UM NATIVISMO NEGRO? Raça, Literatura e o “Novo Indianismo” de Lima Barreto

Matheus Gato
Resenha

RESENHA do livro de Schwarcz, Lilia Moritz. Lima Barreto: Triste Visionário. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. 648 p.

 Por Matheus Gato

             Lima Barreto: triste visionário é um livro único no conjunto da obra de Lilia Moritz Schwarcz. A opção pela biografia enquanto forma dá continuidade aos esforços da antropóloga em reabilitar e renovar este gênero como ferramenta para análise da cultura nas ciências sociais brasileiras. Estratégia que se fez presente em obras importantes como As Barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos (1998) e, mais recentemente, em Brasil: uma biografia (2015), escrito em colaboração com Heloísa Murgel Starling.

Desta vez o gênero é explorado para lançar luzes sobre a chamada questão racial. Tema que fez da autora uma das principais referências da antropologia brasileira e, especialmente, nos estudos de relações raciais, desde os seus primeiros livros, notadamente Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do século XIX (1987) e O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil 1870-1930 (1993). Neste sentido, por razões de forma e conteúdo, Lima Barreto reúne como nenhum outro todas as questões abordadas pela autora nos últimos trinta anos. É a obra síntese de toda uma carreira.

O escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) é considerado um dos maiores literatos brasileiros do século vinte. Desde que o jornalista e crítico literário Francisco de Assis de Barbosa organizou a edição completa de suas obras nos anos 1950 e 1960, além de escrever, com sensibilidade e empatia, o livro A Vida de Lima Barreto (1952), o escritor tem sido objeto de interesse crescente da crítica, haja vista a proliferação de artigos, dissertações e teses universitárias. Entretanto, poucos dedicaram atenção à relevância da questão racial na vida e na obra do autor. Lima Barreto era assim um escritor dos subúrbios, do povo, das classes oprimidas, mas não um intelectual negro[1].

Apenas no começo dos anos 1980, em meio a luta pelo fim da ditadura militar brasileira, o crítico, historiador e ativista do movimento negro, Joel Rufino dos Santos, publicou na revista Estudos Afro-Asiáticos um artigo seminal de título “Revisita ao escritor negro Lima Barreto”. O texto argumentava que toda a vida e obra de Lima Barreto era um campo fértil para interpretação das relações raciais brasileiras. E atacava:

 

Que seus críticos não tivessem compreendido isso até hoje – e o dessem como mero ressentido, por não ser doutor e não ser branco – é apenas prova de que uma época, uma classe, um grupo social só veem o que lhes é possível ver. Se pudessem se colocar numa perspectiva atual, popular e negra – mas não podiam – veriam que o escritor tocou no cerne do que convencionamos chamar a “questão nacional”[2].

 

O belo artigo de Joel Rufino dos Santos infelizmente não constou na bem pesquisada bibliografia do livro de Lilia Schwarcz[3]. De qualquer maneira, Lima Barreto: triste visionário encerra um dos diálogos mais densos, criativos, e polêmicos, entre as ciências sociais e a “perspectiva atual, popular e negra” construída por ativistas e intelectuais negros – geralmente de fora da universidade, em espaços alternativos e vibrantes como os saraus literários nas periferias da grandes cidade do país – e que os permitiu realizar uma leitura anticonvencional de nossa literatura e uma interpretação completamente original e heterodoxa do chamado pensamento social brasileiro[4]. Uma das qualidades da nova biografia de Lima Barreto é reconhecer – desde a capa, produzida pelo artista Dalton Paula – a fecundidade desse diálogo sempre pontilhado de tensões e suas novas possibilidades interpretativas. Nas palavras da autora:

 

Foi dado à minha geração presenciar a eclosão da linguagem dos direitos civis no Brasil – o direito da diferença na igualdade, e vice-versa –, e é possível reler Lima Barreto com base nas suas denúncias e nas angústias que ele sentiu diante de uma série de marcas que a sociedade cria e transforma em diferença e preconceito. Aí está, pulsante a questão racial, para lembrarmos um tema sensível e definidos da pessoa e de toda a obra do autor. (2017, p. 16).

 

Para realizar essa empreitada a autora retrata a vida do escritor e sua família na cidade do Rio de Janeiro, em meio aos últimos anos da escravidão e da sociedade imperial e analisa as consequências da Abolição (1888) e da Proclamação da República (1889) frente as aspirações e estratégias de ascensão social acionada pelos Barreto num contexto de reconfiguração das hierarquias sociais e raciais. Somos então introduzidos à experiência de declínio social de uma família de negros livres numa conjuntura em que a ação do movimento abolicionista, a atuação reformista, anticlerical, modernizadora dos intelectuais da geração 1870, e a crise econômica e política do escravismo, faziam crer que o Brasil entrava num novo tempo, com novas oportunidades para  “gente de baixo” e mais aberto a expressão do talento, sem distinção de nascimento, linhagem e cor.

A trajetória de queda social dos Barreto revela que para algumas famílias negras houve perda de capitais sociais e simbólicos devido à conjunção entre o desmanche dos critérios de distinção social e formação de grupos da sociedade imperial – sob a qual elas tinham adquirido seus direitos civis, ainda que precários, e eram capazes de agenciar a seu favor as redes de proteção/subordinação que perfaziam o paternalismo senhorial – e a instalação de um projeto de República autoritário e eurocêntrico, que investiu em políticas públicas higienistas e sanitaristas, e na ressignificação racial das classificações de cor.

O uso inventivo da biografia como gênero de análise permitiu que a antropóloga reconstituísse em cores vivas esse contexto histórico no qual as coerções sociais aparecem encarnadas de modo singular na experiência dos indivíduos. Assim é que acompanhamos a trajetória da mãe de Lima Barreto, a professora Amália Augusta, filha de pessoas escravizadas pela família Pereira Barreto que foi bem sucedida ao acionar o suporte dos antigos senhores de seus ascendentes. Ela recebeu instrução acima da média das mulheres de sua cor e geração e com esforço diplomou-se professora. Entretanto, morreu muito jovem, vitimada por uma tuberculose, agravada pela sobrecarga das “funções de mulher” que incluíram partos difíceis e o cuidado de quatro filhos pequenos.

No caso do pai do biografado, o tipógrafo João Henriques de Lima Barreto, os limites à ascensão social se fizeram visíveis no contexto da recém-proclamada República, quando o jovem viúvo perdeu seu emprego devido a suas relações de apadrinhamento com o Visconde de Ouro Preto, exilado após o golpe que pôs fim ao reinado de D. Pedro II. Apesar do investimento da família na educação como alternativa de ascensão e do uso eficaz de suas redes de proteção social, as aspirações da família de Lima Barreto tornaram-se cada vez mais fora do lugar no novo quadro político e institucional do Brasil.

É esse o sentimento que molda a subjetividade do escritor em seu esforço constante de racionalizar e expressar, como consta das anotações organizadas postumamente na obra Diário Íntimo, mas também em seus romances, contos e crônicas, o hiato entre suas expectativas de reconhecimento social – que transitaram do desejo de ser doutor em engenharia à sua vontade de consagração literária nacional – e as marcas negras de sua origem social. “Pode-se dizer que Lima sentia-se “estrangeiro” onde quer que estivesse” anota, a certa altura, Lilia Schwarcz (p. 261).

A originalidade da interpretação desenvolvida em Lima Barreto: triste visionário está em apresentar com riqueza de detalhes, matizes e ângulos inesperados, os processos de formação de uma subjetividade racializada, articulados por acontecimentos, casualidades, instituições e conjunturas específicas, nas diferentes fases de uma vida. Como quem gira um caleidoscópio, a autora desvela diante dos nossos olhos diferentes figurações da experiência vivida da raça – na infância, nos subúrbios, na faculdade da Politécnica, como amanuense Secretaria de Guerra, nas dramáticas experiências do hospício, e nos escritos sobre a morte. Em todas se sobressaem os anseios de diferenciação do destino social comum aos negros no pós-abolição e a permanente sensação de isolamento do mundo e em si mesmo.

Observar como as marcas dessa experiência social assim subjetivamente figurada no tom e dicção personalíssimos de Lima de Barreto se internalizaram na forma artística de sua obra é outra grande realização do livro. Neste sentido, um capítulo importante é aquele dedicado à vida do escritor como morador do subúrbio de Todos os Santos e que diariamente utilizava o trem da Central do Brasil para ir à cidade trabalhar como funcionário público de posição modesta. Vai e vem, que segundo a autora, conformou uma “obra em trânsito”, produzida da posição especial que este ir e vir projeta sobre a imaginação. E também uma “literatura em trânsito”, dada ao caráter multifacetado e as ambivalências próprias com que o autor acionou, simbolicamente, a linha do trem, para pensar as relações entre a cidade e subúrbio,

 

(…) jogando com várias formas de espelhamento em relação aos subúrbios, além de mudar de posição conforme a projeção: quando se refere ao lado de lá da Central, a “cidade’, ele é como o “povo” dos subúrbios. Roupas, costumes, arte erudita – tudo isso seria avesso e distante do Brasil real, representado pela população mais simples do local. Já quando observa a partir de Todos os Santos, tudo é estranho: a falta de diversões, a falta de estrutura. Mais uma vez, a linha de trem é seu refúgio mas também limite e contradição (p. 185).

 

Outro lance da análise sobre a relação entre experiência social e forma literária ocorre no capítulo sobre a interpretação do romance póstumo Clara dos Anjos. Aqui a autora analisa a importância e os significados das cores na composição dos personagens e do mundo social do texto em Lima Barreto. A denúncia vigorosa da desigualdade e do preconceito, a revelação dos códigos culturais típicos dos subúrbios cariocas, a perspicácia em anotar a relação entre cor e trabalho, revelar a persistência da cultura da escravidão, e o misto de afeto e crítica com o qual o autor descreve os “de baixo” e suas variações de cor escura, são alguns dos elementos que levam a autora afirmar: “Por essas e por outras razões é que se pode dizer que Lima fazia uma “literatura negra” (p. 415). Sem dúvida, mas qual?

A resposta que o livro de Lilia Schwarcz oferece a essa questão se fundamenta num dos depoimentos mais interessantes que o escritor de Todos os Santos registrou em seu Diário Íntimo, ainda no começo da carreira, quando planejava escrever um grande romance sobre a escravidão, “uma espécie de Germinal Negro” anotou ele. Vale ler o trecho na íntegra pois o escritor esforça-se por definir a relação entre sua identidade racial e a especificidade da literatura que pretendia produzir:

 

Essas ideias que me perseguem de pintar e fazer a vida escrava com os processos modernos do romance, e o grande amor que me inspira a gente negra – pudera! – a gente negra, virá, eu prevejo, trazer-me amargos dissabores, descomposturas, que não sei se poderei me por acima delas. Enfim- “une grande vie est une pensée de la jeunesse realisée dans l´âge mûr”, mas até lá, meu Deus!, que de amarguras!, que de decepções!

Ah! Se eu alcanço realizar essa ideia, que gloria também! Enorme, extraordinária e – quem sabe? – uma fama europeia.

Dirão que é o negrismo, que é um novo indianismo, e a proximidade aparente das coisas turbará todos os espíritos em meio desfavor; e eu, pobre sem fortes auxílios, com fracas amizades, como poderei viver perseguido, amargurado, debicado?

Mas … e a gloria e o imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça que pertenço. Tentarei e seguirei avante [grifos meus][5].

 

A análise da antropóloga busca, em momentos diversos do livro, uma resposta para a especificidade da “literatura negra” de Lima Barreto explorando o termo “negrismo” e as coincidências semânticas entre essa categoria e as correntes literárias internacionais que usaram a mesma palavra. Num primeiro momento, voltando os olhos para Cuba, Lilia Schwarcz informa que por lá usaram o termo para pensar a cultura popular e a voz própria de diferentes povos. O leitor fica a imaginar essas relações, mas a autora informa não saber se o autor tomou ou não conhecimento dessa literatura ao longo da vida. Entretanto, nos avisa: “mas o negrismo de Lima não perseveraria muito; pelo menos esse” (p. 153).

Mais à frente, a análise muda um pouco e o negrismo aparece colado à primeira versão do romance Clara dos Anjos como idealizado nos diários do escritor, calcado na denúncia das opressões sociais e de raça (p. 155). Pouco mais de cinquenta páginas depois, temos nova reviravolta e o “negrismo” é associado a um possível conhecimento do autor sobre a produção de intelectuais negros norte-americanos. “É certo que Lima não os cita diretamente”, diz a autora, mas o texto segue desembaraçado imaginando um Lima Barreto leitor de Paul Cuffe, Martin Delany, Edward Blyden, Marcus Garvey e W. E. B. Du Bois (p. 213-14).

Lê-se um pouco mais e a coisa é toda outra. O termo “negrismo”, de instável e fugidio nas outras passagens do texto, ganha endereço mais cerrado na análise de Recordações do Escrivão Isaías Caminha: “o romance representa, igualmente, uma visão direta e clara do que o escritor chamava de “negrismo”: qual seja uma projeção para o Brasil do movimento internacional de pan-africanos (…)” (p. 217-18). Assim, como se vê, se a autora conseguiu documentar, como poucos, a literatura de Lima Barreto enquanto negra, por outro lado teve enorme dificuldade em defini-la.

Não censuro os exercícios de imaginação da antropóloga, que noutras partes do texto fazem a leitura do livro bem saborosa, e julgo louvável a tentativa de situar o autor num quadro internacional. Além do mais, arquivos são uma caixa de surpresas e é possível que dados hoje desconhecidos nos revelem, no futuro, um Lima Barreto interessado em negrismo cubano, versado nos escritores negros norte-americanos e, quiçá, empolgado com o pan-africanismo. O que não se compreende é porque a autora, tendo escrito um excelente capítulo sobre a Limana, a biblioteca do escritor, se demore em especulações sobre o que ele aparentemente não leu, ao invés de acionar os livros que ele leu para entender-lhe os negrismos. E nas estantes de Lima Barreto, o que falta de Cuba, África e Estados Unidos, tem do naturalismo francês e do realismo russo e português, e sobra de literatura brasileira, com destaque ao romantismo[6].

Assim, outro termo chave, da importante passagem do Diário Íntimo citada acima, e que também merecia mais atenção da autora, é a ideia de “novo indianismo”[7]. O termo alude, não sem alguma ironia, ao modo como o autor imaginava o lugar de uma obra calcada no “grande amor que me inspira a gente negra” na tradição literária brasileira. Obra que revelaria um outro senso de ser nativo do Brasil, de formar seu povo e sua cultura, construído mediante aos desafios da incorporação dos descendentes africanos à cidadania e a própria identidade nacional[8]. O negrismo, enquanto um “novo indianismo”, nomearia uma relação particular com o sentido coletivo de “literatura como missão” (Sevcenko, 1983), que dominou a perspectiva e os sentimentos de alguns intelectuais na Primeira República.  Ao pretender realizar-se subjetivamente no “imenso serviço que prestarei a minha gente e a parte da raça a que pertenço”, o autor ofereceu uma tradução negra a esse sentido de “missão”. Proponho ainda que de modo provisório, e por falta de termo melhor, a noção de nativismo negro ou afro-brasileiro para nominar a forma social dessa sensibilidade histórica específica, arredia aos estrangeirismos eurocêntricos das elites, crítica da desvalorização da gente da terra e dos seus costumes bem como do nacionalismo oficial, combatente dos preconceitos de cor e discriminações raciais, que com diferentes inflexões, matizes e perspectivas regionais, foi comum entre intelectuais e artistas negros e mestiços que atuaram no pós-abolição[9]. Penso que, também neste caso, ao falar sobre si, Lima Barreto revelou sobre outros.

Por essa capacidade de nos instigar a interpretar o Brasil por novos ângulos e perspectivas, a nova biografia de Lima Barreto, que também marca os trinta anos do aparecimento de Lilia Schwarcz como intelectual pública desde o seu primeiro livro saído às vésperas do centenário da Abolição e da promulgação da constituição de 1988, é dessas que nos fazem pensar no tempo. De lá pra cá, o Brasil mudou de sensibilidades, costumes e maneiras de ser. E os olhos de Lima Barreto, aqueles que Dalton Paula deixou abertos na capa do livro, observam, tristes e afetuosos, o estado precário de nossa liberdade na atual República velha.

Matheus Gato é doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Bolsista Fapesp de pós-doutorado com a pesquisa O Massacre de Libertos: raça, emancipação e a República de 1889 em São Luís. Atualmente é Pesquisador visitante no Departamento de História da Universidade de Harvard.

 

Referências Bibliográficas

 

Barreto, Lima (1956). Diário Íntimo. Rio de Janeiro: Ed. Brasiliense.

Cuti, Luís. A Consciência do Impacto nas Obras de Cruz de Souza e Lima Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

Guimarães, Antonio Sergio (2004). “Intelectuais Negros e Formas de Integração Nacional”. Estud. av.,  São Paulo ,  v. 18, n. 50, p. 271-284,  Apr..

Medeiros, Mario Augusto (2013). A Descoberta do Insólito: literatura periférica e literatura negra no Brasil (1960-2000). Rio de Janeiro: Aeroplano.

Rufino, Joel (1980). “Revisitando o Escritor Negro Lima Barreto”. Estudos Afroasiáticos, Rio de Janeiro, n. 4 p. 63-70.

Schwarcz, Lilia (2017). Lima Barreto: triste visionário. São Paulo: Companhia das Letras.

Sevcenko, Nicolau (2003). Literatura Como Missão: tensões e criação cultural na Primeira República. São Paulo: Companhia das Letras.

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[1]Interessante discussão, neste sentido, está em Cuti, Luís. A Consciência do Impacto nas Obras de Cruz de Souza e Lima Barreto. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

[2] SANTOS, Joel Rufino dos. Revisita ao escritor negro Lima Barreto. Estudos Afroasiáticos, Rio de Janeiro, n. 4, 1980, p. 67.

[3]A ausência é sentida porque o autor tocou em alguns dos pontos caros à interpretação desenvolvida em Lima Barreto: triste visionário. Em particular, a relação entre identificação racial, ambivalência e a escrita. Nos termos do autor: “Lima Barreto foi, como aqueles, um “eu dividido”. O mundo dos brancos, letrados, com seu discurso articulado e textual, não o convidou para o festim. Não era, também, conviva do outro – o mundo dos negros incultos, que se expressavam através da macumba, do samba e do futebol. Ele superou esta divisão convertendo-se em personagem de si mesmo: foi morar no subúrbio, conviver com caixeirinhos, operários e costureiras, vida de negro proletário. Não se converteu à macumba, não caiu na macumba, nem praticou bolapé (palavra que preferia a foot-ball), manteve-se letrado e “maximalista” (palavra que até cerca de 1920 designou os partidários da revolução bolchevique). A solução não o curou de angústias, mas permitiu-lhe sempre escrever sobre si, quando escrevia sobre os outros pobres suburbanos; e sobre os outros, quando falava de si” (1980, p. 68).

[4]Para aquilatar um pouco dessa história ver: Medeiros, Mario Augusto. A Descoberta do Insólito: literatura periférica e literatura negra no Brasil (1960-2000). Rio de Janeiro: Aeroplano, 2013.

[5] Barreto, Lima. Diário Íntimo. Rio de Janeiro: Ed. Brasiliense, 1956 p. 84.

[6]A biógrafa nos revela o autor citando os títulos nacionais de sua própria biblioteca para compor o personagem principal e ultranacionalista de Triste Fim de Policarpo Quaresma: “Na ficção, havia unicamente autores nacionais ou tido como tais: o Bento Teixeira, da Prosopopeia, o Gregório de Matos, o Basílio da Gama, o Santa Rita Durão, o José de Alencar, (todo), o Macedo, o Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros […] De História do Brasil […] os cronistas, Gabriel Soares, Gândavo; e Rocha Pita, Frei Vicente do Salvador, Armitage, Aires do Casal, Pereira da Silva, Handelmann (Geschichte von Brasilien), Melo de Morais, Capistrano de Abreu, Southey, Varnhagem, além de outros mais raros e menos célebres. Então no tocando a viagem e explorações, que riqueza! Lá estavam Hans Staden, o Jean de Léry, o Sain-Hilaire, o Martius, o príncipe de Neuwied, o John Mawe, o Von Eschwege, o Agassiz, Couto de Magalhães e se encontravam também Darwin, Freycinet, Cook, Boogainville e até o famoso Pigafetta, cronista das viagens de Magalhães, é porque esses viajantes tocavam ao Brasil, resumida ou amplamente.” (Barreto apud Schwarcz, p. 316). Impressiona assim, que a erudição de Lima Barreto em literatura brasileira e sobre o Brasil não seja utilizada para interpretar o seu “negrismo”, malgrado a antropóloga a tenha mobilizado para lidar com outras facetas autor.

[7] A autora dedica no livro, apenas uma frase ao “novo indianismo” mas não desenvolve, como  para o caso do negrismo, uma linha de interpretação para obra de Lima Barreto como um todo. Afirma a autora que o autor desejou “adotar a filosofia do negrismo e escrever com jeito de indigenismo, não o romântico, mas aquele que descrevia valores locais e incluía a história dos africanos que chegaram forçadamente ao Brasil” (2017, p. 191). “Negrismo” e “novo indianismo” estão aqui apartados, um é filosofia, presumivelmente vinda de fora, e o outro, jeito de escrever. Mas talvez, possamos pensar, que esse “novo indianismo”, calcado nos valores culturais e na história dos afrodescendentes, encerra muito do que o autor nominava com negrismo e, especialmente, o seu lugar, na literatura brasileira.

[8] O problema foi apontado em: Guimarães, Antonio Sergio. “Intelectuais Negros e Formas de Integração Nacional”. Estud. av., São Paulo,  v. 18, n. 50, p. 271-284,  Apr.  2004.

[9]Penso em escritores como Manuel Querino (1851-1923), José do Nascimento Moraes (1882-1958), Astolfo Marques (1876-1918), José Hemetério dos Santos (1858-1939), além de uma gama de artistas como Patapio Silva (1880-1907), Crioulo Dudu (1874-1919), Benjamim de Oliveira (1870 – 1954), Arthur Timóteo (1882 – 1922)  cujos escritos e a arte expressaram o sentimento de ser nativo do Brasil vinculando-o às suas origens negras e mestiças, e alguns deles, como Lima Barreto, ao sentido artístico e político de “missão”, tão bem descrito por Nicolau Sevcenko (1983).