O furacão María, de Porto Rico, em contexto

Stuart B. Schwartz
Ensaio

Furacões não são estranhos em Porto Rico. Nessa ilha, onde se dava às tempestades os nomes do santo do dia em que ela ocorria, a maioria dos porto-riquenhos é capaz de enumerar de cor as principais tempestades: San Ciriaco (1899), San Felipe (1928), San Ciprián (1932), Santa Clara (1956), Hugo (1989). Agora, infelizmente, María será acrescentada à lista. Ao longo dos séculos, os ilhéus desenvolveram respostas e técnicas criativas de cooperação comunitária que lhes permitiram lidar com elas e sobreviver, mas a atual crise política e financeira da ilha, bem como seu problemático status político, fazem com que seja muito mais difícil lidar com essa catástrofe e fazer planos para uma recuperação.

Onde quer que eles ocorram, os furacões têm consequências desalentadoramente semelhantes. O terror do vento e da água, as lágrimas derramadas por entes queridos, a frustração e o sofrimento pelas colheitas perdidas e as casas destruídas, a ameaça de doenças e fome são comuns onde quer que seja, mas os desastres naturais nunca são naturais. São sempre o resultado do que pessoas e governos fazem antes e depois do evento. Os furacões em Porto Rico, devido a seu longo e problemático relacionamento com os Estados Unidos, estão incorporados em um contexto político e econômico específico que determina seus efeitos a longo prazo. Isso vale tanto para o Furacão María quanto valeu para as tempestades anteriores.

 

Na verdade, um tremendo furacão foi a parteira do nascimento de Porto Rico como território dos Estados Unidos. San Ciriaco (1899), uma tempestade de categoria 4, atingiu a ilha quando ainda estava sob ocupação militar apenas um ano depois da Guerra Hispano-Americana.  Enquanto San Juan era relativamente poupada, Ponce, a segunda maior cidade porto-riquenha, e as terras altas da ilha, produtoras de café, sofreram um grande golpe. A economia ficou desordenada. A colheita de café se perdeu, assim como metade da colheita, menor, de açúcar e a maior parte das colheitas de alimentos. Cerca de 3 mil pessoas morreram diretamente da tempestade, mas as taxas de mortalidade continuaram anormalmente altas ao longo de um ano depois da tormenta. Mais de 250 mil pessoas, um quarto da população da ilha, ficaram sem casa e destituídas de tudo. “A fome estabeleceu seu império”, escreveu um observador.

O governador militar da ilha concedeu uma remissão de impostos, e embora o Congresso não tivesse aprovado fundos para ajuda, um imenso programa de caridade foi montado nos EUA, com base numa autêntica simpatia, mas também no desejo do governo norte-americano de demonstrar sua eficiência e sua benevolência para com os porto-riquenhos. A caridade, no entanto, tinha seus limites. Havia um temor profundo entre governadores militares e produtores de café e açúcar de que a assistência pública aos indigentes e sem-teto transformaria a classe de trabalhadores em mendigos, porque os ilhéus seriam “um povo cuja tendência vai toda naquela direção”. Assim, a ajuda distribuída na ilha pela Junta de Caridade foi dada não às vítimas, mas aos produtores, e para poder receber algum, os trabalhadores tiveram de assinar contratos que reduziam seus salários tradicionais e os tornavam ainda mais dependentes.

Alguns simplesmente abandonaram a ilha e foram para o Haiti trabalhar no corte de cana-de-açúcar, alguns para construir uma ferrovia no Equador, e outros, estivadores, cortadores de cana, carpinteiros, pedreiros e gráficos começaram – após o choque inicial – a se organizar e fazer greve. A resposta ao furacão reforçou o controle dos produtores, favoreceu o crescente setor do açúcar, que agora recebia infusões de capital dos EUA, e criou a imagem de uma ilha e um povo incapaz de se cuidar sozinho.

Quando, em janeiro de 1900, o Congresso começou a decidir qual seria o futuro status de Porto Rico, o furacão de San Ciriaco integrou o debate. Algumas testemunhas eram a favor de conceder à ilha livre comércio, isenção de impostos e outros benefícios, para estimular sua recuperação, mas protecionistas advertiram que os agricultores americanos também tinham de enfrentar desastres naturais, ou que o humanitarismo para com Porto Rico poderia resultar em custos para os contribuintes americanos em outros lugares, e que permitir importações de Porto Rico sem cobrar impostos seria uma violação dos princípios do governo. No fim, as condições precárias da ilha contribuíram para a decisão de não conceder independência a Porto Rico, mas anexá-lo como “território não incorporado” dos Estados Unidos, sujeito a tarifas e regulamentos financeiros dos EUA, com menos autonomia do que a que tinha usufruído nos últimos anos sob domínio da Espanha, e sem conceder cidadania a seus habitantes.

 

Cerca de trinta anos depois, uma grande tempestade atingiu o país novamente. Em setembro de 1928, um furacão que se abateu sobre as Bahamas, fustigou West Palm Beach e matou mais dois mil trabalhadores das Índias Ocidentais nas cercanias do lago Okeechobee, passara primeiro sobre Porto Rico, onde deixou um terço da população (500 mil pessoas) sem teto e faminta, e a ilha, como relatou o governador, parecendo as áreas marcadas por batalhas na França ou na Bélgica. Toda a colheita de café, cerca de 60% da economia da ilha, se perdeu, e essa indústria nunca se recuperou.  A essa altura, os porto-riquenhos já eram cidadãos (Lei Jones de 1917). O governador civil nomeado pelos EUA, Towner, pediu um empréstimo livre de juros para a ilha, sendo apoiado pelo senador republicano hispanófono Hiram Bingham, de Connecticut (ex-professor de Yale, descobridor de Macchu Pichu), que tinha levado um comitê do Congresso à ilha, mas senadores e congressistas do meio-oeste, relutantes em apoiar projetos de ajuda federal, opuseram-se a fazer concessões a “pessoas indignas” que poderiam receber algo em troca de nada. Finalmente, foram concedidos à ilha US$ dois milhões de ajuda, mas na forme de empréstimo com juros.

 

Grande parte do esforço de ajuda em 1928 ficou nas mãos da Cruz Vermelha Americana, que depois de 1900 tinha se tornado efetivamente um braço do governo, apesar de ser financiada por contribuições privadas e ter um quadro de funcionários constituído de cidadãos privados. Esse arranjo permitiu que o Congresso mantivesse a ficção de que a ajuda após a catástrofe ainda era uma preocupação local, religiosa ou privada, e não necessariamente uma responsabilidade do governo, mas agora essa ideia era seriamente questionada. O furacão de Miami (1926), as inundações do Mississippi (1927) e o furacão de Okeechobee e Porto Rico (1928) tinham mudado as atitudes em relação à responsabilidade do governo, e a crise de 1929 e a Depressão que se seguiu deixaram claro que caridade privada e governos locais não eram capazes de enfrentar os desafios de inundações, furacões, e o Dust Bowl, a famosa tempestade de areia de 1930. As expectativas de ajuda federal estavam aumentando, e permaneciam quando Porto Rico sofreu um golpe novamente em 1931, e depois uma grande tempestade de categoria 4 em 1932 (San Ciprián). Na década de 1926–36, o mais ativo período de furacões registrado, crescentes demandas ao governo federal para responder aos “atos de Deus”, pelos quais as vítimas não tinham responsabilidade moral, certamente contribuíram para o surgimento dos estados de bem-estar social em geral, e para o New Deal de Roosevelt em particular.

 

No entanto, a oposição ao papel estendido do governo na resposta a desastres naturais continuou a se fazer presente na ideologia de um governo limitado, mas ela seria às vezes superada por outros interesses dos EUA. Quando o furacão Santa Clara (1956) fustigou a ilha em plena Guerra Fria, o status de Porto Rico tinha mudado. Tinha-se tornado “Estado Livre Associado”, mais integrado aos Estados Unidos, e seu governador populista, Luis Muñoz Marín, com a ajuda de agências federais, tinha reprimido nacionalistas e opositores políticos. O presidente Eisenhower, temeroso da disseminação do comunismo na América Latina, esperava usar Porto Rico como uma vitrine, e conquanto enfatizasse a importância de uma resposta local e de um governo limitado, ele, apesar disso, declarou estado de emergência nacional e apropriou milhões para ajuda. Neste caso, os objetivos políticos dos EUA triunfaram sobre a convicção de que a responsabilidade federal devia ser limitada.

 

Mas essa ideologia encontrou cada vez mais defensores no final do século XX. Isso ficou claro na resposta ao furacão Hugo (1989) que deixou danos no valor de 1 bilhão de dólares em Porto Rico e depois $7 bilhões de dólares na Carolina do Sul. Depois desta tempestade e do furacão Andrew (1992), que devastou a Flórida, houve muitas queixas quanto à ineficácia das respostas da FEMA, da Cruz Vermelha e do governo federal, mas a crítica mais extremada veio de um think tank conservador e libertário (Instituto Ludwig von Mises), o qual alegou que o governo não deveria em absoluto envolver-se nos esforços para ajuda, que a FEMA deveria ser abolida, que os contribuintes não tinham responsabilidade para com vítimas de tempestades, que leis que impunham evacuações ou contra a elevação oportunista de preços de produtos essenciais eram violações das liberdades individuais, que um livre mercado evitaria a escassez de produtos e outros problemas, e que os ambientalistas que queriam limitar a construção nas praias ou impor códigos de construção mais rigorosos eram, na verdade, “inimigos profissionais da humanidade”. Embora fosse uma expressão extremada da filosofia econômica neoliberal, elementos deste raciocínio ainda estão muito presentes como parte de uma atitude a favor de responsabilidade limitada e austeridade fiscal em resposta a desastres naturais, como vimos em alguma das respostas do Congresso ao furacão Sandy.

 

Esta interseção de catástrofe natural na relação entre Porto Rico e Estados Unidos constitui o profundo contexto histórico da incrível e horripilante devastação causada pelo María.  Os efeitos dessa tempestade repetem o passado, porém a ilha, agora com uma população de 3,4 milhões de habitantes e diante do colapso de sua rede elétrica, sistemas de comunicação e transporte,  hospitais e suprimento de combustíveis, enfrenta uma crise humanitária de enormes proporções criada não apenas pelos furacões Irma e María, mas pela incapacitante  situação econômica e financeira da ilha, que viu enfraquecer sua infraestrutura durante anos, por destinar fundos para o serviço de sua dívida às expensas do sofrimento da ilha e de seus cidadãos. Sua renda per capita é mais baixa que a de qualquer dos 50 estados, seu nível de desigualdade é mais elevado. Nos dois anos anteriores à chegada do María já tinha ocorrido considerável perda de população, e a emigração de médicos e engenheiros já estava afetando a base de cálculo de impostos e a qualidade de vida. Os planos de emergência para responder a desastres naturais eram dolorosamente deficientes e subfinanciados. Impedido pelo Congresso de reestruturar sua dívida declarando falência, e conduzido por uma elite política obcecada por criar condições que possibilitassem sua soberania – favorecendo, por isso, medidas de austeridade, redução do setor público e privatização (o principal aeroporto é propriedade de uma companhia mexicana) –, o governo da ilha viu sua capacidade de responder à crise imediata ou aos subjacentes problemas estruturais seriamente comprometida.

 

A resposta inicial do governo dos EUA evocou memórias do Katrina: lenta, mal implementada, porém autocongratulatória.  Uma semana após a tempestade, nenhuma situação de emergência tinha sido declarada, a distribuição de ajuda fora de San Juan tinha sido pequena ou nenhuma, os militares não tinham sido rapidamente mobilizados para fornecer logística, e – talvez devido ao fato de que seus cidadãos não podiam votar em eleições federais e seus representantes no Congresso não tinham direito a voto –, o Congresso não demonstrou ter pressa em prover a ajuda necessária a Porto Rico, como demonstrara no caso do Texas e da Flórida após os furacões Harvey e Irma.  O manto da ineficiência burocrática e de falta de urgência, com indícios de atitudes neocoloniais em relação a pessoas que eram incapazes de cuidar de si mesmas, ou que queriam “algo em troca de nada”, tinha-se tornado agora parte da resposta à situação. O que virá em seguida, considerando a situação financeira da ilha, as medidas de austeridade e um já existente impulso de privatização vai revelar, assim como aconteceu anteriormente na história da ilha com seus furacões, qual é o real status de Porto Rico e qual será a atitude do governo dos EUA em relação a esses cidadãos americanos.

 

Stuart B. Schwartz é professor titular de História na Universidade de Yale e autor de Sea of Storms: A History of Hurricanes in the Greater Caribbean from Columbus to Katrina [Mar de tormentas. Uma história dos furacões no Grande Caribe, de Colombo ao Katrina]

 

Tradução de Paulo Geiger

Fotografia do destaque – By NASA, MODIS / LANCE – https://lance.modaps.eosdis.nasa.gov/cgi-bin/imagery/single.cgi?image=Nate.A2017280.1848.375m.jpg, Public Domain, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=63266790