Operação Impeachment: coalizões importam; forças de justiça, também.

Debate, Resenha

por Mariana Batista
10 ago. 2023

 

LIMONGI, Fernando. Operação impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato. São Paulo: Todavia, 2023.

 

Março de 2013: a popularidade da presidente Dilma Rousseff do PT é de 63%. Reeleita para um segundo mandato em 2010, Rousseff sucedeu dois presidentes que também alcançaram a reeleição. A instabilidade da Nova República parece ter ficado para trás, com alternância entre partidos com posições ideológicas distintas, passagem de faixa presidencial amistosa e mudança saudável no direcionamento das políticas públicas de acordo com o resultado das urnas. O presidencialismo de coalizão funciona para produzir decisões. O sistema político brasileiro seria governável no final das contas.

Na ciência política, o clima era de que, como tema de interesse, o “presidencialismo de coalizão” estaria em estágio de saturação. Formou-se um relativo consenso em torno da estabilidade do arranjo no qual presidentes compartilhariam o poder com parceiros da coalizão em troca de apoio legislativo. Os partidos seguiam a orientação dos líderes partidários e a agenda legislativa do presidente alcançava sucesso sem maiores dificuldades. O debate na academia não era sobre os resultados do presidencialismo de coalizão, mas sim sobre os mecanismos de funcionamento do arranjo político: se baseado em algum alinhamento programático/ideológico ou em patronagem/trocas particularistas de cargos e orçamento. Era tempo de realocar a atenção dos analistas para outros temas. Era hora de estudar outra coisa.

O clima de estabilidade, tanto na ciência política quanto na percepção cotidiana, foi abalado por sucessivos eventos: protestos de rua, escândalos de corrupção e fratura no apoio político, culminando no impeachment de Dilma Rousseff, em 2016. De repente, as coalizões do presidencialismo que explicavam tudo, agora não explicavam nada. Por que voltamos a ter um sistema político no qual presidentes não terminam mandatos e a “arma nuclear” do impeachment deixa de ser fator de dissuasão e passa a ser de fato usada?

Na política comparada, a explicação vigente dessa nova instabilidade do sistema é baseada em fatores exógenos. A equação é a seguinte: a soma de escândalos de corrupção, queda na popularidade presidencial, protestos de rua e pressão sobre políticos resulta na queda do escudo legislativo que protege o presidente de processos de impeachment, que necessariamente requerem apoio super majoritário.

Num primeiro momento essa explicação parece fazer todo sentido: fortes escândalos de corrupção no âmbito da Petrobras dominaram o noticiário com eventos cada vez mais cinematográficos. Os protestos de rua foram numerosos e bateram sucessivos recordes. A popularidade de Dilma caiu vertiginosamente num curto intervalo de tempo. Pouco a pouco os políticos que faziam parte da base de apoio pareceram sofrer a pressão das ruas e decidiram mudar de lado. No âmbito geral a explicação faz sentido, mas quando olhamos para o caso, a sequência de eventos gera dúvidas. Será que a objetividade dos escândalos de corrupção é a responsável por levar as pessoas à rua e a pressão popular por mudar o comportamento dos políticos?

Com foco especificamente no impeachment da presidente Dilma Rousseff, outras explicações surgiram no debate político. A primeira, e mais determinística, seria a de que de fato a gestão de Dilma teria sido palco de atos de corrupção e isso justificaria o processo de impeachment (mesmo o impeachment tendo sido baseado nas chamadas “pedaladas fiscais” e não em casos de corrupção). Outras explicações, baseadas na política, argumentariam que: 1) Dilma sofreu o processo de impeachment por ser “centralizadora” ou não ter experiência política e, por isso, não saber negociar com os parlamentares (a discriminação baseada no gênero fica subentendida aqui); 2) o PT não soube gerenciar as coalizões, pois não compartilhou o poder de forma adequada com os partidos da base aliada que, por não estarem sendo recompensados de forma apropriada, se rebelaram, utilizando a arma maior que é o impeachment.

Esse é o cenário que Fernando Limongi busca explicar no livro Operação impeachment: Dilma Rousseff e o Brasil da Lava Jato. A partir de um estudo de caso detalhado, sua obra destoa tanto da explicação vigente na política comparada quanto das tentativas de explicação do caso específico observado no Brasil em 2016. O argumento de Limongi busca tornar compatível a explicação dos eventos que levaram ao impeachment com a análise especializada que mostra ao leitor o funcionamento do presidencialismo de coalizão brasileiro. Se as coalizões explicavam a estabilidade política vigente até o segundo mandato de Dilma, também teriam que explicar a sua derrocada.

O livro é estruturado de forma direta e simples, construindo um enredo no qual o leitor fica cada vez mais curioso para saber: afinal, o que levou ao impeachment de Dilma? Escrito por um dos principais cientistas políticos do país, a proposta da obra não é ser um livro técnico de ciência política, mas um estudo de caso acessível a todos os públicos. O leitor interessado em política encontrará uma explicação primorosa e factual para o impeachment. O especialista, por sua vez, identificará o diálogo sutil com a literatura especializada e de onde o autor constrói a sua explicação teoricamente fundamentada.

O argumento busca “endogenizar” a explicação do impeachment de Dilma Rousseff, mas sem perder de vista a inserção no contexto no qual o impedimento ocorreu, trazendo as coalizões e o comportamento dos atores envolvidos de volta para a explicação. Iniciando com o contexto político relativamente positivo do início dos governos Dilma, cada capítulo, então, avança e contribui para a construção da explicação.

Nesse ponto identificamos os conflitos internos no âmbito do governo Dilma. Não somente a busca da coalizão por mais espaço no governo, como também conflitos internos ao PT mostravam as dificuldades que poderiam ameaçar a condução do governo em contextos menos tranquilos. As indicações para a Petrobras já mostravam que Dilma enfrentava críticas de todos os lados e que a crise estava sendo gestada desde o seu primeiro mandato. O livro então explora o surgimento das manifestações de rua, seus atores principais e suas ligações políticas, e como as mobilizações foram decididas e os resultados alcançados. Vale ressaltar a riqueza de detalhes que o autor mobiliza quanto às pessoas envolvidas e a sequência e momento exato dos eventos. Aqui aprendemos que “protestos não brotam como água dos mares”. A ligação entre movimentos de rua e atores políticos tradicionais fundamenta a conclusão de que protestos de rua não são “exógenos”. Não são espontâneos, muito menos apolíticos.

O ponto alto do livro é a reconstituição dos escândalos de corrupção e da atuação dos órgãos de justiça, principalmente o embate entre a Lava Jato de Curitiba e a Procuradoria Geral da República (PGR). Os dois lados promoviam o lema de combate à corrupção, mas com ideias bem distintas de qual grupo político estava no topo da pirâmide. Enquanto a PGR tinha como foco o PMDB e, principalmente, Eduardo Cunha, Curitiba focava no PT. Com acusações para todos os lados e delações para todos os gostos, promotores e juízes cada vez mais engajados na repercussão pública de suas ações influíram diretamente na política, gerando o clima de salve-se quem puder. Essa influência direta atingiu seu ápice em dezembro de 2015, com uma operação envolvendo diretamente Dilma Rousseff e que virou completamente o jogo. De uma situação que se encaminhava para a acomodação e pacificação dos interesses, rapidamente uma maioria foi formada e o impeachment encaminhado para votação. Dessa forma, não é possível explicar o impeachment de Dilma sem levar em consideração a atuação extremamente forte de atores não eleitos e como eles afetaram o cálculo dos políticos.

Em suma, apesar da linguagem clara e simples, Fernando Limongi propõe uma explicação complexa na qual um único fator não é capaz de determinar um processo de impeachment, tal como o observado em 2016 no Brasil. A ruptura da coalizão é fundamental para a explicação porque decisões são tomadas por atores, mas o contexto não deixa de ser fundamental para compreendermos a estrutura de incentivos que leva os atores a optarem por determinados cursos de ação. Contexto importa, e no caso do Brasil de 2016 esse contexto teve a atuação sem paralelo de promotores e juízes afetando a esfera política. Um empurrãozinho das forças de justiça foi o fundamental para fraturar a base de apoio de Dilma e parte dela mudar de lado na votação do impeachment.

Cometendo o crime de criticar um livro por não fazer aquilo que não se propôs fazer, uma ausência importante é a de proposição de teoria. No exercício indutivo de explicar as razões do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o autor poderia ter proposto uma explicação mais geral para processos de impeachment. Sente-se falta de uma breve testagem de hipóteses com base em exercícios contrafactuais comuns em estudos de caso. Como sabemos que os elementos enfatizados são os fatores explicativos do impeachment? Como sabemos se fatores relevantes não foram excluídos ou tiveram sua relevância diminuída na conjuntura causal? O exercício empírico é muito abrangente para terminar sem a proposição de uma teoria sobre o tema.

Essa pode ser uma limitação sentida mais fortemente pelo público acadêmico que claramente não é o público-alvo exclusivo do livro. Contudo, dialoga diretamente com outra possível limitação baseada no material empírico utilizado para a construção da explicação. O autor utiliza em grande medida materiais de jornais para reconstituir os fatos e fundamentar os argumentos desenvolvidos. Porém, uma vez que uma das conclusões do livro é que parte do que é veiculado e enfatizado à exaustão na mídia segue a agenda de determinados atores políticos, talvez uma análise crítica sobre o uso desses materiais fosse relevante. Duas limitações que mostram que o livro terminou muito cedo e livros bons sempre poderiam se alongar mais.

Um velho ditado diz que “jabuti não sobe em árvore: ou foi enchente ou foi mão de gente”. O livro de Limongi vai de encontro ao argumento da enchente e nos mostra pelas mãos de quem o jabuti chamado impeachment subiu na árvore. Uma análise simultaneamente complexa, mas de leitura leve e agradável, que torna o livro um clássico imediato. Leitura fundamental tanto para os interessados em política em geral quanto para os analistas do presidencialismo de coalizão brasileiro, que agora têm novamente muito o que estudar.

 

 

Mariana Batista [https://orcid.org/0000-0002-2456-4164] é doutora em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco, professora adjunta do Departamento de Ciência Política da mesma universidade. Atua na área de ciência política, com ênfase em instituições políticas, governos de coalizão, relações Executivo-Legislativo e políticas públicas. E-mail: mariana.batistas@ufpe.br.

 

Crédito da imagem: Marcelo Camargo/Agência Brasil. Votação na Câmara dos deputados no dia 17 de abril de 2016.