Desdemocratização ou desmanche social?

Resenha

Por Sérgio Costa

12 mar. 2021

Bianchi, Bernardo; Chaloub, Jorge; Rangel, Patricia; Wolf, Frieder Otto (orgs.). Democracy and Brazil: Collapse and Regression. Abingdon: Routledge, 2021.

Não é fácil explicar o que aconteceu e vem acontecendo no Brasil, país que, em menos de uma década, passou de caso bem-sucedido do que Nancy Fraser chamou de neoliberalismo progressista para exemplo paradigmático de autoritarismo necropolítico. Seguramente, serão ainda necessários anos de pesquisa acadêmica para cobrir todas as dimensões e vicissitudes do que aconteceu e vem acontecendo no Brasil desde 2013 e mais marcadamente desde 2015, quando tomou corpo o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, deposta em 2016.

Contudo, é óbvio que a urgência do tema e a necessidade política de reverter a situação existente não permite esperar pelo acúmulo de conhecimentos para um diagnóstico e uma interpretação abrangentes. Cabe reunir evidências e os achados de pesquisa já disponíveis para buscar lançar alguma luz sobre o quadro sombrio e permitir a reorganização das respostas políticas.

O volume Democracy and Brazil: Collapse and Regression, ao reunir contribuições que combinam a alta qualidade acadêmica com o comprometimento político de autoras e autores, é um excelente ponto de partida para tarefa tão premente. Ao contrário de tantas coletâneas que simplesmente juntam, sem articular, contribuições diversas, a presente publicação é, de fato, um livro com começo, meio e fim. O conceito e argumento central que encadeiam as contribuições provindas de disciplinas diversas e que tratam de aspectos específicos do colapso e da regressão democrática é a ideia de desdemocratização (de-democratization) que remonta a Charles Tilly e Wendy Brown. Esboçada na introdução ao volume, a noção de desdemocratização é estudada ao longo de 14 capítulos, em diferentes campos e temas, quais sejam: traços fascistas da guinada à direita, racismo e antirracismo, elites e poder, o contexto do neogolpismo na América Latina, corrupção, crise econômica, estado geral de ânimos, campo educacional, crise urbana, representação política das mulheres, política indígena e ambiental, religião, pós-verdade e o sistema psiquiátrico. Além desses capítulos, um dos editores, em breves mas precisas considerações finais, passa em revista os processos estudados, de sorte a enfatizar a relevância do caso brasileiro para a compreensão do quadro contemporâneo global.

Em cada um destes temas e campos, a desdemocratização é analisada a partir de reconstruções muito cuidadosas dos desenvolvimentos em cada área, o que permite que mesmo um leitor menos familiarizado com os debates específicos de cada campo possa acompanhar o processo de destruição política e institucional que antecede a eleição de Bolsonaro e que é levado ao paroxismo em seu governo.

Por razões cronológicas, a análise desenvolvida nos capítulos termina no primeiro ano de mandato de Bolsonaro, antes, portanto, da eclosão da pandemia de Covid-19 e das mudanças políticas que a acompanham. Descontadas poucas exceções, as conclusões de cada um dos capítulos continuam, contudo, válidas e, em alguns casos, ganharam até maior atualidade.

Extremamente meritória e oportuna, a presente coletânea de artigos não é isenta de deficiências conceituais e analíticas. Assim, o conceito de desdemocratização, mesmo que muito sugestivo e produtivo, apresenta limites para ser aplicado no Brasil. É verdade que Charles Tilly usou o conceito para articular mudanças institucionais e desigualdades sociais, mas é igualmente óbvio que o conceito é mais adequado para discutir o avanço do autoritarismo na área institucional, através, por exemplo, da obliteração de direitos construídos ao longo da democratização para afrodescendentes e indígenas, como mostram os excelentes artigos de Flávia Rios e Ana Guggenheim Coutinho, respectivamente. Já para analisar os processos de avanço do autoritarismo no campo das relações cotidianas ou mesmo no âmbito da comunicação nas redes sociais virtuais, o conceito de desdemocratização ajuda pouco. Afinal, o avanço da direita autoritária nessas esferas assume, em grande medida, as feições de uma democratização e abertura de novas possibilidades de acesso a atores e argumentos, antes ausentes do debate público. Não obstante, estes mesmos atores e temas, como mostram, entre outros, os casos do Movimento Brasil Livre ou Vem Pra Rua, contribuíram para a ascensão da direita radical e antidemocrática e, agora, se colocam, em alguns casos, contra ela. Ou seja, menos que ciclos distintos como pretendido teoricamente, democratização e desdemocratização aparecem, na política empírica, combinadas de forma inseparável e indistinguível.

Outro limite do conceito parece ser a análise dos momentos de ruptura como foi o impeachment de Dilma Rousseff ou mesmo a prisão de Lula com a intenção óbvia de evitar sua candidatura a presidente. Desdemocratização remete a um processo gradual de fechamento institucional. Parece-me difícil enquadrar rupturas institucionais e golpes de Estado, como estudado no capítulo de Lorena Soler e Florencia Prego, dentro do conceito de desdemocratização.

Outro aspecto que merece consideração é o fato de que um dos desafios para entender o que está se dando no Brasil é a inexistência de bons referentes teóricos que permitam articular as disputas no campo político-ideológico e as lutas distributivas por trás da guinada à direita. Esta articulação, que era o coração da análise de autores clássicos como Karl Marx, Rosa Luxemburgo ou Max Weber, desapareceu com a especialização das ciências sociais em subdisciplinas. Não obstante, sem uma análise interseccional que leve em conta como lutas envolvendo grupos de classe, gênero, raça e etnicidade e religião se interpenetram e são articuladas, ideologicamente, não é possível entender a ascensão ao poder no Brasil da direita radical. Estas lutas estão presentes em diferentes capítulos do livro e particularmente no excelente capítulo de Rômulo Lima. Contudo, me parece que a ideia de desdemocratização não permite que elas possam ser entendidas por uma perspectiva que vincule lutas distributivas, envolvendo, por um lado, poder e recursos socioeconômicos e, por outro, a dimensão político-ideológica. É verdade que a contribuição de Barry Cannon à coletânea tangencia esse esforço de articulação. Contudo, ele se apoia teoricamente na teoria do poder social de Michael Mann, que, apesar de indiscutivelmente sólida e robusta, não me parece adequada para estudar a derrubada dos governos liderados pelo PT, partido que, enquanto esteve no poder, não confrontou os interesses mais substantivos das elites econômicas.

Outra limitação da coletânea refere-se à ausência de alguns temas que são chave para entender o contexto brasileiro contemporâneo. Obviamente, isto não pode ser considerado deficiência da obra. Afinal, não é possível tratar de todos os temas e dimensões envolvidos na inflexão de poder tão radical observada no Brasil em um só livro. Não obstante, num volume tão estimulante para o estudo e discussão do quadro contemporâneo, a não consideração de dois temas é particularmente sentida.

A primeira ausência lamentada diz respeito às questões relativas à segurança pública e armamento da população civil, tanto por sua relevância para a eleição de Bolsonaro como para sua sustentação no poder. Mesmo muito antes da invasão do Capitólio encorajada diretamente pelo ex-presidente americano, já era óbvio que o apoio de atores armados, civis ou militares, constitui um elemento central da base de sustentação do autoritarismo de direita em diferentes países. Assim, estudar as relações entre o governo Bolsonaro, os militares, as polícias, as milícias e outros grupos armados constitui esforço indispensável para quem quer compreender as dinâmicas políticas de “colapso e regressão” no Brasil.

Outro aspecto que o livro, dada sua ênfase no diagnóstico e interpretação do que se deu, não pôde considerar mais extensivamente diz respeito a alternativas e possibilidades de saída da crise. Uma das poucas referências diretas a perspectivas de saída da crise no livro é feita no capítulo de Antonio Negri, que abre o livro. Para o consagrado autor italiano, a resistência política à direita radical no Brasil requer a “recomposição política dos comunistas brancos e da população não branca”, recomposição esta, desde já, ativada pelos “movimentos de mulheres” (p. 25). Ainda que oportuna e meritória, a referência de Negri a forças que poderiam derrotar o bolsonarismo é simplista e, certamente, acanhada para cobrir o amplo espectro de atores e interesses daqueles que, hoje, se opõem ao projeto de poder da direita radical. Afinal, o grande desafio que as forças de oposição têm hoje diz respeito precisamente à dificuldade de, num contexto de fragmentação partidária e do envelhecimento político do Partido dos Trabalhadores, articular uma aliança interseccional horizontal que confira igual importância às questões de gênero, raça, classe, meio ambiente, entre outras.

Permitam-me concluir reafirmando que o diálogo crítico com a obra apresentada buscado nesta breve resenha não visa, em nenhuma hipótese, diminuir a importância acadêmica e política desta coletânea. Trata-se de leitura indispensável para quem quer entender o tamanho da desgraça na qual o Brasil se meteu e como chegou até ela.

 

Sérgio Costa é professor titular de sociologia da Freie Universität Berlin e codiretor do Mecila (M. S. Merian Centre Conviviality-Inequality). Seus livros mais recentes são: Um porto na história do capitalismo, em coautoria com G. L. Gonçalves (Routledge, 2019/ Boitempo, 2020), Entre el Atlántico y el Pacífico Negro, em coautoria com M. Góngora-Mera e R. Vera (Iberoamericana, 2019).

 

Bianchi, Bernardo; Chaloub, Jorge; Rangel, Patricia; Wolf, Frieder Otto (orgs.). Democracy and Brazil: Collapse and Regression. Abingdon: Routledge, 2021. Fonte: Routledge.