O valor e a essência da democracia

por Adam Przeworski (New York University)
Tradução e apresentação: Lucas Petroni
11 fev. 2022

Os trabalhos de Adam Przeworski são uma referência incontornável nos estudos de economia política e política comparada e, do ponto de vista brasileiro, indissociáveis da história do Cebrap e da Novos Estudos. Seja em seus estudos pioneiros sobre o socialismo eleitoral, sobre o papel (ou não) das instituições no desenvolvimento econômico e nas transições democráticas, ou em seus trabalhos mais recentes sobre a lógica da disputa democrática, a obra de Przeworski é marcada por duas virtudes intelectuais preciosas, nem sempre encontradas em um mesmo intelectual: rigor analítico e abertura intelectual. Przeworski é, acima de tudo, um teórico da dignidade da política. Não o teórico dos modelos ideais de autogoverno, mas sobretudo do valor – raramente questionado pelos cidadãos e cidadãs de carne e osso – de não sermos governados por “outros específicos” depois do próximo ciclo eleitoral.

O texto a seguir foi publicado pelo autor em sua conta pessoal do Twitter[1] em janeiro deste ano. Trata-se de uma síntese (“em 350 palavras”) daquilo que Przeworski entende como “o valor e a essência da democracia” após mais de quatro décadas de contribuição intelectual e engajamento pessoal na causa democrática.

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Muitas pessoas valorizam a democracia porque esperam dela certos valores extrínsecos a ela, como a liberdade e a igualdade política, ou que ela promova objetivos sociais ou econômicos valiosos. Contudo, a democracia possui também um valor que lhe é intrínseco: ela permite, de tempos em tempos, que uma coletividade decida quem a governará e, em alguma medida, como isso será feito. Quais desses motivos fazem com que distintos indivíduos em sociedades diferentes valorizem a democracia é uma questão sobre a qual ainda pouco sabemos.

A democracia é a realização second-best do ideal de “autogoverno” do século XIX. Seremos governados pelos outros, o que é desagradável: somos forçados a fazer coisas que não gostaríamos de fazer e proibidos de fazer coisas que queremos fazer. Porém, em uma democracia, podemos, prospectivamente, colocar em cargos de poder autoridades de que esperamos gostar e, retrospectivamente, removê-las desses mesmos cargos quando não gostamos delas. Não é totalmente claro o grau em que eleições de fato disciplinam governos.

A essência da democracia reside no fato de que ela processa, de forma pacífica e em relativa liberdade, os mais diferentes conflitos que possam surgir em uma sociedade. Eleições são o principal mecanismo com base no qual conflitos são conduzidos. Eleições produzem vencedores e perdedores temporários de acordo com regras específicas. Eleições processam pacificamente conflitos caso perdedores não considerem a sua derrota excessivamente danosa e caso acreditem que contarão com chances razoáveis de vitória no futuro, o que significa, por sua vez, que vencedores não devem infligir demasiado dano sobre os perdedores e que não devem impedir a possibilidade de serem eles próprios removidos do governo por meio de eleições. Quanto maior forem os riscos em uma determinada eleição, maior deve ser a probabilidade de que os derrotados de hoje se transformem nos ganhadores de amanhã, o que significa, portanto, que em sociedades divididas eleições não produzem transformações sociais duradouras.

A ameaça populista à democracia surge quando os apoiadores das forças incumbentes adotam, com conhecimento de causa, medidas desenhadas com o propósito de erodir restrições institucionais contra seu próprio poder ou entranham-se permanente no cargo até tornar-se praticamente impossível removê-las por meios pacíficos. Os perigos da polarização aumentam quando os riscos de uma eleição se tornam excessivamente elevadas, levando perdedores a não reconhecerem sua derrota.

 

Referências

Przeworski, Adam. Capítulo 1 de Democracy and the Market. Nova York: Cambridge University Press, 1991 [Edição brasileira: Democracia e mercado no Leste Europeu e na América Latina. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994].

Przeworski, Adam; Stokes, Susan C.; Masin, Bernard (orgs.). Democracy, Accountability and Representation. Nova York: Cambridge University Press, 1999.

Przeworski, Adam. “Democracy as an Equilibrium”. Public Choice 123, pp. 253-73, 2005.

Przeworski. Adam. Democracv and the Limits of Self Government. Nova York: Cambridge University Press, 2010.

Przeworski, Adam; Rivero, Gonzalo; Xi, Tianyang. “Elections as a method of processing conflicts”. European Journal of Political Economy 39, pp. 235-43, 2015.

Luo, Zhaotian; Przeworski, Adam. “Democracy and Its Vulnerabilities”. Quaterly Journal of Political Science, no prelo.

[1] Publicado originalmente em: https://twitter.com/AdamPrzeworski/status/1483931153455370242?cxt=HHwWhMC-jbPh_ZcpAAAA.