A Greve dos Caminhoneiros e o Grande Paradoxo de Arlie Hochschild

Alvaro A Comin
Ensaio

Comecemos pelo Grande Paradoxo do título. Um dos livros mais esclarecedores sobre a eleição de Donald Trump foi escrito e publicado antes do acontecimento propriamente dito, tendo sido o fruto de uma pesquisa que se iniciara pelo menos cinco anos antes. Trata-se de Strangers in their own land. Anger and mourning on the American right, da socióloga norte-americana Arlie Hochschild [New York, The New Press, 2016]. O livro é o resultado de uma grande viagem pelo mundo de pessoas e famílias comuns, de renda pouco mais, pouco menos que modesta, que nasceram e que habitam há longo tempo (senão há gerações) cidades médias, pequenas e muito pequenas; cidades que há muito experimentam o prolongado declínio demográfico que se segue ao esvaziamento econômico provocado, não raro, pelo fechamento de uma única grande empresa, que até então fora a fonte principal de empregos e impostos do lugar. A empresa sumiu por que mudou-se para a China ou para o México, em busca de custos menores e legislações ambientais menos restritivas. Essa viagem se passa em áreas que sofreram verdadeiras devastações ambientais, causadas por décadas de atividades de indústrias altamente poluentes – e insuficientemente reguladas e monitoradas pelos órgãos responsáveis – como é o caso das gigantescas plantas petroquímicas que acompanham o traçado curvilíneo do rio Mississippi, conforme este cruza o estado da Luisiana, literalmente distribuindo vida (os empregos e a renda capazes de atrair e manter gente) e morte (do ecossistema, de pessoas e de cidades).

As pessoas e famílias com quem Arlie Hochschild conviveu demoradamente ao longo de sua pesquisa vêm a ser também – e não casualmente – habitantes do complexo e multifacetado mundo da direita norte-americana, muito religiosa e habitualmente fiel ao Partido Republicano, e que finalmente ousou abrir a caixa de pandora de onde pulou o atual presidente americano, naquele surpreendente 8 de novembro de 2016. Muitas são famílias de (ex-) trabalhadores industriais – operários, técnicos, operadores de máquinas, trabalhadores em logística, transporte etc. –, pequenos empresários e prestadores de serviços, profissionais que vêm sofrendo há décadas com a desindustrialização dos empregos, causada pela emigração de empresas e sobretudo pelo avanço cada vez mais acelerado da automação industrial. Para uma larga parcela da classe trabalhadora branca americana, o emprego industrial permitiu que, mesmo com credenciais educacionais relativamente modestas, os seus membros desfrutassem de condições de vida e perspectivas de classe média (casa própria, carro, plano de aposentadoria, filhos na universidade); essa classe de homens, aos poucos, teve que começar a se contentar com os macjobs instáveis, mal pagos e sem perspectivas de carreira, que as grandes cadeias comerciais oferecem e para os quais, ademais, têm que concorrer com força de trabalho composta de afro-americanos, latinos e imigrantes. Estes náufragos da globalização passam a enxergar as razões de seu insucesso na imigração e nas vantagens desproporcionais representadas pelas políticas sociais em apoio às minorias e aos pobres, que, ainda por cima, o governo financia com os impostos que eles próprios, trabalhadores americanos, pagam. Para a autora isto esclareceria o “grande paradoxo” de que justamente estes estratos de trabalhadores empobrecidos pelas transformações econômicas e pelos desastres ambientais que a acompanharam se voltem com tanta fúria contra as políticas sociais e ambientais destinadas a socorrê-los, aderindo maciçamente à agenda antiwelfare, anti-estado e anti-ciência servida por Trump.

A polarização Republicanos/conservadores versus Democratas/liberais já vinha de longe[1]. A eleição de Barack Obama representou para os conservadores um choque equivalente ao da eleição de Trump para os liberais. Não casualmente, 2009 foi o ano em que o Tea Party se organizou nacionalmente e começou a investir no patrocínio de candidaturas, exclusivamente por meio do Partido Republicano, terminando por desafiar a própria elite dirigente do partido.

Para além do empobrecimento (relativo e/ou absoluto), estes grupos sociais experimentam intensa desvalorização simbólica, sendo reiteradamente retratado pelos meios de comunicação “liberais e cosmopolitas” como caipiras antediluvianos, fanáticos religiosos e racistas. Assim como nas novelas brasileiras as classes populares, em particular os negros, são sub-representados e tratados de forma estereotipada e preconceituosa, nos sitcoms e seriados animados das tvs americanas, a classe trabalhadora é pouco e mal retratada. Em coluna recente no The Guardian[2], Joan C Williams comenta um  levantamento feito por Richard Butsch  (sociólogo, professor da Rider University e autor de The Making of American Audiences from Stage to Television, 1750-1900) com 400 programas destes gêneros, exibidos em horários nobres, entre 1948 e 2016, registrando que em apenas cerca de 10% deles os protagonistas pertencem à classe trabalhadora (ou seja, os trabalhadores manuais, os operários, os técnicos  industriais, os motoristas de caminhão). Na vasta maioria dos casos os personagens principais são de classe média alta, brancos, profissionalmente bem-sucedidos e cosmopolitas. E nos casos em que famílias de trabalhadores são retratadas, temos, quase invariavelmente (do operário de pedreira Fred Flintstone ao técnico de usina nuclear Homer Simpson) um chefe de família de muito bom coração, porém grosseiro, machista, cheio de preconceitos e superstições, quase sempre contido em sua estupidez apenas pela esposa dona-de-casa e portadora do que há de bom senso na família. Homer Simpson, diga-se, nunca escondeu sua preferência pelo Partido Republicano.

O que isto tudo tem a ver com os caminhoneiros brasileiros e seus dramas revelados em suas recentes jornadas de protesto? Infelizmente, ainda nos falta um retrato em tão alta definição deste grupo quanto o que foi produzido por Arlie Hochschild para a classe trabalhadora americana, ou pelo menos da Luisiana. Este retrato mais fino por certo apontaria grandes contrastes, assim como grandes semelhanças. Os caminhoneiros brasileiros são uma categoria tipicamente masculina (em 99,8% dos casos) e com níveis de escolaridade baixos em relação à população brasileira. Segundo pesquisa realizada pela Confederação Nacional dos Transportes, publicada em 2016[3], entre os motoristas autônomos, que são mais velhos (quase 70% nas faixas acima de 39 anos), nada menos que 40% não possuem o nível fundamental completo de instrução. Quando somados aos que possuem apenas este grau de ensino completo totalizam dois terços desta subcategoria; entre os motoristas empregados de transportadoras, mais jovens (“só” 50% tem 40 anos ou mais), o quadro se altera apenas pelo fato de que os que possuem o fundamental completo predominam, mas quando somados aos que não o possuem temos aproximadamente os mesmos dois terços do total da subcategoria.

Num contexto em que a proporção de ocupados com nível superior de instrução vem crescendo aceleradamente e em que as melhores oportunidades de trabalho se deslocam cada vez mais para ocupações em setores de serviços mais “leves” (escritório, bancos, comércio), os caminhoneiros – com baixa instrução e idade relativamente avançada – constituem um grupo muito vulnerável ao desemprego ou ao subemprego informal, onde a renda é baixa e instável e não há muito o que mobilizar para fins de distinção profissional e autoestima. Em particular o declínio das profissões manuais qualificadas, tipicamente masculinas – caso dos condutores de caminhão e dos operários das indústrias mais intensivas em capital, que ocorre em paralelo com a entrada maciça das mulheres num mercado de trabalho cada vez mais graduado – pode nos ajudar a entender por que as manifestações de intolerância e de ódio (no mundo real assim como no virtual), comumente associadas a grupos de extrema direita, pareçam ser sempre um fenômeno tão contundentemente masculino. As grandes transformações no mercado de trabalho a que vimos assistindo nas últimas décadas produzem, como efeito colateral, o declínio do chefe de família provedor e logo da autoridade masculina e paterna na esfera doméstica. E se esta é uma boa pista, a ninguém deve estranhar que pelo menos no discurso estes conservadores elejam como valor maior a defesa da “família tradicional” e exijam mais “autoridade” (militar, policial, religiosa, paterna).

Entre os caminhoneiros brasileiros, as condições de trabalho são bastante duras: segundo o levantamento da CNT, nada menos que três quartos trabalham 11 horas ou mais por dia; e mais de 50% trabalham de seis a sete dias por semana. Como sabemos, trata-se de profissão que envolve muita insegurança pessoal, principalmente por conta dos acidentes de trânsito e dos assaltos nas estradas mal asfaltadas e mal policiadas. A situação é agravada para os mais de 50% de motoristas autônomos que dirigem veículos com quinze anos ou mais de idade. Segundo a ANTT, Agência que regula o setor (informação publicada pela Revista do Caminhoneiro, em 19/06/2016), havia em 2016 no Brasil uma frota de 1,6 milhões de caminhões (46% dos quais pertencentes a autônomos), com idade média de 18 anos. De volta aos dados da pesquisa da CNT, temos que a frota das transportadoras tem 80% de caminhões com até dez anos, dos quais mais de 40% com até cinco anos de idade, o que sugere que o estranho caso da “farra dos caminhões novos” de que falam os jornais brasileiros, tenha sido um affaire apenas entre o BNDES e as transportadoras.

O declínio simbólico desta categoria de trabalhadores foi muito bem registrado pela colunista do El Pais, Eliane Brum, em artigo recente[4]. Numa chave muito próxima à de Arlie Hochschild, escreve Brum, “É importante compreender quem é esse novo velho protagonista que parou o país em maio de 2018, assim como perceber o quanto há de protagonismo real nesse personagem. Durante boa parte da segunda metade do século 20, com mais ênfase na ditadura civil-militar (1964-1985), o caminhoneiro tornou-se um personagem importante da propaganda nacionalista de um Brasil em busca do progresso e do futuro. Ao longo das últimas décadas, esse mesmo personagem testemunhou essa imagem se dissolver e, junto com ela, perdeu não só renda, mas também espaço simbólico”. Ela nos lembra da série da TV Globo, Carga Pesada, protagonizada por dois caminhoneiros, sobre a qual observa: “Era a realização na dramaturgia do brasileiro pobre, mas trabalhador, empreendedor e sonhador, lutando contra um Brasil muitas vezes corrompido e corruptor”.

A propósito da autoestima da categoria, a pesquisa da CNT revela que quando perguntados sobre “qual a imagem os caminhoneiros acham que as pessoas têm de sua profissão?”, as quatro respostas mais frequentes, pela ordem, foram: “irresponsáveis”, “imprudentes”, “usuários de drogas” e “pessoas sem instrução”. Só depois e com frequências muito menores aparecem atributos positivos, como “importantes para a economia” e “solidários na estrada”.

A categoria dos caminhoneiros é dividida em empregados (assalariados das empresas transportadoras) e autônomos (proprietários de caminhões). Na prática, como mostram Vitor Araújo Filgueiras e José Dari Krein (professores, respectivamente, da UFBA e da Unicamp e ambos economistas especializados em questões do trabalho), em artigo recente[5], o que define um trabalhador como autônomo é que ele “presta serviços para diferentes clientes, sem depender, nem estar subordinado, a nenhum deles”. Na prática, segundo os autores, na maioria dos casos os caminhoneiros são, na verdade, “empregados disfarçados”, que trabalham para um único contratante, que é quem define unilateralmente as suas condições de trabalho e remuneração; mas como são contratados como autônomos não desfrutam dos direitos trabalhistas que lhe caberiam. E ainda carregam as dívidas que pagam seus caminhões, os custos e os riscos de mantê-los, enfim, o custo da depreciação de seu “capital”. Esta ambiguidade entre ser “trabalhador” ou “capitalista” é alimentada pelos empresários, mas também representa um dos poucos elementos simbólicos que podem ser mobilizados pelos motoristas capazes de gerar autoestima, “afinal sou dono do meu próprio negócio”. Por trás desta ambiguidade vemos surgir a imagem do paradoxo: os caminhoneiros protagonizaram um dos movimentos de protesto mais estrondosos dos últimos anos, mas toda a ênfase do combate foi não para o aumento de sua renda, (o valor do frete), mas sim para a redução dos custos do negócio (combustível, pedágios e impostos), que em última instância deveria ser problema das empresas e de seus donos.

Diferentemente dos EUA, no Brasil a grande mídia não pode ser acusada de liberal, nem muito menos de cosmopolita; com sua retórica rudimentar dos tempos da Guerra Fria e o seu desembaraço para organizar e apoiar golpes de estado e intervenções militares ao longo da história nacional. A maioria dos veículos até se aproxima bastante, ideologicamente, do estereótipo que se disseminou (com ou sem razão) sobre os caminhoneiros, como o de apoiadores de golpe militar e eleitores de Jair Bolsonaro. Mas o viés antipopular e antinacional da nossa mídia reserva para todos os tipos de manifestações e demandas que envolvam populares a mesma repulsa, o mesmo terror; e a bandeira da autoridade é logo hasteada, o que talvez explique o fato curioso de que jornalistas da Globo, por exemplo, sejam cotidianamente hostilizados tanto por grupos de esquerda quanto de direita.

O Lemep (Laboratório de Estudos de Mídia e Esfera Pública, da UERJ, sob a coordenação do professor João Feres Júnior) reuniu dados eloquentes sobre a maneira como os protestos foram retratados na grande imprensa; no período de 22 a 30 de maio, que coincide com a greve dos caminhoneiros, nos três veículos impressos monitorados, Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo, de um total de 30 editoriais tratando do assunto “greve dos caminhoneiros”, 23 foram classificados como “contrários ao movimento”, seis como “neutros” e um como “ambivalente”. Já sobre a política de indexação de preços dos combustíveis (exatamente o que levou ao desespero os caminhoneiros), assunto abordado em quinze editoriais, em todos eles, sem exceção, as posições manifestadas foram favoráveis à política. Em compensação o tabelamento de preços dos combustíveis (principal bandeira dos caminhoneiros) foi rejeitado pelos três jornais de modo igualmente unânime. Ademais, a fábula da “farra dos caminhões”, servida ao público por estes veículos, procurou transformar os caminhoneiros de vítimas em culpados por sua própria desgraça (“quem mandou comprar caminhão novo quando a economia estava esfriando!”), o que só tornou a vida dos repórteres da Globo mais difícil.

Ao Grande Paradoxo dos caminhoneiros então. Já falamos do declínio material e simbólico e da baixa autoestima que os acompanha. Ainda falta falar sobre suas escolhas políticas. É muito provável que pesquisas com estes trabalhadores viessem a relativizar bastante o estereótipo que se formou a seu respeito, com base especialmente nas manifestações de apoio a uma intervenção militar e à candidatura de Jair Bolsonaro, ele próprio um militar. Mas por ora temos que nos contentar com este estereótipo grosseiro. Tal como no caso dos trabalhadores americanos estudados por Hochschild, essas escolhas políticas dos caminhoneiros aparentam ser paradoxais na medida em que, uma vez concretizadas (e elas já estão em curso), conduzem à intensificação das pragas que os atormentam e não ao seu alívio.

Ninguém sabe o que quer dizer exatamente “intervenção militar” para estes trabalhadores, mas não parece haver sinais de que se trate de saudades do regime militar de 1964-1985. É mais provável que expresse o “desencantamento com os políticos e com a política em geral” e o anseio por autoridade, que não foi atendido nem pelo arbítrio punitivista dos juízes (conspurcado que está por seu viés cada vez mais abertamente partidarizado) nem muito menos pelo golpe de mão de 2016, que não contou com ações diretas dos militares, mas que foi perpetrado sob a presunção de seu apoio, e para o qual estes foram rapidamente convocados, atendendo positiva e eloquentemente.

Bolsonaro reúne, em princípio, os atributos de autoridade carismática e abertamente autoritária, carregando também, em sintonia com os porta-vozes políticos das igrejas evangélicas, as bandeiras do conservadorismo centradas nos valores tradicionais da família, que são também os da autoridade patriarcal (masculina, heterossexual etc.). Ele não respeita nem os políticos, nem os juízes, nem a imprensa fake news e logo não deve ser confundido com eles (a tática tem a assinatura de Trump). Candidatos à presidência, contudo, devem ter também um discurso sobre a gestão e o desenvolvimento da economia, prometer empregos e, se possível, melhorias na renda das pessoas comuns. Trump sabia perfeitamente disso e tratou de combinar seu discurso anti-estatista, tão caro aos conservadores americanos (mas provavelmente não a muitos conservadores brasileiros mais pobres) não com a linguagem do neoliberalismo globalista e financista das elites, mas sim com promessas de nacionalismo protecionista (e quem apostou que isto era apenas bravata eleitoral quebrou a cara).

Nisso Bolsonaro não poderia estar mais distante de Trump (e, diga-se de passagem, distante também de como os militares conduziram o desenvolvimento econômico durante a ditadura). Ele já admitiu publicamente que economia não é seu forte, e designou como seu porta-voz econômico Paulo Guedes, banqueiro com PhD em economia por Chicago, sacramentando assim seu compromisso com o “mercado” (isto é, com as bancas nacionais e internacionais e com o agronegócio). O pacote inclui também as habituais “privatizações e austeridade fiscal” (isto é, cortes em investimentos sociais); e outras não tão habituais como o compartilhamento da Amazônia com empresários norte-americanos (que diriam os velhos generais de 1964?), entre outras medidas, supostamente voltadas para o desenvolvimento do país[6]. Curiosamente, um programa bastante parecido com aquele que “levou” Temer ao poder em 2016, e não muito distinto daquele que elegeu Fernando Henrique Cardoso duas vezes, há mais de 20 anos, e Fernando Collor há quase trinta.

Os cidadãos e cidadãs brasileiros de menor renda e escolaridade, vulgo os pobres (geralmente agrupando indivíduos de famílias com renda de até dois ou três salários mínimos, a maioria ainda sem acesso ao nível superior de ensino), votaram em pacotes de políticas neoliberais por três vezes nos anos 1990, com Collor e FHC. Mas diante de seus resultados, passaram a rejeitar tenazmente a fórmula nas eleições seguintes e assim o fizeram até 2014. O que as pesquisas eleitorais nos mostram é que, pelo menos até aqui, estes cidadãos e cidadãs mais pobres continuam, na sua maioria, não comprando o pacote ultraliberal e rejeitam a solução autoritária representada por Bolsonaro (em claro contraste com as preferências dos mais abastados e educados). E é só isso o que hoje nos protege do mal maior. Deve ser por isso também que o público mais frequente dos comícios de Bolsonaro seja composto por homens jovens, brancos e de classe média. Isto não quer dizer que ele não tenha também apoio entre cidadãos mais pobres; a sua popularidade entre os caminhoneiros é prova de que tem. Quer dizer – e esta é uma diferença crucial em relação aos EUA – que a população mais pobre no Brasil, seja de direita ou de esquerda, evangélico, católico ou sem religião, na sua maioria sabe que só tem a perder com esta agenda ultraliberal e que, ao contrário, tem muito a ganhar com um estado mais ativista no campo social e que seja capaz de, de fato, gerar empregos e alguma melhoria na renda.

O paradoxo dos caminhoneiros é real: eles protagonizaram um movimento grevista com reivindicações que eram de seus patrões; estes, não por outra razão, também “fizeram greve”, mas negociaram diretamente com o governo, deixando os motoristas na mão. Muitos caminhoneiros parecem apoiar um candidato presidencial que, sabendo ele ou não, se levar a cabo o programa econômico que subscreve nas eleições será o primeiro a prejudicá-los. E finalmente, apoiam uma intervenção militar da qual, se efetivada, serão as primeiras vítimas, caso voltem a realizar greves pelo que entendem ser o seu direito. A verdade que se esconde por trás deste paradoxo é que o “programa de governo” das elites brasileiras, qualquer que seja seu candidato de ocasião, já não é compatível com democracia; só pode ser levado adiante por um governo autoritário, militar ou não, com ou sem eleições, “com Supremo e com tudo”. Para isso, o que há de pior em nossa sociedade e em cada um de nós deve ser convocado para a arena política e contra ela instrumentalizado. O que estamos vivendo já é esse pesadelo autoritário.

 

Alvaro A Comin é Professor do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo.

 

[1] Sobre este aspecto recomenda-se a leitura de Authoritarianism and Polarization in American Politics, da dupla Marc J. Hetherington e Jonathan D. Weiler, publicado em 2009, pela Cambridge University Press.

[2] “With Roseanne Barr gone, will the US working-class be erased from TV?”, The Guardian, edição online, 02/06/2018.

[3]  As informações que se seguem foram colhidos da reportagem de Gabriel Zanlorenssi e Rodolfo Almeida, para o Jornal Nexo, publicação online, em 29/05/2018).

[4]  Caminhoneiro: o novo velho protagonista do Brasil, El Pais, edição brasileira online, publicado em 04/07/2018.

[5] “Autônomo só no nome: Caminhoneiro é explorado por empresas de transporte”, publicado no Blog do jornalista Leonardo Sakamoto, datado de 31/05/2018.

[6] Sobre a agenda econômica de Bolsonaro, veja-se a reportagem de André Barrocal “A caricatura neoliberal e globalizante de Bolsonaro”; Carta Capital, versão online, datado de 16/06/2018.

 

 

 

 

Imagem de divulgação – Equipes da Polícia Rodoviária Federal (PRF) monitoram manifestações promovidas por caminhoneiros no Paraná pela redução do preço do óleo diesel. “https://www.prf.gov.br/agencia/acionada-pela-prf-agu-obtem-liminar-que-proibe-bloqueio-de-rodovias-por-caminhoneiros-no-parana/” Fotos: PRF 21 e 22.mai.2018