Arte, política e emancipação no MASP

Elena de Oliveira Schuck
Resenha

Exposição Histórias de mulheres, histórias feministas

23.08.2019 – 17.11.2019

Elena de Oliveira Schuck | Pesquisadora de pós-doutorado do CEBRAP

 

A arte produzida por mulheres foi o propósito da exposição do Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP), que acaba de se encerrar. Inserida no projeto anual do museu com a temática feminista, a exposição Histórias de mulheres, histórias feministas preocupa-se em fortalecer o espaço crítico construído pelas feministas da história, tecendo memórias entre o passado e o presente. Dividida em duas partes – História das mulheres: artistas até 1900; e Histórias feministas: artistas depois de 2000 – e contando com mais de trezentas obras, a exposição reitera o esforço do MASP em fortalecer a presença das mulheres em seu acervo.

A preocupação em dar visibilidade à produção artística da mulher, no entanto, não é recente. Nos últimos 50 anos, artistas e acadêmicas têm trabalhado no sentido de entender as causas da ausência de repertórios feitos por mulheres em museus e galerias. No início da década de 1970, Linda Nochlin publicava o ensaio “Por que não existiram grandes artistas mulheres?”,[i] em que expunha os obstáculos institucionais que haviam impedido as mulheres ocidentais de alcançar êxito nas artes. Já o coletivo de artistas Guerrilla Girls, surgido nos Estados Unidos em 1985, questionava através de ações públicas e performances a exclusão das artistas mulheres dos grandes circuitos de arte.[ii]

No Brasil, a crítica feminista não se furtou aos debates na história da arte, revelando a teia de opressões – silenciamentos, exclusões e invisibilidades – que fizeram com que as mulheres fossem consideradas menos capazes de realizações artísticas do que seus colegas homens. Frente às desigualdades de gênero percebidas no meio cultural e nos circuitos de arte, algumas curadorias demonstram sensibilidade ao tema, propondo ações pautadas na inclusão e no lugar de fala. Tanto é que no período de 2017 a 2019, a cidade de São Paulo pôde contar com outras importantes exibições de arte em diálogo com o feminismo. Como predecessoras da recente exposição constam a do coletivo Guerrilla Girls em 2017,[iii] também no MASP, e a aclamada Mulheres radicais: arte latino-americana 1960-1985,[iv] de Andrea Giunta e Cecilia Fajardo-Hill, em 2018, adaptada para a Pinacoteca do Estado de São Paulo.

Na seção História das mulheres: artistas até 1900, fica evidente, pelo amplo período histórico contemplado e pela diversidade de obras – criadas na Índia, no Império Turco-Otomano, no Uzbequistão, nas Filipinas, no Egito e Marrocos, nas Américas, além da Europa –, que é tarefa difícil, senão impossível, identificar um “modo feminino” neste conjunto de repertórios. Todavia, a insistência em destacar um padrão feminino remete a uma lógica discursiva binária que contrapõe o masculino ao feminino, sugerindo a superioridade dos valores masculinos na criação artística.

Na história da arte, a desvalorização de padrões associados ao feminino remonta ao período renascentista, quando, ao mesmo tempo em que se atribuía à arte a beleza e o intelecto, se acreditava que as mulheres, além de desprovidas de beleza, seriam intelectualmente incapazes de criar algo tão elevado quanto a arte.[v] Identificando, ao longo da história da humanidade, discursos que atribuem ao feminino um valor menor, a curadoria da exposição Histórias de mulheres, histórias feministas colabora para o desmonte das hierarquias de gênero baseadas em critérios simbólicos e enviesados no campo do fazer artístico.

Já a seção Histórias feministas: artistas depois de 2000, aborda a lacuna curatorial sobre arte feminista do século XXI. Através da seleção de obras de produzidas a partir de 2000, e de um notável repertório de artistas brasileiras e latino-americanas, a exposição contempla a diversidade de narrativas a partir da diversidade étnico-racial e sexual do mundo contemporâneo. Sem a pretensão de esgotar a discussão, suscitam-se reflexões acerca do uso dos feminismos como ferramentas para desmantelar discursos opressivos e transformar a maneira como algumas histórias vêm sendo escritas.[vi] Nesse sentido, é interessante perceber nessas obras referências diretas a artistas como Tarsila do Amaral, Lygia Clark e Marina Abramovic, ou ainda, inusitadas referências a teóricas feministas, como é o caso de Donna Haraway, que tem um de seus livros ilustrado em uma das telas à mostra.

O que possivelmente mais se destaca e comove nessa seção é o lugar de fala não convencional que permeia as obras: a perspectiva de quem vive a prostituição, de quem vive a precarização do trabalho doméstico no Brasil, dos corpos desviantes da heteronormatividade, ou ainda daquelas que carregam consigo marcas da escravização de africano/as no Brasil e da dizimação dos povos ameríndios. Voz e a narrativa são conferidas a grupos identitários até então pouco ouvidos – mulheres, LGBTQs, negras e povos originários do Sul Global– tornando a arte um meio potencial de transformação democrática.

A exibição chefe do MASP de 2019 traduz-se em um esforço de aproximação entre arte e política como forma de combater desigualdades históricas. Longe de estar isolada, História das mulheres, histórias feministas, integra possivelmente um movimento maior, de dimensões transnacionais, cuja essência consiste nos usos dos feminismos para combater opressões oriundas de um sistema patriarcal, capitalista, racista e colonialista.[vii] Tal movimento insere-se em uma conjuntura política global em que a arte ocupa um espaço potente para ressignificações discursivas. A arte, portanto, revela-se necessária para repensar diálogos, narrativas e imaginários que fomentem iniciativas de inclusão de novos sujeitos políticos para a transformação e a consequente emancipação social.

 

[i] Nochlin, Linda. “Why have there been no great women artists?”. In: Gornick, Vivian; Moran, Barbara K. (orgs.). Woman in Sexist Society: Studies in Power and Powerlessness. Nova York: Basic Books, 1971.

[ii] As Guerrilla Girls usam máscaras de gorila e não revelam sua identidade. Dentre suas intervenções mais conhecidas estão os cartazes que indicam o levantamento de obras feitas por mulheres e nus femininos em museus pelo mundo.

[iii] Nesta ocasião, o coletivo Guerrilla Girls elaborou um cartaz sobre os dados do museu: “As mulheres precisam estar nuas para entrarem no Museu de Arte de São Paulo?”. Segundo o levantamento realizado, havia 6% de artistas mulheres no acervo, em contraste com 60% de nus femininos.

[iv] Essa curadoria contou com dez anos de pesquisa sobre artistas latino-americanas atuantes entre 1960 e 1985. Para mais detalhes, ver: Fajardo-Hill, Cecilia; Giunta, Andrea. Radical Women: Latin American Art, 1960-1985. Los Angeles: Hammer Museum and DelMonico Books/Prestel, 2017.

[v] Leme, Mariana. “Histórias das mulheres: artistas até 1900”. In: Museu de Arte São Paulo Assis de Chateaubriand. História das mulheres, histórias feministas. São Paulo: MASP, 2019.

[vi] Rjeille, Isabella. “Histórias feministas: artistas depois de 2000”, p. 189. In: Museu de Arte São Paulo Assis de Chateaubriand. História das mulheres, histórias feministas, op. cit.

[vii] Arruza, Cinzia; Fraser, Nancy; Bhattachaya, Tithi. Feminismo para os 99%: um manifesto. Trad. de Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2019.

Foto de Mike Peel (www.mikepeel.net)., CC BY-SA 4.0, https://commons.wikimedia.org/w/index.php?curid=57398189