Desastre e desgovernança no Rio Doce

Resenha

 

por Haruf Salmen Espindola
20 jan. 2022

 

Lavalle, Adrian Gurza; Carlos, Euzeneia (orgs.). Desastre e desgovernança no Rio Doce: atingidos, instituições e ação coletiva. Rio de Janeiro: Garamond, 2022. 436 p.

 

Os desastres ou tragédias, por piores que sejam, são esquecidos: é o caso do desastre de Bopal, ocorrido em 1984; do rompimento da barragem de Val di Stava, em 1985; do acidente nuclear de Chernobyl, em 1986; e do desastre de Mount Polley, em 2014. Eles somem da mídia, da memória coletiva e até das lembranças de pessoas que vivenciaram os fatos, excetos de uns poucos cujas feridas não se cicatrizam. Essa dimensão do esquecimento é importante para que o eu e o nós (coletividade) possam seguir a vida; tal dimensão, porém, não escapa às relações de poder, ou seja, aos agenciamentos que buscam definir tanto o esquecimento como a lembrança. Uma boa referência para o entendimento desse processo é o estudo de Button (2010), que, a partir da ideia de cultura do desastre, mostra como determinados atores agem na produção de novos enquadramentos e de repertórios que apagam informações e juízos, alterando narrativas sobre os acontecimentos trágicos.

Em 2022, completaram-se sete anos do rompimento da barragem de armazenamento de rejeitos de minério de ferro de Fundão, situada em Bento Rodrigues, subdistrito de Santa Rita Durão, no município de Mariana, em Minas Gerais.[1] No dia 5 de novembro de 2015, em 30 minutos, a povoação de Bento Rodrigues, a primeira a ser atingida pelos rejeitos, desapareceu para sempre, junto com a vida de 19 pessoas. Antes de chegar ao Rio Doce, o percurso da lama provocou devastações em Paracatu de Baixo (subdistrito da cidade de Monsenhor Horta) e nos arredores do rio Gualaxo; em Gesteira (subdistrito de Barra Longa), além de Governador Valadares até chegar a Regência, localizada de Linhares, no Espírito Santo. À medida que avançava, o rejeito devastava os ecossistemas fluviais e seus habitantes, inviabilizando o uso da água por humanos e não-humanos.

As consequências foram desastrosas para a flora e a fauna, para propriedades rurais e povoações, para o patrimônio cultural, para as atividades econômicas, para as populações tradicionais e para territorialidades em Minas Gerais e no Espírito Santo, no continente e no mar. Esse evento deu origem ao desastre-crime da Vale/BHP/Samarco.[2]

Se, de um lado, pessoas, comunidades e municípios atingidos direta ou indiretamente pelo rompimento da barragem buscaram ser ouvidos sobre os acontecimentos, por outro assistiu-se às empresas Vale/BHP/Samarco controlarem os processos de mitigação, indenização, compensação, reparação e restauração, favorecidas pelo Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), de 2 de março de 2016, firmado com entes federativos.

O braço operativo das empresas é a Fundação Renova, pessoa jurídica de direito privado criada em 30 de junho de 2016. Conforme anuncia em seu site, ela deveria agir para conseguir acordos com os atingidos, de forma a pacificar os conflitos entre empresas e sociedade. Esse Frankenstein se tornou fonte de emprego para cerca de seis mil “colaboradores” e contou, somente em 2022, com o orçamento de R$ 10,4 bilhões. São mais de seis anos de atuação da Fundação Renova, sem que se tenham diminuído as críticas à sua pouca eficiência e à falta de resultados. Na verdade, esse instrumento corporativo de mediação e pacificação foi, no decorrer desses anos, um foco de conflito, sobretudo por sua baixa legitimidade, gerando particularmente uma enorme fonte de indignação junto aos atingidos e aos movimentos que os representam.

Como em outros casos, o desastre-crime da Vale/BHP/Samarco, além de cair no esquecimento ou perder importância na agenda das pessoas, sofre o reenquadramento produzido por novos repertórios, como se pode ler e ver no site da Fundação Renova e em suas publicidades nos meios de comunicação e nas redes sociais. Isso pode ser comprovado na série patrocinada pela fundação, “Expedição Rio Doce”, disponível no site da instituição e no seu canal no YouTube. Por outro lado, os atingidos e o Ministério Público sustentam outros repertórios e apresentam uma realidade divergente daquela mostrada nos vídeos, como se pode constatar nos diversos eventos realizados para marcar o 5 de novembro, a exemplo do Seminário Integrado do Rio Doce, realizado em Governador Valadares e já em sua sétima edição, promovido por diferentes parceiros junto com Universidade Vale do Rio Doce, por meio do Programa de Pós-graduação em Gestão Integrada do Território.[3]

O desastre-crime da Vale/BHP/Samarco, desde o primeiro dia até o presente, fez emergir tensões e desconfiança generalizadas, ou seja, conflitos envolvendo compreensão, dizeres, juízos e atitudes de múltiplos atores, em diferentes posições na estrutura relacional, configurando conflitos não apenas de interesse, mas de direitos (contraiis legibus), no sentido de diferentes regimes em disputa, como mostra Sara Pritchard (2011).

Esses diferentes regimes em disputa podem ser compreendidos em sua inteireza com a ajuda da coletânea organizada por Adrian Gurza Lavalle e Euzeneia Carlos, Desastre e desgovernança no Rio Doce: atingidos, instituições e ação coletiva (Garamond, 2022). Com foco no estado do Espírito Santo, a coletânea oferece uma reflexão consistente sobre os atingidos, as instituições e a ação coletiva, como indica o subtítulo da obra. Esse foco não diminui em nada a importância teórica e prática da obra, principalmente para aqueles que estão no campo de ação, tendo que lidar com o sistema de governança corporativo conduzido pela Fundação Renova e, ao mesmo tempo, enfrentando diariamente os efeitos de organização e desorganização produzidos por essa governança privada, como bem demostram os resultados das pesquisas que originaram a coletânea. Por tudo que foi dito acima, sem qualquer margem de dúvida, podemos afirmar a importância dessa publicação para a Bacia Hidrográfica do Rio Doce, para os estados do Espírito Santo e de Minas Gerais, para o Brasil e para todos os países e regiões por onde se estende a rede global da produção mineral.

A coletânea é resultado do projeto selecionado na chamada pública conjunta das agências CNPq, Capes, Fapes e Fapemig com a Agência Nacional de Águas (ANA), realizada em 2016 como resposta à enorme repercussão do desastre iniciado em 5 de novembro do ano anterior. Como destaca Carlos Sperber na orelha do livro, esse foi o único projeto da área das Ciências Sociais e Humanas, entre outros dezesseis que foram contemplados com recursos. O livro apresenta os resultados das investigações de 27 pesquisadores e pesquisadoras, além de extensionistas, de diferentes instituições, particularmente da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

O projeto inicialmente foi aprovado com o nome de “Sem o rio e sem o mar: implementação de tecnologia social de governança participativa para a recuperação da Bacia do Rio Doce”; no entanto, após discussão com os atingidos e os movimentos sociais, foi renomeado e implementado com o nome “ComRioComMar Opinião Popular” (CRCMOP). Essa passou a ser a denominação da tecnologia social que conjugou investigação científica e extensão universitária. A obra, portanto, reúne o conhecimento que resultou das pesquisas e do aprendizado em implementar a tecnologia social CRCMOP, continuamente construída e reconstruída em função da participação ativa de movimentos sociais e da população, particularmente daquela atingida pelo desastre-crime.

A coletânea Desastre e desgovernança no Rio Doce apresenta 14 capítulos, divididos em duas partes. A primeira foca as pesquisas sobre o que se denominou de governança e desgovernança no desastre da Vale/BHP/Samarco; e a segunda, as contratendências aos efeitos organizadores e desorganizadores do sistema de governança comandado pela Fundação Renova. A introdução, assinada por pesquisadores das instituições envolvidas no projeto, permite ao leitor uma visão geral do contexto e suas variáveis, sobre as pesquisas realizadas e seus resultados, bem como sobre a proposta e implantação da tecnologia social.

Na primeira parte, denominada “Governança e desgovernança”, tem-se uma reflexão que nos permite compreender as questões que envolvem o desastre-crime da Vale/BHP/Samarco, a começar pelo excelente texto de Marta Zorzal e Silva, que oferece um histórico dos conflitos de interesse e desencontros entre os múltiplos atores, bem como sobre os acordos estabelecidos, a ausência da participação dos atingidos e a atuação do Ministério Público e da Defensoria Pública. No segundo capítulo, André Vasco Pereira procura demonstrar como a lógica mineral produtivista se impôs como dominante, a tal ponto que a produção deveria crescer independentemente de os preços internacionais estarem em alta ou baixa. Essa lógica produtivista é vista como o fundamento do rompimento da barragem de Fundão e suas consequências. No capítulo seguinte, quatro autores analisam uma questão fundamental: a pouca efetividade da Fundação Renova no cumprimento dos 41 programas estabelecidos no TTAC. O quarto capítulo é instigante e revelador, pois explicita a estratégia retórica da Renova, a partir dos rastros digitais nas páginas mantidas pela empresa no Twitter, no Facebook e no Instagram. Segundo os autores, no conteúdo postado sobressai o esforço para apagar o desastre e silenciar as demandas vindas da população atingida.

Os três capítulos que fecham a discussão sobre governança e desgovernança tratam da dimensão política, com interessante contraste entre a esfera municipal e a discussão na esfera federal, focada na Câmara dos Deputados. Dois capítulos discutem o comportamento dos atores políticos dos municípios de Colatina e de Linhares, bem como a governança ambiental e a capacidade estatal de tais localidades. No último capítulo da primeira parte, temos o estudo do comportamento dos deputados federais em resposta ao desastre, no qual se analisam as propostas legislativas apresentadas e quem as apresentou, segmentando-as por partido, por unidades da federação e por recebimento do apoio financeiro das mineradoras, bem como pelos tipos de propostas formuladas.

Os sete capítulos da segunda parte da coletânea, “Contratendências”, trazem contribuições significativas e iluminam nossa compreensão sobre as múltiplas questões que envolvem essa tragédia que nos atingiu, na bacia do Rio Doce. Os primeiros quatro artigos trazem a descrição e a análise da atuação de atores institucionais e não-institucionais que se colocaram na posição de defesa dos atingidos e do ambiente. Esses atores formam a contratendência aos efeitos organizadores e desorganizadores da governança corporativa centrada na Fundação Renova. Como bem apontam os co-organizadores na introdução da coletânea, “os efeitos desorganizadores do sistema de governança de índole corporativa acabaram por produzir desgovernança pública e social”.

A segunda parte se inicia com o capítulo de Euzeneia Carlos, que analisa o processo de “negação da participação dos atingidos e negação do conflito”, bem como discute o modelo corporativo-administrativo de tratamento do conflito, instituído pelo sistema de governança estabelecido pelo TTAC e implantado pela Fundação Renova. O estudo mostra como as estratégias e táticas mobilizadas pelos atores da sociedade civil influenciaram na governança do desastre e nas decisões das autoridades e das corporações. Os três capítulos seguintes apresentam o resultado das pesquisas que investigaram atores específicos, e como esses agiram no contexto do desastre-crime da Vale/BHP/Samarco:  o agir dos Tupinikim e dos Guarani, a atuação da Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo e a do Ministério Público.

Os três últimos capítulos trazem a descrição, a explicação e a avaliação da tecnologia social CRCMOP, implantada pelos pesquisadores, com o apoio de extensionistas, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), do Fórum Capixaba em Defesa da Bacia do Rio Doce e de organizações e lideranças locais dos atingidos. Esses capítulos discutem os desafios vividos para implantar a tecnologia e como foi preciso aprender com os territórios e com a população atingida, com destaque para o processo de mobilização, de engajamento e de participação das lideranças e dos atingidos locais. Os capítulos detalham pontos fundamentais que oferecem ao leitor a experiência do CRCMOP, possibilitando utilizar o aprendizado em outros contextos.

No último capítulo, discute-se a importância da dimensão pedagógica para uma pesquisa com intervenção social, na qual a capacitação dos envolvidos (pesquisadores, extensionistas, atores sociais, comunidades e atingidos) é um processo de formação política. Destacam-se os referenciais de Paulo Freire, a descrição analítica da relação capacitação/mobilização, que combinam espaços de formação e espaços de ação nas comunidades, e, finalmente, um aspecto crucial da experiência do CRCMOP, a construção dos encaixes socioestatais e dos pontos de acesso entre comunidade e autoridades públicas.

Aprendemos múltiplos conceitos junto às descrições analíticas da implantação da tecnologia social CRCMOP, conceitos que são ferramentas estratégicas para lidarmos em diferentes contextos com a questão dos desastres minerários, seja aquele que atingiu a Bacia do Rio Doce ou a região de Brumadinho, ou qualquer outra tragédia socioambiental que resulte de decisões, comportamentos e ações corporativas de empresas e suas tecnologias. Também vale considerar que a coletânea, publicada no final do segundo semestre de 2022, chegou em momento oportuno, ou melhor, necessário para a atual conjuntura do Vale do Rio Doce.

Em 1º de dezembro de 2022, conforme anunciou o Ministério Público Federal, em sua página na internet: “Atendendo ao pedido das instituições de Justiça que atuam no caso Samarco, a Justiça Federal homologou o Termo de Compromisso assinado pelas Assessorias Técnicas Independentes (ATI) para início da prestação do serviço em 12 territórios atingidos pelo rompimento da barragem de Fundão”. Portanto, a obra organizada por Adria Gurza Lavalle e Euzeneia Carlos oferece uma contribuição fundamental para as instituições e os atores que estarão envolvidos na implementação das ATI, para os territórios e para os atingidos, em Minas Gerais e no Espírito Santo.

 

 

Haruf Salmen Espindola [https://orcid.org/0000-0003-4609-288X] é graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre pela Universidade de Brasília e doutor pela Universidade de São Paulo em História. Professor Titular da Universidade Vale do Rio Doce (Univale), atua no curso de Direito e no Programa de Pós-graduação em Gestão Integrada do Território (GIT), do qual é coordenador. É autor da obra Sertão do Rio Doce (Editora Univale, 2005). Na pesquisa, dedica-se à História Ambiental e à História Regional. No município de Governador Valadares, foi Secretário de Governo e Secretário de Educação.

 

Referências bibliográficas

Button, Gregory. Disaster Culture: Knowledge and Uncertainty in the Wake of Human and Environmental Catastrophe. Walnut Creek: Left Coast Press, 2010.

Fundação Renova. Expedição Rio Doce. Disponível em: <https://expedicaoriodoce.org/>. Acesso em: 12/01/2023.

Fundação Renova. Expedição Rio Doce 2022: conheça o monitoramento da pesca na região. Youtube. 4 min e 18 seg. Disponível em: <https://youtu.be/Rt8n17IXgOE>. Acesso em: 12/01/2023.

Pritchard, Sara B. Confluence: the Nature of Technology and the Remaking of the Rhône. Cambridge: Harvard University, 2011.

 

Notas

[1] A barragem de Fundão, localizada nos municípios de Mariana e de Ouro Preto, integrava o complexo minerário de Germano, pertencente à Samarco Mineração S.A., uma joint venture das duas maiores mineradoras globais: a Vale S.A e BHP Billiton Brasil Ltda. Essa é uma dentre as mais de duas dezenas de minas existentes na região do Quadrilátero Ferrífero, no centro-sul do estado de Minas Gerais, responsável por 60% de toda a produção brasileira de minério de ferro, segundo o Centro de Estudos Avançados do Quadrilátero Ferrífero (CEAQFe) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

[2] Preciso me colocar no lugar de fala, pois nasci e vivo em Governador Valadares, cidade cortada pelo Rio Doce, e não houve um dia sequer, estando em Valadares, que não tenha olhado o rio, mesmo quando passo apressado. Guardo na memória a imagem da manhã do dia 10 de novembro de 2015, pois logo que encerrei minha aula, deixei o campus da Univale e fui apressado para as margens do Rio Doce. Encontrei um cheiro asfixiante de morte e dezenas de pessoas chorando, particularmente as crianças, outras ainda com o semblante desolado e várias tentando inutilmente salvar peixes que morriam sufocados, colocando-os em baldes de água limpa.

[3] Alguns vídeos desses seminários podem ser consultados no canal da Univale no Youtube.