Pandemia, pobreza e desigualdade no Brasil

especial pandemia

Por André Roncaglia de Carvalho, Eloiza Regina Ferreira de Almeida, Luciana Rosa Souza e Solange Gonçalves

6 maio 2020

A Covid-19 encontrou o país em situação econômica preocupante. Em lenta recuperação da última recessão, a economia apresenta crescimento baixo (média de 1% nos último três anos), elevado nível de desemprego e informalidade, famílias endividadas, contas públicas fragilizadas, dentre outros problemas.

A paralisação das atividades que resulta da política de prevenção de sobrecarga do sistema de saúde vem agravar ainda mais a situação de empresas e famílias. Os maiores empregadores do país (micro, pequenas e médias empresas) são incapazes de sustentarem suas folhas de pagamento. As perdas mensais decorrentes do isolamento social são estimadas em cerca de R$ 54 bilhões de renda dos trabalhadores por conta própria, informais, desempregados e em desalento (Brancher et al., 2020). Com efeito, a crise tende a agravar a situação material de parcela expressiva da sociedade brasileira.

O sonho smithiano

Adam Smith defendia que a verdadeira medida da riqueza de uma nação não é o tamanho do tesouro de seu rei ou as posses de poucos ricos, mas o salário dos “trabalhadores pobres”. Para o pai do liberalismo econômico iluminista, o principal papel do mercado era produzir tal riqueza, a ponto de permitir que aquele que “alimenta, veste e produz habitações” para um povo inteiro consiga ele mesmo estar razoavelmente bem alimentado, vestido e alojado.

O Brasil infelizmente nem se aproxima ainda desse sonho smithiano. O mercado de trabalho brasileiro não dá conta de oferecer a metade de seus trabalhadores a proteção social contra a loteria do mercado.

A ideia é vergonhosamente intuitiva: pessoas ricas conseguem viver de sua “poupança” acumulada quando lhes falta a renda do trabalho. É um colchão amortecedor para as quedas da atividade econômica da sociedade. Já os pobres costumam ter pouca poupança acumulada na forma de “ativos” imóveis, financeiros e mesmo educacionais. Sua rede de proteção em momentos de estresse no mercado de trabalho é o “fiado”, o empréstimo entre parentes e amigos, a caridade alheia ou a penúria simplesmente.

Choques pandêmicos

O enfrentamento da crise sanitária requer que a economia seja colocada em estado de coma induzido. Isso se traduz em três tipos de choques que afetam as famílias em um mesmo ponto do tempo (ou em momentos distintos), a saber: i) choques de saúde relacionados diretamente à contaminação pelo vírus; ii) choques de desemprego, que levam os indivíduos à desocupação ou à informalidade; iii) choques psicológicos com impactos de duração variada.

Esses choques podem determinar uma queda temporária na renda total do domicílio e podem levar as famílias à pobreza. Métodos cada vez mais sofisticados produziram o consenso acerca da característica dinâmica do fenômeno, em que se nota a existência de propagação dos ciclos de pobreza, bem como de um movimento de saída e entrada de famílias na situação de privação. Estes últimos são ainda mais comuns em países em desenvolvimento, seja por causa do alto grau de informalidade nos mercados de trabalho urbanos (que, por exemplo, no Brasil representa 45,8% do total de ocupados),[1] seja por causa da incidência de choques (de preços, climáticos, entre outros) em áreas rurais.

A convivência com choques e risco de entrada na pobreza determina que todo o conjunto de decisões dos membros de uma família (voltados à educação, ao mercado de trabalho, formação de uma família) seja distinto.

Nesse processo de chegada de um choque estrutural ou idiossincrático, as famílias podem utilizar estratégias para manter o seu nível de bem-estar. A primeira estratégia pode ser a utilização de mão de obra adicional, ou seja, no momento em que um membro sofre um choque de saúde ou de desemprego, outros membros podem tentar ofertar mão de obra no mercado de trabalho, como adolescentes que poderiam estar em situação de inatividade e com dedicação exclusiva aos estudos, ou, até mesmo, crianças.

A segunda estratégia é a utilização do conjunto de ativos físicos ou financeiros pertencentes às famílias, em prol da suavização do consumo ao longo do tempo. O conjunto de ativos de uma família reflete o seu nível de riqueza e é composto por itens domésticos, como televisão ou notebook, veículos (carros ou motos), ou posse de habitação ou terreno. Os ativos financeiros são as aplicações financeiras da família ou a possibilidade de tomada de crédito/empréstimos no mercado financeiro. A posse de alguns desses ativos garante um rendimento estável ao longo de um período, pela venda (no caso dos bens físicos) ou pelo retorno que geram (no caso dos bens financeiros), mantendo a família acima da linha de pobreza (ou de pobreza extrema).

A terceira estratégia da família é a utilização de benefícios advindos de políticas públicas ou privadas emergenciais, que possibilitam a obtenção de uma renda permanente ou temporária. O uso desse instrumento depende do tamanho, focalização, acesso e aderência das famílias às políticas.

Outros dois fatores podem também ser determinantes não somente para a entrada como também para a permanência e duração da situação de privação da família, a saber: a frequência e o tamanho dos choques que afetam as famílias.

No contexto dos choques relacionados à Covid-19, esses dois fatores são determinados: i) pelo número de membros afetados pela doença – que é diretamente relacionado ao percentual de membros que continuam atuando no mercado de trabalho e fora do isolamento horizontal; e ii) pela gravidade das consequências que esses choques determinam – desemprego, doença psicológica ou morte do chefe da família (usualmente, renda principal do domicílio) ou de algum outro membro em idade ativa (membros secundários que colaboram para o orçamento mensal familiar), ou demais membros.

Dessa forma, a depender dos choques e consequências que a Covid-19 venha a causar em uma família, a probabilidade de entrada e de saída da pobreza com retorno ao nível anterior de bem-estar é afetada, determinando que famílias que anteriormente eram não pobres passem a ser pobres transitórias e que outras que eram não pobres ou pobres transitórias passem a ser pobres crônicas e fiquem por muito tempo e gerações na pobreza.

Dinâmica da pobreza no Brasil

Uma extensa literatura busca realizar a diferenciação demográfica e socioeconômica entre as famílias com pobreza crônica e transitória, bem como entender quais seriam os choques e fatores associados à entrada, permanência e duração do período abaixo da linha de pobreza das famílias, além de discutir a necessidade de políticas públicas específicas para cada um dos tipos de pobreza. Na literatura internacional, cabe citar os estudos seminais de Bane e Ellwood (1986) e Jalan e Ravallion (1998, 2000). Para o Brasil, alguns trabalhos já buscaram mensurar o tamanho da pobreza crônica e transitória e estimar as chances de entrada e saída da pobreza: Machado e Ribas (2010), Ribas, Machado e Golgher (2011), Gonçalves (2015) e Gonçalves e Machado (2015).

Com o uso dos microdados longitudinais trimestrais da PNADC (IBGE), para o período entre 2017 e 2018, verificamos que, aproximadamente, 5% das famílias permaneceram na pobreza durante quatro ou cinco trimestres da pesquisa, enquanto 10% das famílias estavam na pobreza em um, dois ou três trimestres, dentre os cinco trimestres em que ocorrem as entrevistas.[2] Dessa forma, 15% das famílias passam por situação de privação em um ou mais pontos do tempo durante o período analisado. Além disso, entre as famílias que permanecem na pobreza durante quatro ou cinco trimestres, 48% são chefiadas por mulheres e 64% são chefiadas por negros ou pardos. Já nas famílias que permanecem um menor período na pobreza – um, dois ou três trimestres – esses percentuais são de 41% e 56%, respectivamente. Com relação à escolaridade dos chefes de família, a Figura 1, abaixo, também demonstra a heterogeneidade existente entre as famílias pobres, com base no tempo em que ficam em situação de privação.

Figura 1. Tempo na pobreza e escolaridade dos chefes

Fonte: Dados da PNADC (IBGE) para a amostra de famílias de 2017 e 2018 que permaneceram na pesquisa durante cinco trimestres.

Dados da PNADC divulgados pelo IBGE para o primeiro trimestre de 2020 (https://www.ibge.gov.br/estatisticas/multidominio/condicoes-de-vida-desigualdade-e-pobreza/9171-pesquisa-nacional-por-amostra-de-domicilios-continua-mensal.html?edicao=27527&t=destaques) indicam os impactos do isolamento social sobre o mercado de trabalho, mostrando que: i) a taxa de desocupação subiu 1,3 ponto percentual em relação ao último trimestre de 2019; ii) houve redução em 2,33 milhões de trabalhadores em atividade vis-à-vis o que foi observado no último trimestre de 2019;  iii) 832 mil trabalhadores informais atuando no setor privado deixaram de trabalhar (https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/04/30/O-que-diz-o-primeiro-dado-de-desemprego-na-pandemia); enquanto iv) 742 mil trabalhadores por conta própria deixaram de trabalhar. Assim, os primeiros dados da dinâmica do mercado de trabalho no período de isolamento social mostram um aprofundamento das vulnerabilidades daqueles trabalhadores que já eram vulneráveis antes da pandemia.

Efeitos sobre a desigualdade

Os impactos da Covid-19 em um país fortemente desigual como o Brasil potencializam ainda mais as desigualdades enraizadas na sociedade. Enquanto uma parte pequena da sociedade consegue manter o isolamento social, trabalhando remotamente, a imensa maioria dos cidadãos do país permanece alijada de condições sanitárias mínimas como acesso a rede de esgoto, água potável[3] (http://www.snis.gov.br/diagnostico-anual-agua-e-esgotos/diagnostico-dos-servicos-de-agua-e-esgotos-2018), e as condições de moradia (https://nacoesunidas.org/campanha-do-onu-habitat-aborda-efeitos-da-pandemia-de-coronavirus-nas-cidades/), por exemplo, não permitem o afastamento mínimo que deve ser mantido para evitar a transmissão da doença. O acesso à informação (https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2020-03/covid-19-moradores-de-favelas-precisam-de-acoes-de-prevencao) sobre a doença por parte da população mais vulnerável também é precário, dado que não necessariamente ela provém de fontes oficiais.

Enfim, em cenário de pandemia, a desigualdade no país tende a se acentuar, seja pelas questões econômicas que vão afetar ainda mais negativamente os mais pobres, seja pelas questões sociais que tenderão a reforçar os mecanismos de desigualdade presentes na sociedade, dado que os mais poderosos economicamente conseguirão apoio dos governos com mais facilidade. Ao mesmo tempo, caso a crise pandêmica não promova o questionamento da posse de ativos geradores de renda na sociedade brasileira, qualquer opção política escolhida pelo governo tenderá a reforçar a desigualdade, dado que esta se centra fundamentalmente na posse de ativos geradores de renda.[4]

 

[1] Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNADC/IBGE), considerando a população ocupada entre 18 e 65 anos para o ano de 2019. Para a definição de trabalhador informal, é utilizada a informação sobre a posse de carteira assinada e sobre a contribuição ao INSS, e são excluídos os empregadores.

[2] Foi utilizada a amostra de famílias da PNADC (IBGE), de 2017 e 2018, que permaneceram na pesquisa durante cinco trimestres. Cálculos realizados utilizando como critério para definição de pobreza e extrema pobreza os critérios de elegibilidade do Programa Bolsa Família, de renda domiciliar per capita inferior a R$ 85,00 e R$ 89,00, para extrema pobreza, e R$ 170,00 e R$ 178,00, para pobreza, para os períodos: primeiro trimestre de 2017 a segundo trimestre de 2018; e terceiro trimestre de 2018 a quarto trimestre de 2018, respectivamente. A renda domiciliar total per capita inclui a renda do trabalho total e a renda do não trabalho total (renda de programas de transferência – Programa Família e Benefício de Prestação Continuada, renda de aposentadorias e pensões do INSS ou alimentícia, aluguéis, doações e outros programas sociais).

[3] “Hoje no Brasil, quase 35 milhões de pessoas vivem sem acesso a água tratada, enquanto 100 milhões não têm esgoto tratado”.

[4] Imóveis, investimentos financeiros, terra, bens de consumo durável etc.

 

Referências bibliográficas

Bane, M. J.; Ellwood, D. T. (1986). “Slipping into and out of Poverty: The Dynamics of Spells”. The Journal of Human Resources, Madison, v. 21, pp. 1-23.

Brancher, M. C. et al. (2020). “Impactos econômicos da crise da Covid-19 e dos Programas de Renda Básica Emergencial”. Nota Técnica do Centro de Estudos do Novo Desenvolvimento. São Paulo: CND-FGV.

Gonçalves, S. L. (2015). “Vulnerabilidade das famílias à pobreza: uma análise empírica para seis regiões metropolitanas (2002 a 2011)”. Rio de Janeiro: Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

_____; Machado, A. F. (2015). “Poverty Dynamics in Brazilian Metropolitan Areas: An Analysis Based on Hulme and Shepherd’s Categorization (2002-2011)”. Economia, 16(3), pp. 376-94.

Jalan, J.; Ravallion, M. (1998). “Transient Poverty in Postreform Rural China”. Journal of Comparative Economics, 26(2), pp. 338-57.

_____. (2000). “Is Transient Poverty Different? Evidence for Rural China”. The Journal of Development Studies, 36(6), pp. 82-99.

Machado, A. F.; Ribas, R. P. (2010). “Do Changes in the Labour Market Take Families out of Poverty? Determinants of Exiting Poverty in Brazilian Metropolitan Regions”. The Journal of Development Studies, n. 46, pp. 1.503-22.

Ribas, R.; Machado, A. F.; Golgher, A. B. (2011). “Flutuações e persistência na pobreza: uma análise de decomposição transitória-crônica para o Brasil”. Pesquisa e Planejamento Econômico, 41(2).

 

Sobre os autores

André Roncaglia de Carvalho é docente do departamento de economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). É pesquisador nas áreas de desenvolvimento econômico e desigualdade de renda e riqueza no Brasil. Pesquisador associado ao Cebrap.

Eloiza Regina Ferreira de Almeida é mestranda em economia e desenvolvimento na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora associada ao Cebrap, com pesquisa nas áreas de mercado de trabalho, economia regional e diferenciais de gênero.

Luciana Rosa Souza é docente do departamento de Economia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora na área de políticas públicas para mitigar a pobreza e desigualdade no Brasil e na América Latina. Pesquisadora associada ao Cebrap.

Solange Gonçalves é docente do departamento multidisciplinar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisadora associada ao Cebrap. Doutora pela Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa nas áreas de dinâmica da pobreza, economia do trabalho e avaliação de políticas públicas.