de poder hoje liderado por Bolsonaro

Debate

 

Por Gabriel Feltran
27 jun. 2021

Nas esquinas, o poder gargalha

Fragmento do poema “Summer 77”
F., recolhido por Néstor Perlongher

 

A ascensão de Bolsonaro não representou apenas uma mudança de governo. O centro de sua ação política é a substituição gradual (por enquanto) de um regime de poder por outro. Tudo o que consideramos ser fundamental ao regime democrático – liberdade de imprensa, divisão de poderes, direito de defesa, liberdade de cátedra, controle externo sobre as polícias, direito ambiental, igualdade de gênero e raça etc. – é percebido pelos homens de bem, fechados com Bolsonaro, justamente como os obstáculos a superar na “revolução que estamos vivendo”.

Minha pesquisa tem como foco a vida cotidiana de favelas e periferias. Nelas, a ordem estatal convive com o poder de facções e milícias, justiceiros e policiais agindo fora da lei. Meu argumento neste ensaio é que essa convivência íntima entre três diferentes regimes de poder, antes observável apenas em territórios periféricos, foi trazida ao centro da vida política nacional desde a ascensão de Bolsonaro.

Em vez da promessa democrática de ampliação da cidadania às periferias, o que vimos na última década foi um movimento oposto. Mecanismos de regulação institucional perderam força enquanto o centro do poder de Estado foi sendo tragado por formas elementares da vida política, há muito hegemônicas nas periferias. Na última década e muito mais claramente desde 2018, vemos uma força centrípeta – das margens ao centro – arrastar as garantias institucionais e rebaixar a política ao plano da violência bruta.

Para cada ação política, uma reação armada. Em Goiás, um adesivo no carro terminou em prisão arbitrária e em Pernambuco uma manifestação pública foi reprimida por decisão autônoma dos policiais. Em Brasília, uma determinação da Suprema Corte que reduzira em 70% a letalidade policial, e produzira uma audiência pública histórica, teve como resposta a operação policial mais letal da história do Rio de Janeiro. Logo após o massacre do Jacarezinho, que deixou 28 mortos, uma entrevista coletiva de policiais denunciando o “ativismo judicial” e os “pseudoespecialistas em segurança pública” não deixou dúvidas sobre o caráter político da operação: era uma defesa da “sociedade de bem”.

A autonomia policial é reivindicação central do movimento político liderado hoje por Bolsonaro. Longe de qualquer controle civil ou estatal, as frações mais politizadas das polícias tripudiam do Supremo Tribunal Federal, do Congresso Nacional, de governadores contrários a Bolsonaro e de todos os que atravessarem seu caminho. Alcançar as instituições políticas seria apenas um meio. O fim é defender a sociedade.

Em 2021, esse movimento está bem instalado em diferentes partidos, teve recursos para compor maioria na Câmara de Deputados e no Senado Federal, é forte entre juízes e muito forte no Ministério Público. O movimento tem também suas bases entre profissionais liberais, nas grandes empresas de comunicação de massa e televisão, além das agências reguladoras. Também tem bases empresariais urbanas e no agronegócio, além de atualmente controlar posições centrais na institucionalidade estatal em todas as suas esferas (municipal, estadual e federal) e nos três poderes (Judiciário, Legislativo e Executivo). Nessas posições, os homens de bem – entre eles muitos policiais – têm acesso privilegiado aos fundos públicos.

As bases ideológicas e materiais desse movimento que se quer um regime totalitário estão nas forças de segurança. As despesas executadas no Orçamento da União em 2020 nas áreas da Defesa (R$ 73 bilhões), da Segurança (11 bilhões) e da Polícia Federal (7 bilhões) já comporiam base material suficiente para sustentar um projeto de poder nacional. O centro deste projeto hoje liderado por Bolsonaro está, entretanto, nas Secretarias de Segurança e de Administração Penitenciária dos 27 estados. Daí saem os fundos que abastecem as Polícias Militares e Civis, algo em torno de 170 bilhões de reais por ano. Só o governo de São Paulo destinou 29 bilhões à Segurança Pública em 2019.

Dados do Conselho Nacional de Justiça falam em mais 15,8 bilhões gastos no sistema carcerário. Os recursos municipais das Guardas Municipais, agora armadas e com orçamento ampliado em todo o país, somam-se às áreas criminais do sistema de justiça, compondo essa máquina gigantesca. Mas não acabou. A segurança privada complementa esses recursos com 33,7 bilhões anuais. Juntas, essas forças da ordem – hegemonicamente bolsonaristas em suas bases e em grande parte de suas posições de comando – são de muito longe o maior orçamento do país para uma política setorial.

Enquanto rios de dinheiro fluem para um modelo de segurança profundamente ineficiente, a situação de insegurança crescente no país faz policiais e militares clamarem por mais e mais recursos, como se não bastasse o achaque sistemático que policiais corrompidos fazem a mercados ilegais muito lucrativos – drogas, armas, garimpo, madeira e veículos ilegais, grilagem de terras etc. O crescimento desses mercados foi marcante desde a transnacionalização da nossa economia, nos anos 1990. Não é à toa que aqueles caminhoneiros que conhecem bem essas riquezas ilegais, por transportá-las escondidas em meio a cargas oficiais, já são bolsonaristas há tempos.

A luta pela vitória desse projeto terá as eleições de 2022, se chegarmos a elas antes de uma ruptura institucional, como ponto de inflexão. A campanha eleitoral já foi lançada nas redes. Policiais politizados estão no centro de uma luta política heroica. Em sua perspectiva, as polícias são a última barreira que separa o país da barbárie. Para compreender a política dessas polícias hoje, no entanto, é preciso saber ao que elas reagem.

I. A emergência das facções criminais como regimes de poder

O primeiro dos regimes de poder antes observáveis apenas nas periferias, hoje mais claramente observável também em outros espaços como portos, aeroportos e fronteiras, é o que emana das facções criminais. As facções se fortaleceram pelas margens urbanas a partir de um duplo movimento: de um lado, buscaram o monopólio da violência nas prisões e nos territórios periféricos e, em seguida, incorporaram como suas normas próprias os códigos de honra e sensos de justiça há muito hegemônicos nas chamadas “comunidades”. Tradicionalmente alijadas da participação estatal, essas comunidades desenvolveram suas práticas de autodeterminação e seus sensos de justiça costumeiros. As facções as institucionalizaram em dispositivos de poder bastante sofisticados, ao contrário do que se pensa. Aquilo que se chama na imprensa de “tribunais do crime” é, na verdade, a elaboração prática de sensos de justiça tradicionais, de extração velhotestamentista. Não se deve caguetar, dar falso testemunho. Não se deve talaricar, cobiçar a mulher do irmão. Não matarás, sem o aval da facção. Não se deve roubar na “quebrada”, é o Crime que oferece a segurança e, portanto, regula a ordem social. Não se deve chamar a polícia, caso seu estabelecimento ou seu carro tenha sido roubado. Não se trata de expansão de direitos nem de um universo público sendo gestado, mas de regulação comunitária da ordem e dos sentidos da justiça.

As facções se fortaleceram ao reforçar esses princípios de vida comum, mas não seriam tão fortes se não tivessem conquistado bases materiais sólidas para seu regime de poder. Desde a chegada dos mercados transnacionais de cocaína ao Rio de Janeiro e a São Paulo, nos anos 1970 e 1980, esses códigos de conduta não regulam apenas a vizinhança, mas também mercados gigantescos. Um grama de cocaína custa em torno de 1 dólar na Colômbia, 3-5 dólares no Brasil e 100-160 dólares na Europa. Quando as facções tocaram esses mercados e passaram a regular elos de suas cadeias globais, produziu-se uma acumulação inédita no seio das comunidades mais pobres do país.

A nacionalização do Comando Vermelho e do PCC, então feita de modo silencioso, transformou as dinâmicas da violência e do poder em todo o país. Norte e Nordeste conheceram subidas dramáticas das curvas de homicídios no novo milênio, quando essas facções romperam a harmonia que caracterizou suas relações por 23 anos, em 2016. Em 2021, as economias de armas e drogas, veículos roubados, autopeças, seguros, leilões, minérios, madeira e muitos outros são cadeias mercantis transnacionais, reguladas em boa medida por essas e outras facções.

Esses mercados ilegais também geraram renda para jovens moradores das favelas. Inscritos no mundo do crime depois do fracasso dos seus projetos de inserção social legítima (e nunca antes, o que nossas etnografias mostram inequivocamente), esses jovens passam a ocupar as posições baixas do tráfico de drogas, da economia de veículos e cargas roubados, do contrabando e da contravenção. O que ganham em uma semana nessas atividades supera o ganho mensal, às vezes anual, do que ganhariam descarregando caminhões, trabalhando como serventes de pedreiro, entregando panfletos ou comida delivery. Códigos de conduta estritos, mas também o dinheiro obtido nesses mercados, cimentaram a reciprocidade e o pertencimento masculinos, também formas elementares do poder.

Contadores, doleiros, advogados e banqueiros fizeram então com que o dinheiro ilegal desses mercados se convertesse em riqueza global. O mesmo câmbio que ajuda exportadores de commodities ajuda exportadores de cocaína, minério ilegal e autopeças roubadas. Portos, aeroportos e fronteiras têm hoje relevância central para negócios (i)legais, como têm para qualquer economia global. O consumo com ganhos ilegais também alimenta a economia, recolhe impostos, valoriza as grandes marcas de roupas, acessórios, motos, carros, helicópteros, a depender da escala de análise.

Esse regime de poder centrado na atuação criminal de facções, como os outros dois que conheceremos, evidentemente ampara sua autoridade no recurso último à violência armada. A Polícia Civil estima que haja 3,5 mil fuzis sob posse de facções criminais, por exemplo, apenas na cidade no Rio de Janeiro. As redes do PCC têm sintonias específicas para regular as armas, cada vez mais pesadas. Irmãos do Comando agem “pelo certo”, como dizem. Querem o “progresso dos seus irmãos”. Esse é seu projeto normativo, a alcançar por meio de inserções progressivamente mais altas, estratégicas e internacionais nos mercados (i)legais. As facções não priorizam tomar posições no Estado, até onde sabemos. As polícias que constroem seu regime de poder autônomo, hoje, já pensam diferente.

II. A reação policial

O segundo regime de poder que já se notava claramente nas favelas e periferias, e hoje chega a posições centrais na esfera política, emana de policiais. Não de todos eles, mas dos policiais específicos, e não são poucos, que achacam esses mercados ilegais e seus operadores de modo organizado, e rotineiramente. Não é pouco dinheiro que esses homens fazem pilhando traficantes, desmanches, lojistas, moradores. Vinte, trinta, cem, duzentos mil reais por semana em um único ponto de venda. O valor se negocia a depender da capacidade de fazer frente à facção local e por isso a guerra das polícias é explicitamente focada em tomar territórios das facções.

Os operadores desses mercados de proteção, entretanto, há muito não são apenas os policiais corrompidos que achacam o mundo do crime. O projeto de mundo desses policiais corrompidos – eliminar os bandidos à bala – aliou-se aos mercados de segurança privados, tocado por policiais dobrando expediente ou por ex-policiais, aposentados na casa dos 40 ou 50 anos de idade, que também se querem forças autônomas. Ativamente, estes homens ocuparam posições em conselhos de segurança, mas também em conselhos de direitos humanos, de diversidade, conselhos tutelares e de direitos de crianças e adolescentes. Aliados a grupos religiosos muito conservadores nesses espaços, eles conheceram alguma oposição, o que fortaleceu ainda mais seus argumentos pela família e contra a depravação, instilados agora por grupos de extrema direita organizados internacionalmente – o mundo Olavo de Carvalho. Todos esses grupos hoje ocupam milhares de cargos no governo Bolsonaro.

A base material desse movimento que chegou às instituições foi a acumulação nos mercados de proteção, reinvestida em mais segurança pública e privada, mas também na proteção veicular, no mercado de terras, de veículos de segunda mão, de autopeças, no setor de eventos ou no mercado imobiliário. Ou ainda em fazendas, grilagem, garimpo e mineração informais, na exploração ilegal de madeira ou combustíveis, a depender da região do país. Depois que o dinheiro está na conta de empresas diversas, todas elas legalizadas pelo trabalho de contadores e advogados, ele pode ser investido em qualquer outro mercado. Associações comerciais locais, fraternidades, corporações e irmandades masculinas, muito fortes sobretudo nos interiores do país, voltaram à cena política como cimento dessas relações. O projeto político que Bolsonaro lidera hoje é mais radical do que o projeto político que esses grupos apoiaram na ditadura.

A forma mais elementar desse regime de poder são as milícias, que hoje controlam 57,5% do território do Rio de Janeiro. Esse regime se manifesta em todos os outros arranjos extorsivos das polícias e de quem se alia a elas no mundo empresarial e político, no Brasil todo. Arranjos tão conhecidos que há um vocabulário próprio para eles, do informal ao institucional: arrego, acerto, pagar madeira, propina, suborno etc. Tão conhecidos que já foram teorizados pelo professor Michel Misse, que nos ensinou: onde houver um mercado ilegal, haverá conectado a ele um mercado de proteção, ilegalmente operado por agentes da ordem.

Amparada na justiça do olho-por-olho e numa masculinidade tradicionalista, essa forma elementar do poder confronta a base da promessa moderna (nunca nem de perto realizada nas margens) dos direitos humanos universais. Não há humanidade comum, nos dizem as polícias. O que existe é uma fratura fundamental que divide cidadãos e bandidos, nos impelindo a uma guerra justa. Os cidadãos de bem são ordeiros e pacíficos, não queriam guerra. Mas se viram acuados pelos bandidos (que nesse campo semântico se confundem com esquerdistas, ateus, depravados, comunistas imaginários ou demônios que instilam todos os anteriores). É preciso recuperar nosso rumo como nação de Cristo, antes que seja tarde.

Em São Paulo, a hegemonia do PCC como guardião da ordem nas periferias combateu violentamente os “justiceiros”, também conhecidos como “pés-de-pato”, grupos de extermínio e esquadrões da morte. Eles foram expulsos das quebradas, ou mortos pela facção. Em muitos outros estados do país, essa é ainda uma guerra em curso, entre as facções e os grupos policiais que agem ilegalmente. Seja como for, a ordem urbana nas favelas e periferias passou a ser mais regulada pelas facções criminais do que por essas forças capilarizadas de controle armado, ligadas a mercados de proteção e grupos de extermínio. Policiais, justiceiros e milicianos, por conta dessa guerra, haviam recuado às fronteiras sociorraciais da cidade, protegendo elites e classes médias nos condomínios fechados, crescentes durante os anos 1990 e 2000. Mas também com guaritas e cancelas nas ruas de classe média, que se tornaram, na década seguinte, empresas de vigilância armada privada. Muros cresceram, câmeras se instalaram e grupos de Whatsapp liderados por policiais aposentados estabeleceram novas posições no mercado de proteção. Aos poucos, a insegurança virou um grande negócio.

Esse dinheiro tem oferecido melhoria de vida para policiais ideologizados e radicalizados, com um programa político claro. Em primeiro lugar, é preciso ter autonomia policial frente a quaisquer leis e regulações. Em seguida, é preciso ter um movimento de massas que legitime esse poder policial, demonizando uma parcela específica e racializada da população, garantindo legitimidade ao extermínio. Não por acaso, as mortes ilegais produzidas pelas polícias voltam-se a um mesmo grupo: jovens negros e favelados, o perfil dos operadores baixos e substituíveis dos mercados ilegais que chamamos de bandidos.

Nos grupos desses policiais, comemoram-se as mortes desses jovens – muitos da mesma cor deles, como que para livrar-se dela – com os colegas de profissão, enviando memes e figurinhas sarcásticas. Quanto menos houver deles, mais limpo estará o mundo. Autonomia policial, desprezo pelas instituições republicanas, massas instiladas pelo ódio e etnocídio: esse projeto expressa todas as feições do movimento totalitário que agora tem um programa de governo e se estrutura como regime de poder no seio das instituições. Não vivemos o totalitarismo como regime, nem é certo que teremos um regime totalitário. O movimento que o prepara, entretanto, precisa ser brecado.

III. O Estado democrático de direito

O terceiro regime de poder que se notava nas favelas e periferias, era o Estado democrático de direito. Ao contrário do que se diz, não há ausência de Estado nas periferias. Além de seu braço repressivo, quem conhece uma favela ou um conjunto habitacional, ou ainda um bairro periférico autoconstruído, sabe que o Estado de Direito está (muito precariamente) representado ali por agentes de saúde, professores e profissionais da educação, assistentes sociais e defensores de direitos de crianças e adolescentes, sempre atuando em equipamentos públicos ou entidades sociais de baixo orçamento. Essas entidades são ligadas, quase sempre, a instituições religiosas católicas e evangélicas, mais raramente a grupos laicos como organizações não governamentais ou sindicatos. Nelas, misturam-se o desejo por proteção social do Estado e a lógica religiosa da filantropia.

Nas trajetórias de vida que estudei nas periferias, havia uma clivagem fundamental na relação das famílias com o Estado de direito. Quase sempre, as famílias já mais estabelecidas – operários, taxistas, encarregados, eletricistas, zeladores etc. – puderam ter acesso a alguma educação pública nos anos 1970-80, com alguma qualidade. Nesse período, a escolaridade superior não alcançava 2% da força de trabalho no país. Além disso, tiveram também algum financiamento habitacional e, por vezes, saúde pública vinculada à carteira de trabalho. Esse grupo mais estabelecido ofereceu aos filhos e netos, graças ao salário indireto que esses direitos representaram, uma vida muito melhor do que eles mesmos, os pais e avós, tiveram. A famosa classe C se constituiu assim, e viu em Lula a chance da integração social prometida desde os tempos de altas taxas de migração.

Mas outro segmento das periferias urbanas que entrevistei nos últimos anos – o das diaristas, dos trabalhadores informais e por conta própria, dos serventes de pedreiro, auxiliares de serviços gerais e terceirizados – não teve acesso a nenhum desses direitos sociais em sua trajetória. Não há financiamento habitacional ou carteira de trabalho assinada por longos períodos. Não há escolarização da primeira geração urbana, muitas vezes nem da terceira. O acesso à saúde pública só chega nos anos 1990, com a estratégia de Saúde da Família, ao mesmo tempo que se democratiza e se precariza a escola em que filhos e netos conhecem. O mercado de trabalho que acessaram sempre foi mais desprotegido, como foram suas famílias e trajetórias urbanas.

É nesse segmento mais baixo das periferias, evidentemente, que favelados veem a reprodução de sua pobreza na pobreza de seus filhos. É, evidentemente, desse setor social que vai brotar a minoria entre jovens favelados que, ontem e hoje, ocupa as posições baixas dos mercados ilegais, do crime violento e dos mercados de proteção. Policiais de baixa patente vêm também desses estratos baixos dos trabalhadores, enquanto oficiais costumam vir das classes médias e média baixas.

Bons policiais, que agem segundo a Constituição Federal e as constituições de seus estados, infelizmente são raros nas favelas e periferias. Esses bons policiais cedo ou tarde acabam preferindo sair da guerra que se trava ali, porque não estão interessados nos seus espólios. O termo espólio de guerra, aliás, é usado por policiais quando eles se apropriam daquilo que “conquistaram” na luta da “sociedade de bem” contra o crime: dinheiro, drogas, fuzis, cargas. Sobram nessa guerra os policiais, os milicianos, os matadores e justiceiros que agem ilegalmente e que galgam posições institucionais de comando nas próprias corporações, organizando a pilhagem para se apropriarem agora dos fundos públicos. Mais dinheiro, mais armamento e novas posições institucionais, vindas do orçamento estatal.

Não é difícil entender, portanto, a rotina das mortes físicas e simbólicas que os que queremos um país democrático temos vivido na última década. Ou se garante algum controle externo sobre as polícias, regulando as economias ilegais que maus policiais achacam e os orçamentos públicos que policiais controlam, ou mesmo as elites que um dia os controlaram se arrependerão de tê-los apoiado. Os setores democráticos, que nunca tiveram um projeto de segurança pública condizente com os desafios representados pelo crescimento desses regimes de poder, deveriam se preocupar em construir algum.

***

Os regimes de poder bem-sucedidos, historicamente, articularam ao menos duas coisas. Em primeiro lugar, organizaram os ideais de uma parte da sociedade na forma de um projeto político. Valores religiosos, crenças e ideologias, normatividades e ideais de justiça dos mais diversos fundamentaram os regimes de poder vitoriosos, das sociedades tribais aos Estados modernos. Para que esses ideais e projetos se sustentassem como poder efetivo, no entanto, foi preciso também controlar recursos materiais e armas de guerra.

A tradição sociológica, de Max Weber a Charles Tilly, nos ensina que as guerras e pilhagens estão na base de qualquer Estado contemporâneo. As veias abertas da América Latina construíram os Estados ibéricos, os vikings de ontem são a social-democracia dinamarquesa de hoje. A espoliação urbana de São Paulo produziu o “milagre econômico” da ditadura, apropriado pelas elites industriais que se tornaram dominantes no país. Os mercados ilegais de hoje, associados a orçamentos públicos gigantescos, produzem base material para a construção de outras elites políticas, formadas pelas polícias e seus aliados, que lutam contra seus competidores – as facções e seus aliados – por essa posição na elite. A luta militarizada das polícias contra bandidos, antes restrita aos territórios de favelas e periferias, é hoje vetor central das políticas estaduais e das narrativas de construção do projeto de Estado. Enquanto as facções miram apenas os mercados, as polícias já se estabeleceram neles e miram o poder de Estado, aliadas aos grupos evangélicos dominantes.

Monopolizar a violência das armas e controlar a acumulação, o quanto possível, é o que funda regimes de poder duradouros. A associação ideológica entre grupos armados e elites proprietárias no Brasil não deixa dúvidas quanto a isso. O acesso conjunto a riquezas e armas permite converter um projeto normativo, um ideal de sociedade, em um regime material de poder realmente existente.

Um dia pudemos acreditar, nas classes médias e elites, que a redemocratização teria encerrado o ciclo tradicional de pilhagens e violência política no Brasil. No começo dos anos 1990, falamos em transição democrática. Vivemos durante duas décadas (os anos 1990 e 2000) a hegemonia cultural de um projeto de Estado com repartição de poderes, liberdades civis e uma burocracia moderna. Enquanto vivíamos isso, as periferias de São Paulo viviam o que se chamou de “a época das guerras” e as taxas de homicídio atingiam seu pico: entre homens de 15 a 25 anos, essa taxa chegou a quase 1.000 por 100 mil habitantes, a maior da história do Brasil em qualquer estado. Essa guerra já se travava pelos mercados ilegais emergentes, apropriados por facções e policiais nas décadas seguintes.

O projeto político que se desenvolveu silenciosamente desde então, hoje anunciado explicitamente por seu líder, Jair Bolsonaro, substitui paulatinamente essa pretensa democracia “construção e já ruína” por uma ordem política efetiva, policial, baseada imediatamente nas armas e nas riquezas que elas conquistam. Para cada problema político, uma saída violenta. O que antes era a rotina do poder nas favelas e periferias, então, tende a se “democratizar”. Não foi fazendo o controle desses pobres, afinal, que homens de bem e seus leais policiais aprenderam como opera o poder?

 

 

Gabriel Feltran é professor do departamento de sociologia da UFSCar e pesquisador do Núcleo de Etnografias Urbanas do Cebrap. É autor de Irmãos: uma história do PCC (Companhia das Letras, 2018) e The Entangled City: Crime as Urban Fabric (Manchester University Press, 2020).

 

 

Crédito da imagem: Jair Bolsonaro em solenidade de encerramento de curso da PM em São Paulo. Foto: Marcos Corrêa/PR