As ocupações secundaristas e os dilemas emancipatórios no contemporâneo

Resenha

Por Ricardo Fabrino Mendonça

 

MEDEIROS, Jonas; JANUÁRIO, Adriano; MELO, Rúrion (orgs.). Ocupar e resistir: movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil (2015-2016). São Paulo: Editora 34, 2019.

 

Ocupar e resistir é leitura essencial a quem busca compreender confrontos políticos contemporâneos. Organizada por Jonas Medeiros, Adriano Januário e Rúrion Melo, a coletânea se debruça sobre as ocupações de escolas no Brasil, entre 2015 e 2016, conduzindo leitores e leitoras em um percurso que permite tanto o sobrevoo mais amplo sobre tal processo como a aproximação detalhada do conjunto de casos investigados. Escrito na sequência das ocupações, o livro cumpre o duplo papel de registro histórico do fenômeno e de reflexão sobre as implicações políticas e sociais do mesmo, dando a ver uma série de questões necessárias para o estudo de conflitos políticos na atualidade. É de interesse, pois, para pesquisadoras e pesquisadores dedicados à investigação de lutas sociais e de educação no país e para um público mais amplo, que pode navegar pelos relatos, depoimentos e tramas que compõem esse relevante processo político da história recente brasileira.

O livro estrutura-se em três partes. A primeira delas delineia o contexto histórico de que surgem as ocupações, apresentando as transformações recentes da escola pública no país e os conflitos em torno da educação ao longo do tempo. Sem negligenciar a dimensão histórica de tais conflitos, assinalam-se mudanças recentes bastante significativas nesse cenário, a partir de uma articulação entre pautas neoliberais e conservadoras que alteram os horizontes de políticas públicas e desencadeiam reações.

A segunda parte faz um mergulho detalhado em um conjunto de casos dos estados de São Paulo, Goiás, Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais e Espírito Santo. Cada caso é apresentado como uma oportunidade para leitoras e leitores se aproximarem do contexto das ocupações, entendendo seus antecedentes, a cronologia dos processos políticos, o dia a dia das ocupações, as tensões vivenciadas dentro e fora das escolas, os desdobramentos políticos e as consequências das lutas dos secundaristas. A inspiração etnográfica atravessa a reconstrução dos casos, com ricas descrições que permitem um olhar nuançado sobre o fenômeno. Os relatos em primeira pessoa contribuem para a compreensão dos sentidos atribuídos pelos ocupantes às suas ações. Encontram-se, ali, suas emoções, seus temores, entusiasmos e frustrações, costurando a discussão sobre as consequências político-institucionais das ocupações e seus efeitos na experiência dos sujeitos. Sob pena de apagar as nuances citadas acima, encontra-se, de forma geral, um tom agridoce no relato dos capítulos, na medida em que se reconhecem os muitos aprendizados e a potência da suspensão espaço-temporal gerada pelas ocupações, mas também se diagnosticam seus limites na sustentação continuada de vitórias institucionais. Isso se faz particularmente claro nos capítulos que tratam de pautas nacionais mais amplas, sobretudo a Emenda Constitucional 95, sobre o teto de gastos públicos.

A terceira parte do livro explora alguns eixos transversais, amarrando fios que apareciam em certos capítulos, mas que ganham tratamento próprio. Abordam-se, aqui, o papel do protagonismo feminino e LGBTQI+ em algumas ocupações, o lugar das decisões judiciais no decorrer dos processos políticos estudados e as complexas dinâmicas societárias a compor contrapúblicos subalternos. Cada um a seu modo, os três capítulos evidenciam a existência de um processo disruptivo que permite aprendizados e transformações para além da pauta da educação: seja quando estudantes discutem suas próprias dinâmicas de poder, seja nas idas e vindas e revisões do Judiciário, seja ainda na reinvenção dos modos de atuar da sociedade civil.

Como já assinalado, a maior riqueza da obra está em permitir esse olhar próximo às ocupações, por meio de narrativas em que os atores do processo dão visibilidade a suas reflexões, seus percursos e afetos. Chama a atenção, também, a amplitude do projeto. É comum a estudos sobre conflitos sociais ater-se a casos particulares ou adotar um olhar comparado que prescinde de especificidades. Ao agregar vários casos, a obra permite uma leitura ampla de um processo com múltiplas facetas em diferentes períodos e estados da federação.

Como todo projeto amplo, contudo, o livro desperta curiosidades e deixa lacunas que não parecem adequadamente tratadas. Dois limites chamam atenção. O primeiro é a forma tangencial com que processos comunicacionais são tratados. Embora muitos capítulos dediquem atenção à cobertura midiática, e a despeito de menções episódicas às mídias digitais, não há um tratamento aprofundado dos processos comunicacionais e organizacionais a permear as ocupações. Essa lacuna se mostra significativa, tendo em vista a natureza do processo político investigado. Uma ação política capilarizada e feita por jovens na contemporaneidade envolve formas de mobilização, engajamento e intercâmbio que não apenas diferem das de movimentos sociais tradicionais, mas que têm reconfigurado a própria cara dos conflitos políticos.

O segundo limite a ser apontado diz respeito à possibilidade de uma leitura ambivalente dos protestos contemporâneos. Há, no livro, o reconhecimento das limitações, em termos da efetividade, das ocupações, mas falta uma discussão estrutural sobre o campo conflituoso da atualidade e os repertórios de ação empregados. É curioso, por exemplo, como a ação direta adquiriu nova centralidade na política hodierna, sendo apropriada, ainda que de formas distintas, por grupos, coletivos e movimentos com agendas muito diferentes. O livro menciona as contramobilizações ocorridas em alguns estados no sentido de fomentar as desocupações, mas não discute, com lentes mais amplas e críticas, as relações entre as táticas contenciosas hodiernas e a situação da democracia na atualidade. Por trilhas diametralmente opostas e substantivamente incompatíveis, defensores de ideologias antitéticas parecem alimentar discursos anti-institucionais e contrários a formas tradicionais de mediação, o que tem profundas consequências políticas. Consequências estas que podem, eventualmente, promover a radicalização de processos democráticos, mas também o recrudescimento de autoritarismos diversos.

É preciso deixar claro que não se busca aqui nem uma culpabilização desses movimentos pelo quadro político contemporâneo nem uma equivalência espúria sobre as consequências dos atos de tais grupos na estruturação da política contemporânea. Tampouco se questionam os objetivos, as pautas e a coragem de agir dos secundaristas, em um momento absolutamente inóspito às expressões de divergência. Ao defender a necessidade de uma mirada crítica sobre as ocupações, não proponho uma deslegitimação delas. Ao contrário, advogo a necessidade de pensar criticamente, compreendendo a tensão sempre existente entre as possibilidades efetivas de emancipação humana e os limites a elas colocados. É preciso operar com essa ambivalência para fazer um diagnóstico crítico acurado sobre como produzir um mundo melhor. Intenções e objetivos importam. Muito. A compreensão profunda de processos sociais, no entanto, requer ir além deles para entender dinâmicas societárias mais amplas.

Esses limites não desmerecem, em nenhum sentido, a importância da obra. Ao contrário, são suscitados por reflexões derivadas de sua leitura. Ocupar e resistir oferece um conjunto abrangente e instigante de estudos de caso sobre um fenômeno complexo, que segue negligenciado em pesquisas recentes, apesar de suas dimensões. O cotejamento desses estudos com as investigações teóricas e empíricas sobre a miríade de fenômenos que compõem a cena conflituosa da contemporaneidade pode mostrar-se fundamental não apenas para a compreensão política de nosso tempo como também para a promoção de um mundo mais justo.

 

 

Ricardo Fabrino Mendonça é professor do departamento de ciência política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). É pesquisador do Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça, do INCT em Democracia Digital e bolsista de produtividade do CNPq. Atualmente, é professor visitante na University of California Irvine (UCI), com apoio da Fulbright e da Capes.

 

Capa do livro Ocupar e resistir: movimentos de ocupação de escolas pelo Brasil. Foto: Dafne Sampaio.