O contrapúblico bolsonarista e o negacionismo da pandemia

especial pandemia

Por Camila Rocha, Márcio Moretto Ribeiro e Jonas Medeiros

10 jul. 2020

 

A postura negacionista do governo Bolsonaro quanto à pandemia do novo coronavírus colocou o Brasil em segundo lugar em infecções e mortes entre todos os países do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos de Trump. Mesmo com o desgaste da imagem do país no cenário internacional, levantamentos de opinião pública demonstram relativa estabilidade no apoio ao governo (pesquisas Datafolha indicam, por exemplo, 33% de ótimo/bom no final de maio e 32% no final de junho). Como decifrar esse enigma da resiliência do apoio ao governo?

O debate público acerca da pandemia foi, desde o início, marcado pela formação de um consenso em arenas discursivas centrais quanto à gravidade do vírus e à necessidade de medidas urgentes, como distanciamento social e isolamento. Esse entendimento foi produzido na esfera pública dominante: a mídia de massa, especialistas e cientistas nacionais e internacionais, organismos multilaterais e a parcela não bolsonarista do sistema político (governadores, prefeitos, Congresso e Judiciário). No entanto, o pronunciamento do presidente Jair Bolsonaro em 24 de março de 2020 demonstrou que o governo buscaria divergir ativamente desse consenso. Bolsonaro defendeu que o vírus só causaria uma “gripezinha”, criticou a “histeria” da grande mídia e o “confinamento em massa” proposto por alguns governadores e, por fim, defendeu uma “volta à normalidade” (antes mesmo que medidas mais drásticas fossem tomadas).

Por um lado, a partir de levantamentos quantitativos realizados pelo Monitor Digital em abril, Márcio Moretto Ribeiro mostra que não foi verificada uma perda massiva de apoio a Bolsonaro nas redes sociais nos dias que se seguiram ao pronunciamento.[1] Pelo contrário, ocorreu um efeito de fortalecimento do engajamento de usuários das mídias digitais e um aumento no número de seguidores das contas do presidente.

Por outro lado, a postura de Bolsonaro também provocou um desgaste entre determinados segmentos do seu eleitorado. Uma pesquisa qualitativa[2] realizada por Camila Rocha e Esther Solano, entre 9 e 18 de maio de 2020, com apoio da Friedrich-Ebert-Stiftung Brasil, mostra que a maioria dos 27 entrevistados, eleitores de Bolsonaro da Região Metropolitana de São Paulo, epicentro da pandemia no país, não concorda que o vírus cause apenas uma “gripezinha“, ainda que o enquadramento dicotômico entre saúde e economia proposto pelo governo tenha contado com a adesão de praticamente todos os ouvidos pela pesquisa. Oriundos das classes populares, os entrevistados, ainda que quisessem realizar o isolamento social, se sentiam impelidos a continuar trabalhando para garantir seu sustento, dada a insuficiência do auxílio emergencial, o que fazia com que vários, em especial os homens, defendessem a adoção do chamado “isolamento vertical”.

Também é possível considerar que o discurso de Bolsonaro possa ter tido como efeito estabelecer uma dúvida com relação à gravidade da pandemia e, diante da incerteza (o que, por si só, indica alguma reflexividade por parte dos receptores do seu discurso), as pessoas seriam levadas a voltar ao trabalho e a não aderir ao isolamento.

Ambas as pesquisas apontam para a hipótese de que o grau de adesão ao distanciamento social seria diferencial especialmente com relação à ideologia e ao gênero, o que parece se confirmar nos dados coletados pelo Datafolha.[3] O componente ideológico se revelaria muito forte, pois quanto maior o apoio a Bolsonaro, menor a adesão ao distanciamento social. Gênero também seria uma categoria analítica altamente explicativa: homens estariam cada vez mais desrespeitando o distanciamento, em oposição às mulheres. Nesse sentido, segundo Rocha e Solano, vários homens reconhecem que “sair na rua é perigoso”, embora acreditem que tanto trabalhadores como governantes precisem enfrentar o perigo e mostrar que são “machos”.

Além de investigar a recepção dos discursos de Bolsonaro, vale a pena analisar o lado da emissão. O estilo retórico de Bolsonaro[4] pode ser caracterizado como duplamente ofensivo: tanto no sentido de “partir para o ataque” como no de “ultraje” ou, como costuma dizer a mídia tradicional, de “quebra do decoro”. Além de as polêmicas alimentarem o engajamento nas redes sociais, a “falta de decoro” na emissão de discursos é recebida pelos eleitores de Bolsonaro como indicativo de que ele é “sincero”, “autêntico” e “verdadeiro”. Mesmo que não se concorde inteiramente com suas afirmações, elas são valorizadas como aquilo de que “o Brasil estava precisando”, em oposição aos políticos tradicionais, que falariam de modo “bonitinho” e “certinho”, porém seriam manipulados pelo marketing, bem como corruptos.

Interpretamos que haveria, no entender dos eleitores de Bolsonaro, uma sobreposição de crises: a desconfiança em relação ao sistema político; a desconfiança generalizada com fontes de desinformação em massa (tanto a grande mídia como as mídias alternativas); e uma crise dos valores da família tradicional. A retórica populista do bolsonarismo funde e confunde a corrupção do sistema político pela elite política com a corrupção da família pelo que é percebido como uma elite progressista. Dessa forma são articuladas demandas de uma base social que é múltipla. Tal diversidade encontraria alguma correspondência com a multiplicidade de grupos tradicionalistas, conservadores, evangélicos, militaristas, entre outros, que, há muitos anos, passaram a organizar sua experiência social coletiva em contrapúblicos não subalternos, ou seja: arenas discursivas periféricas nas quais eles puderam compartilhar, alimentar e aprofundar uma percepção de que seus modos de pensar, sentir e agir teriam começado a ser estigmatizados diante do horizonte cultural que passou a informar a arena discursiva central constituída a partir da redemocratização e da Constituição de 1988.

Tal dinâmica certamente contribuiu para fortalecer o caráter antissistema não apenas da emissão, mas também da recepção do discurso bolsonarista. Assim, embora os eleitores de Bolsonaro oriundos das classes populares em 2018 estejam, hoje, divididos entre apoiadores fiéis, apoiadores críticos e arrependidos, as perspectivas diante de um possível impeachment de Bolsonaro e das eleições de 2020 e 2022 não são muito animadoras para a oposição. Afinal, mesmo aqueles que estão arrependidos, por terem sua frustração profunda com o sistema político agravada pelo desespero com as crises que atravessam o país, admitem que poderiam votar novamente em Bolsonaro contra um candidato do PT. Desse modo, nada indica que uma crise do bolsonarismo – em caso do provável agravamento da pandemia, do possível avanço das investigações sobre corrupção ou sobre os atos antidemocráticos – vá desembocar automaticamente em uma resolução da crise política que se aprofunda desde 2013. Assim, resta saber como os campos da direita não bolsonarista e da esquerda vão se movimentar, quais programas e lideranças serão apresentados.

 

[1] Nota técnica disponível em: https://www.monitordigital.org/wp-content/uploads/2020/04/NT8-pronunciamento-COVID19.pdf.

[2] Relatório completo da pesquisa disponível em: https://www.fes-brasil.org/detalhe/bolsonarismo-em-crise/.

[3] Uma análise dos dados do Datafolha está em nota técnica do Monitor Digital, disponível em: https://www.monitordigital.org/wp-content/uploads/2020/05/covid.pdf.

[4] Sobre o seu estilo retórico conferir artigo disponível em: https://www.horizontesaosul.com/single-post/2020/04/27/VAO-TODOS-TOMAR-NO-A-POLITICA-DO-CHOQUE-E-A-ESFERA-PUBLICA.

 

Sobre os autores

Camila Rocha é cientista política e pesquisadora do Cebrap.

Márcio Moretto Ribeiro é professor da USP e coordenador do Monitor do Debate Político no Meio Digital.

Jonas Medeiros é sociólogo, doutor em educação pela Unicamp e pesquisador do Cebrap.

 

O presidente Jair Bolsonaro acompanhou, da área externa do Palácio do Planalto, em Brasília, a manifestação de apoiadores de seu governo,  realizada no domingo (15/3) na capital federal e em outras cidades do país. Foto: José Cruz/Agência Brasil.