A construção do pensamento cardosiano

Resenha

 

por Enrique Carlos Natalino
21 jul. 2023

CARDOSO, Fernando Henrique. Um intelectual na política: memórias. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 

Em Um intelectual na política: memórias, Fernando Henrique Cardoso empreende um inventário da construção de seus alicerces intelectuais desde a juventude, nos anos 1940, até a segunda década do século XXI. Diferentemente de seus livros autobiográficos anteriores, A arte da política (2006), The Accidental President of Brazil (2006) e os Diários da Presidência (2015-2019), Cardoso menciona a intenção de que Um intelectual na Política fosse inspirado nas obras memorialísticas de Norberto Bobbio, pois o filósofo “sabia quando e em quais circunstâncias escrevera seus artigos, livros e apontamentos. Além do mais, sabia pensar” (2021, p. 9). Outra inspiração do sociólogo é o político e diplomata Joaquim Nabuco: “nunca havia escrito à la Nabuco, a quem tanto admiro, sobre minha formação intelectual” (2021, 9. Em outras palavras, o destino de seu mais novo livro é ser um relato sobre a sua trajetória acadêmica e intelectual, tendo como pano de fundo sua vida familiar e sua experiência na política.

Ao longo de treze capítulos, o livro enfatiza três aspectos da trajetória de Cardoso: (i) as instituições e os professores que o influenciaram em sua formação intelectual; (ii) os artigos e os livros que escreveu em diferentes fases de sua jornada de sociólogo, de professor universitário e de intelectual público; (iii) os temas das Ciências Sociais sobre os quais procurou refletir, as pesquisas que realizou e os debates públicos dos quais participou ao longo de sete décadas de vida intelectual e política. O convívio de Cardoso com intelectuais renomados como Florestan Fernandes, Antonio Candido, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, Celso Furtado, Francisco Weffort, Octavio Ianni, José Arthur Giannoti, Roger Bastide, Alain Touraine, Raúl Prebisch, José Medina Echeverria, Albert Hirschman, dentre muitos outros, tem importante destaque ao longo das memórias relatadas no livro.

Nos dois primeiros capítulos, Cardoso narra alguns momentos de sua vivência familiar com militares nacionalistas e getulistas e reconstitui a sua trajetória acadêmica na Universidade de São Paulo (USP) na década de 1950, momento no qual a cidade de São Paulo começava a rivalizar com o Rio de Janeiro pelo posto de centro intelectual do país. Ele ainda conta como iniciou sua vida de sociólogo de campo, participou de pesquisas em favelas, escreveu sobre o papel do negro na sociedade brasileira e foi um dos pioneiros no estudo da mentalidade dos empresários e da visão deles sobre o desenvolvimento nacional.

O capítulo 3 mostra que o pensamento de Cardoso na década de 1960 foi forjado à luz do diálogo com pensadores da corrente econômica nacional-desenvolvimentista, da escola econômica cepalina e da teoria da dependência. A internacionalização de seu pensamento, tema do capítulo 4, se acelerou com sua mudança para o Chile durante o exílio e a convivência em um círculo acadêmico e intelectual mais amplo. Nesse momento, a influência da teoria social francesa em sua formação foi matizada pelo contato com visões diferentes da problemática do desenvolvimento na América Latina.

O capítulo 5 nos auxilia a compreender a inserção de Cardoso no contexto latino-americano de meados dos anos 1960 ao mostrar como se organizava o debate acerca do desenvolvimento latino-americano no rico ambiente intelectual proporcionado pela Comissão Econômica para a América Latina (Cepal), em Santiago do Chile. Em função do exílio e dos obstáculos da ditadura civil-militar, Cardoso internacionalizou sua carreira acadêmica e ampliou sua rede de amigos e colegas no exterior. Uma das provas disso foi a notoriedade recebida com o sucesso da publicação de Dependência e desenvolvimento na América Latina, escrito com o sociólogo chileno Enzo Falleto. Esse trabalho ajudou a alavancar sua carreira acadêmica e sua visibilidade internacional.

Nos capítulos 7 e 8, Fernando Henrique Cardoso explica a decisão de retornar ao Brasil e de construir, juntamente com outros professores perseguidos pelo regime militar, um centro de estudos independente, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Com sua crítica ao regime burocrático-autoritário, ele e outros intelectuais inovaram ao introduzir os temas da sociedade civil, da participação política, da representação partidária e da democracia no campo da esquerda. Cardoso instrumentalizou a sua projeção internacional para ampliar os espaços de ação no campo político, consolidando-se como um intelectual público. O turning point de sua carreira se deu quando intensificou os contatos com o meio político no interior do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido de oposição à ditadura.

Nos capítulos 9, 10 e 11, Cardoso analisa seu pensamento político no período de reconstrução democrática do Brasil. Nos anos 1970, ele não quis abandonar a vida acadêmica e intelectual que desenvolveu nas décadas anteriores para entrar na política institucional. Assim, ele encontrou uma alternativa para si na tentativa de se tornar um intelectual dentro da política. Uma posição ao mesmo tempo confortável e desconfortável: para os intelectuais, sempre seria um político e para os políticos, sempre seria um intelectual. Contudo, por mais difícil que o ambiente podia se apresentar, ele conta ter feito a transição do mundo acadêmico para o mundo do pragmatismo político com muita facilidade.

Nos capítulos 10, 11 e 12 do livro, vê-se como as ideias presentes em seu pensamento político entre as décadas de 1960 e 1980 — sobre a construção de uma democracia liberal no Brasil e a associação da economia brasileira ao capitalismo internacional — serviram de base às suas reflexões acerca da adaptação do Brasil à nova realidade internacional pós-Guerra Fria. Seus livros e ensaios posteriores a 1990, menos científicos e mais pragmáticos, refletiram suas experiências políticas e buscaram o convencimento da opinião pública para as causas que defendia: a redemocratização, a socialdemocracia, as reformas econômicas e a integração do Brasil na globalização.

A aproximação de Cardoso com o pensamento socialdemocrata europeu e a influência do contexto internacional no final da década de 1980, com a crise do mundo socialista e a chegada ao poder de lideranças com projetos econômicos neoliberais, impactaram decisivamente a visão de mundo do sociólogo e o levaram a apoiar um programa reformista a partir da criação de um novo partido, que comungava ideias econômicas liberais com ideias socialdemocratas: o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Cardoso contesta a sua afiliação ao neoliberalismo, embora reconheça a importância de políticas como equilíbrio fiscal, abertura econômica, maior competição e quebra de monopólios estatais.

Nesse período, o pensamento de Cardoso não se distanciou das suas convicções acadêmicas dos anos 1960 e 1970: era possível haver desenvolvimento, modernização e transformação social por meio da integração do Brasil ao mundo. A polêmica acerca da frase “esqueçam o que escrevi”, que teria sido dita em referência à possível mudança de opiniões do intelectual ao chegar ao poder, ajuda a entender a polarização que seu discurso pró-globalização provocou na sociedade brasileira. Apesar da veracidade da frase ser contestada por Cardoso, a versão circulou e continua sendo propagada como um símbolo de sua traição às causas da esquerda e de sua renúncia às teses que havia defendido na fase acadêmica de sua vida.

A geração a que Fernando Henrique Cardoso pertence, nascida logo após a Revolução de 1930, assistiu a um período de intensas transformações econômicas e sociais no Brasil: o processo de industrialização, a urbanização acelerada, a formação de novas classes socais, a modernização do Estado, o crescimento da economia, o boom populacional, o inchaço populacional, a inserção na globalização, a persistência da desigualdade. Desde o começo da sua vida acadêmica, Cardoso já era um homus politicus e não um cientista voltado exclusivamente à produção de um saber desinteressado. A sua contribuição intelectual ultrapassou as fronteiras nacionais e colocou-se em situação de igualdade com as mais avançadas pesquisas em Ciências Sociais nas décadas de 1960 e 1970. Num universo acadêmico controlado por sociólogos europeus e latino-americanos, soube fazer-se ouvir no plano da Sociologia internacional, imprimindo à cultura mundial uma contribuição latino-americana sobre o seu “estar no mundo”.

Um intelectual na política: memórias ajuda a entender a dupla inserção de Fernando Henrique Cardoso na cena pública brasileira. O percurso do seu pensamento mescla-se com a vida intelectual e política brasileira nos últimos setenta anos. Cardoso transitou entre diferentes contextos e refletiu sobre as mudanças e tendências que se processavam no país. Seus estudos sobre escravidão, empresários, desenvolvimento, dependência, autoritarismo, marginalidade e democratização, em sua fase acadêmica, se tornaram clássicos da interpretação do Brasil nos campos da Sociologia e da Ciência Política.

Cardoso não foi o primeiro intelectual a participar do poder no Brasil, mas certamente foi um dos poucos a alcançar a presidência. Mesmo após se tornar um político profissional, inserido dentro das redes de poder como ator político, continuou convivendo com intelectuais, refletindo sobre o país, sobre o mundo e sobre sua própria experiência. Em entrevista para a realização de minha tese doutoral acerca da construção do seu pensamento internacionalista, em janeiro de 2020, Cardoso afirmou que “a única vantagem de viver muito é que você vê muita transformação” (NATALINO, 2020, p. 600).[1]

 

Enrique Carlos Natalino (https://orcid.org/0000-0003-4271-3319?lang=en) é doutor em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais e pesquisador do International Postdoctoral Program (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

 

[1] NATALINO, Enrique Carlos. A construção do pensamento internacionalista de Fernando Henrique Cardoso. Tese (doutorado em Ciência Política) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte 2020.

 

Crédito da imagem: Cardoso em seminário na década de 1970 – Foto: Arquivo Fundação Fernando Henrique Cardoso” (https://fundacaofhc.org.br/arquivo-fernando-henrique-cardoso).