Edson Cardoso, “Nada os trará de volta”: sobre a necessidade do pensamento testemunhal

Resenha

 

por Márcio Seligmann-Silva
30 jun. 2022

 

Fruto de décadas de vida intensa e reunindo 151 textos, o livro de Edson Lopes Cardoso Nada os trará de volta: escritos sobre racismo e luta política (Companhia das Letras, 2022) é um desafio para qualquer resenhista. Precisaríamos de 151 resenhas para dar conta da riqueza dessa obra, e mais outras tantas para tentar expressar o que significa produzir uma escrita da vida, a partir do seu âmago como esse livro nos apresenta. Edson Cardoso se perfila, com essa coletânea única, como um dos agentes políticos e teóricos da ação social mais interessantes do Brasil hoje e mais necessários também, nestes tempos de neofascismo com o seu racismo escancarado. Poucos pensadores brasileiros conseguem reunir a vasta experiência da luta política articulada a uma erudita e imensa leitura que abrange áreas diversas, como a literatura, a filosofia, a sociologia, a teoria literária, a história, sem contar o tema específico no qual Cardoso é praticamente imbatível, a história das lutas e dos pensamentos negros. Quando, hoje, a necropolítica como mote da Modernidade se escancara sob o regime neoliberal que o filósofo Achille Mbembe prefere, com razão, denominar de brutalista; quando os políticos confessam e praticam cotidianamente o racismo: neste momento, pensadores como Edson Cardoso se fazem essenciais. Ele acompanha há décadas a política no mundo e neste país, e sua capacidade excepcional de leitura e interpretação (do mundo e de livros) o catapulta para a posição de figura política e intelectual incontornável.

Saudemos então a publicação desta obra e, sobretudo, leiamos o livro. Dividido em cinco partes, acompanhamos primeiro a história do Movimento Negro, para em seguida adentrar alguns detalhes sobre a história do genocídio negro neste país. A terceira parte é reservada à história dessas lutas, conquistas e frustações políticas em torno da demanda pelos direitos civis (e de existência!) dos negros. Na quarta parte, Cardoso dedica-se a uma detalhada e rigorosa leitura (para não dizer, desconstrução) da imprensa nacional no seu trato da questão negra. Por fim, os últimos artigos se voltam para certas imagens, tropos e figuras reincidentes do racismo pátrio. Grande parte dos artigos foram publicados nas páginas da Ìrohìn (título ioruba que significa “notícia”), jornal que editou entre 1996 e 2010 (e depois se tornou on-line), daí a importância desta coletânea que permite não só termos acesso a esse material de primeira ordem, mas também o apresenta de modo bem estruturado e inteligente.

Edson, além de formado em língua e literatura portuguesa e de ter sido professor nessa área na Universidade de Brasília, é jornalista e mestre em Comunicação pela mesma Universidade, e hoje, recordo, coordena também o Ìrohìn: Centro de Documentação e Memória Afro-Brasileira, uma ong nascida da mobilização política após a Marcha Pela Imortalidade de Zumbi dos Palmares – Pela Cidadania e Pela Vida, de 1995, organizada por ele também. Vale lembrar ainda que Edson realizou em 2014 seu doutorado, junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação da usp sobre a temática: Memória do Movimento Negro: um testemunho sobre a formação do homem e do ativista contra o racismo. Na tese, como no livro, acompanhamos o empenho do autor na luta pela educação no país, seu engajamento pela implantação de política de ações afirmativas, com destaque para as cotas raciais. A tese traz a marca do testemunho, ou seja, da virada testemunhal do saber, que leva em conta que todo conhecimento é localizado, tem um corpo e um tempo.

Tendo entrado na política em Salvador, no final dos anos 1960 e nos anos 1970, em plena ditadura, a formação de Edson sempre foi voltada para o pensamento crítico de esquerda, sendo que já se vinculava aos estudos afro-brasileiros desde ao menos 1974, em Salvador. No início dos anos 1980, em Brasília, ele se aproxima do Movimento Negro. Entre 1984 e 1987 Edson assessorou os parlamentares do pt Florestan Fernandes, Paulo Paim e Ben-Hur Ferreira. Posteriormente, entre 1998 e a sua aprovação em 2010, Edson acompanhou de perto e ativamente o debate em torno do Estatuto da Igualdade Racial. Em Nada os trará de volta, lemos o passo a passo de sua luta, mas também a frustração com as táticas dos partidos conservadores que, ao final, conseguiram esvaziar o Estatuto de sua nervura política de transformação potencial da sociedade.

Por último, não podemos esquecer também que estamos diante de um poeta, autor, entre outras, das obras Areal das Sevícias, de 1977, e Ubá, de 1999. A qualidade da prosa do autor, assim como sua perspicácia na leitura traem esse seu lado poeta.

O aspecto testemunhal da escrita de Edson é fundamental para a história do pensamento negro, de W.E.B. Du Bois a Edson Cardoso, passando por Aimé Césaire, Frantz Fanon, Édouard Glissant, Paul Gilroy, Abdias Nascimento, Neusa Santos Souza, Lélia Gonzalez, bell hooks, Sueli Carneiro, Grada Kilomba, Djamila Ribeiro entre outros pensadores essenciais. Todos eles escreveram na primeira pessoa para desconstruir a falsa objetividade do discurso dito “sério” ou “acadêmico” ocidental.[1]

Tratando da sua virada testemunhal do pensamento, ou seja, do fato que a verdade só existe se pensada a partir de sujeitos históricos localizados, e não como dado abstrato pretensamente universal, Adias Nascimento escreveu em seu livro O genocídio do negro brasileiro:

Quanto a mim, considero-me parte da matéria investigada. Somente da minha própria experiência e situação no grupo étnico-cultural a que pertenço, interagindo no contexto global da sociedade brasileira, é que eu posso surpreender a realidade que condiciona o meu ser e o define. Situação que me envolve qual um cinturão histórico de onde não posso escapar conscientemente sem praticar a mentira, a traição, ou a distorção da minha personalidade. (Nascimento, 2016, p. 47)

E o próprio Edson Cardoso afirma o seguinte em seu novo livro com relação ao papel do testemunho na construção do saber histórico autêntico e, especificamente, da história da luta do Movimento Negro:

Já sabemos que será impossível reconstituir a verdade histórica sem o acesso a testemunhos indispensáveis. Não custa lembrar que os programas de história oral surgem em universidades americanas (Columbia, Yale) em 1948 e colhem depoimentos de sobreviventes do Holocausto judeu. Ainda há tempo para impedirmos a dissolução do passado recente de esforços e lutas do Movimento Negro? Abdias Nascimento não se cansou de nos mostrar o caminho. (Cardoso, 2022, p. 421)

Ao longo deste livro de Edson Cardoso nos deparamos inúmeras vezes com uma crítica ao falso universalismo do logos ocidental, que postula uma verdade atemporal e a-histórica, desistoricizando e, a bem da verdade, embranquecendo todo o saber. A história do ponto de vista da epopeia desse logos universal, atravessando um tempo homogêneo e vazio, deve ser traduzida como a aventura daquilo que Édouard Glissant (2021) denominou de nomadismo em flecha, ou seja, a história do colonialismo e do imperialismo europeus. No bojo desses movimentos atuou e atua um poderoso processo de apagamento de outras histórias, línguas, religiosidades, escritas e epistemologias.

Contra tudo isso ergue-se a poderosa voz desse poeta, ensaísta, jornalista e político. Falando especificamente do tema testemunho, Edson cita uma passagem do ensaio “Verdade e política” de Hannah Arendt, ensaio, aliás, da maior atualidade. Cito Edson:

Hannah Arendt, quando indaga sobre que dano o poder político pode infligir à verdade, ajuda-nos a compreender a importância do testemunho. A verdadeira textura do domínio público, ela afirma, é constituída por fatos e eventos que resultam da ação conjunta de homens e mulheres, e é uma textura muito frágil diante do assédio do poder. E acrescenta: “[Esses fatos], uma vez perdidos, nenhum esforço racional os trará jamais de volta”. (Arendt, 1982, p. 288; apud Cardoso, 2022, p. 13)

Nesse mencionado ensaio, Arendt destaca como os governantes ditatoriais, na sua arrogância ignorante, procuram negar a apagar esses fatos, que são, a contrapelo, apresentados pelos testemunhos. Em uma palavra, tiranos detestam a verdade e se agarram patologicamente às mentiras. De resto, esse apreço pela verdade, da parte de Arendt, calcada nos fatos testemunhados, levou-a, em seu ensaio Origens do totalitarismo, justamente a destacar a cumplicidade entre os genocídios da população negra na África com o genocídio praticado pelos nazistas na Europa. Sem a experiência colonial, afirmou Arendt, não teria sido possível aos nazistas fundar um estado com base na racialização dominadora e genocida.

As possessões coloniais africanas tornaram-se o solo mais fértil para que florescesse o grupo que viria a ser mais tarde a elite nazista. Viram ali como era possível transformar povos em raças e como, pelo simples fato de tomarem a iniciativa desse processo, podiam elevar o seu próprio povo à posição de raça dominante. (Arendt, 2013, pp. 274-5)

Aimé Césaire, por sua vez, um ano antes da publicação desse livro de Arendt, em 1950, no seu Discurso sobre o colonialismo escreveu a partir de seu testemunho, ou seja, da sua vida com o agente político negro transitando entre o Caribe e a França: “o burguês muito distinto, muito cristão do século xx […] carrega consigo um Hitler sem saber, que Hitler vive nele […], o que ele não perdoa em Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime de haver aplicado à Europa os procedimentos colonialistas que atingiam até então apenas os árabes da Argélia, os coolies da Índia e os negros da África” (2020, p. 18). Acrescentemos à lista de Césaire os subalternizados da América Latina. Frantz Fanon em seu primeiro livro, Pele negra, máscaras brancas, também cita uma passagem importante nesse sentido de Césaire:

Quando ligo o rádio e ouço que, na América, os pretos são linchados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo o rádio e ouço que judeus são insultados, desprezados, massacrados, digo que nos mentiram: Hitler não morreu; quando ligo enfim o rádio e ouço que na África o trabalho forçado está instituído, legalizado, digo que, na verdade, nos mentiram: Hitler não morreu. (Césaire apud Fanon, 2008, p. 88)

Essa consciência de que os fascismos, com sua sanha necropolítica, marcam a era moderna do século xvi ao xxi é fundamental para localizarmos os inimigos nessa batalha. O capitalismo nunca abriu mão do fascismo com alternativa política, daí o sobrevivente de Buchenwald Robert Antelme ter formulado, em 1948, em seu artigo “Pauvre-Prolétaire-Déporté” [“Pobre-Proletário-Deportado”]: “Quando o pobre torna-se proletário, o rico torna-se ss” (Antelme, 1994, p. 110). O processo de racialização subalternizadora e genocida está no cerne do projeto da Modernidade desde seu início. Primeiro porque sem a animalização do outrificado a superexploração não é possível. Em segundo lugar, pela definição desse outrificado constrói-se também um “próprio”, íntegro, que se pensa como uma comunidade de iguais superior e que se arvora direitos de dominação. Hannah Arendt referia-se a essa experiência de racialização ocorrida nas colônias do Império alemão que depois serviu de base para ideologia e prática nazistas.

Contra a máquina (neo)colonial que vai muito bem, destruindo a natureza, as populações subalternizadas e reduzindo tudo a commodities, os textos aqui reunidos de Edson Cardoso constituem um bem-vindo antídoto. A partir de seus 151 textos pode-se traçar não só a história do Movimento Negro no Brasil, como uma miríade de temas teóricos e políticos que se tornaram ainda mais prementes em nossos tempos brutais. Falando do brutalismo, permito-me concluir citando o referido ensaio de Achille Mbembe sobre o brutalismo, de 2020, cujas palavras, espero, possam ecoar em nosso presente:

Como Édouard Glissant não deixou de reafirmar, “cada um de nós precisa da memória do outro, porque não é uma virtude da compaixão ou da caridade, mas de uma lucidez nova num processo de Relação”. Se quisermos partilhar a beleza do mundo, acrescentou [Glissant], devemos aprender a ser solidários com todos os seus sofrimentos. É preciso aprendermos a lembrar juntos e, com isso, consertarmos juntos o tecido e a face do mundo. Não se trata, portanto, de nos fecharmos em nós mesmos, de nos deixarmos habitar pela obsessão de um lar, de um entre nós, de um em-nós transcendente, mas de ajudar a elevar, ao largo, esta nova região do mundo onde todos poderemos entrar incondicionalmente, para abraçar, de olhos abertos, a natureza inextricável do mundo, a sua estrutura indissolúvel, o seu carácter heterogêneo. (Mbembe, 2021, p. 59)

De fato, “nada os trará de volta”, como lemos no título da bela obra de Edson, mas a recordação tem a capacidade de presentificar as energias e os sonhos dos que se foram. Que a força da rememoração, o Zakhor que também está na base do judaísmo (Yerushalmi, 1993), nos inspire neste momento de necessária reestruturação de nossos rumos.

 

[1] Walter Benjamin, em suas teses Sobre o conceito de história, falando da “virada copernicana do saber histórico”, ou seja, acerca da necessidade de a história ser escrita pelos oprimidos e não pelos opressores, anotou: “O sujeito do conhecimento histórico é a própria classe oprimida combatente. Em Marx, ela aparece como a última classe escravizada, como aquela que se vinga, e que vai consumar o trabalho de libertação em nome de gerações de massacrados” (Benjamin, 2020, p. 80).

 

Márcio Seligmann-Silva é professor titular de Teoria Literária no IEL-UNICAMP

 

Referências bibliográficas

Antelme, Robert. “Pauvre-Prolétaire-Déporté”. Lignes, 1994, n. 21, pp. 105-11.

Arendt, Hannah. “Verdade e política”. In: H. Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1982, pp. 282-325.

Arendt, Hannah. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

Benjamin, Walter. Sobre o conceito de história. Trad. e org. Márcio Seligmann-Silva e Adalberto Müller. São Paulo: Autêntica, 2020.

Cardoso, Edson. Nada os trará de volta. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Césaire, Aimé, Discurso sobre o colonialismo. Ilustrações Marcelo D’Salete. Trad. C. Willer. São Paulo: Veneta, 2020.

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renata da Silveira. Salvador: EdUFBA, 2008.

Gilroy, Paul. Entre campos: nações, culturas e o fascínio da raça. São Paulo: AnnaBlume, 2007.

Glissant, Édouard. Poética da relação. Trad. Marcela Vieira e Eduardo J. de Oliveira. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.

Mbembe, Achille. Brutalismo. Trad. Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2021.

Nascimento, Abdias. O genocídio negro. Processo de um racismo mascarado. São Paulo: Perspectiva, 2016.

Yerushalmi, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica. Rio de Janeiro: Imago, 1993.