Um coração que não para de crescer

Resenha

Por Fabio Weintraub

10 nov. 2023 (Atualizado em 24 set. 2024)

 

PIVA, Roberto. Morda meu coração na esquina: poesia reunida de Roberto Piva. Organização de Alcir Pécora. São Paulo: Companhia das Letras, 2023.

 

O que se pode esperar de obras que permanecem em circulação após a morte de seus autores? Sucessivas edições de um mesmo livro asseguram algum tipo de aprimoramento da obra em termos da qualidade de estabelecimento do texto, dos aparatos editoriais, da incorporação da fortuna crítica? Embora haja casos em que a qualidade das edições aumenta com o passar do tempo, não é essa a regra. Além de a morte do escritor fechar definitivamente o campo da autoria (a margem para retoques, acréscimos, supressões, deslocamentos – manobras que o estudo de variantes revela, mas que costumam ser ignoradas pelo grande público), a própria produção de livros, de modo não deliberado, pode gerar erros e levar a edições pouco fidedignas. Às vezes somem palavras, estrofes se partem (ou ficam grudadas), a pontuação se altera. Como poucas editoras investem no estabelecimento de texto (a não ser no caso de obras clássicas, canônicas), tais infidelidades acabam ocorrendo amiúde.

Outras vezes as editoras alteram deliberadamente o texto, por exemplo, quando há censura ou desejo de adaptação às exigências do presente (como se viu, por exemplo, em relação à obra infantojuvenil de Monteiro Lobato, considerada racista aos olhos de hoje).

Além disso, no que se refere a notas, prefácios, ensaios, bibliografia, iconografia, tampouco o percurso de uma obra muitas vezes publicada é de progressivo aperfeiçoamento. Seja por economia ou para atingir um público mais amplo, com frequência se minimiza o aparato crítico, cortam-se notas (que supostamente só interessariam a um público mais reduzido, altamente escolarizado) e se convidam para apresentar as obras, em vez de especialistas, nomes mais “midiáticos”, capazes talvez de arregimentar mais leitores.

Faço essas considerações iniciais a propósito da nova edição da poesia reunida de Roberto Piva, pela primeira vez enfeixada em um único volume, organizada por Alcir Pécora para a Companhia das Letras. Professor do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Pécora já havia organizado a edição anterior das obras reunidas do autor, publicadas pela Editora Globo entre 2005 e 2008, em três volumes, acompanhados de um CD com poemas lidos pelo próprio Piva. Quando organizou essa primeira reunião do Piva, a convite de Joaci Pereira Furtado, então editor da Globo, Pécora já tinha organizado para a mesma empresa as obras reunidas de Hilda Hilst, e ainda viria a organizar para a Funarte a reunião do teatro de Plínio Marcos – três autores que, embora muito diferentes entre si, partilharam a fama de “rebeldes e malditos”.

Especificamente em relação a Piva, entre as duas edições da obra reunida quase duas décadas se passaram. Nesse interregno, Piva morreu; alguns de seus inéditos foram publicados em plaquetes (Carta aos alunos. São Paulo: Biblioteca Roberto Piva, 2016; Poesia & delírio. São Paulo: Córrego, 2017) e livros (Antropofagias e outros escritos. São Paulo: Córrego, 2016). Em Lisboa, em 2018, apareceram a primeira edição portuguesa de Paranoia, com fotos de Mafalda Capela, pela editora Alambique, e a antologia Sombras dançam neste incêndio (org. Sérgio Cohn), pela Oca Editorial; sem falar na proliferação de artigos críticos e trabalhos acadêmicos, entre os quais, a tese de Ibriela Bianca Berlanda Sevilla (Imagens da subjetividade nos arquivos de Roberto Piva. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina, 2015), que, trabalhando nos arquivos do poeta, encontrou dois livros inéditos (Corações de hot dog e Outdoor), nenhum dos quais incluído em Morda meu coração na esquina.

Tendo isso em vista, pode-se dizer que a atual reunião da obra de Piva, em comparação à anterior, publicada pela Globo, parece ter se atualizado de modo insuficiente. O ensaio introdutório de Alcir Pécora limita-se a retocar ligeiramente as introduções, excelentes por sinal, que ele já havia escrito para os três volumes da Globo, acrescidas de um esclarecimento inicial em que ele menciona a inclusão, no fim do volume, dos posfácios de Eliane Robert de Moraes e Davi Arrigucci Jr., os mesmos publicados na reunião anterior, e de um texto novo de Cláudio Willer, autor que também posfaciara o primeiro volume da Globo, Um estrangeiro na legião (2005). Além disso, Pécora também se serve de um depoimento do cineasta Ugo Giorgetti, amigo de Piva e diretor de um documentário do qual ele participa (Uma outra cidade, de 2000), para falar da formação do poeta, marcada por uma atitude dândi e antiburguesa, de seu contato com o filósofo Vicente Ferreira da Silva (1916-1963) e de sua relação com a cidade de São Paulo.

Um dos pontos mais importantes dessa “nova” (em termos) organização diz respeito à parcela de poemas inéditos (na verdade, de poemas éditos, publicados postumamente), que costuma ser um dos principais atrativos em coletâneas dessa natureza. Morda meu coração na esquina contém 14 poemas escolhidos por Pécora e pela editora Alice Sant’Anna, com base exclusivamente no critério do gosto pessoal. Por precaução, tais poemas foram denominados “fragmentos poéticos”, considerando o inacabamento decorrente do fato de não terem sido revistos nem ordenados pelo autor para publicação sob a forma de livro (embora o fragmento, como forma composicional, também apareça na obra que Piva publicou em vida…).

Os selecionadores não esclarecem qual a fonte de que se serviram para escolher e ordenar os poemas póstumos, sendo todos eles retirados do livro Antropofagias e outros escritos, organizado e publicado por Gabriel Kolyniak, poeta, amigo do Piva e um dos responsáveis pelo projeto de catalogação e conservação de seu acervo, que se encontra em processo de transferência para o Centro de Documentação Cultural Alexandre Eulálio (CEDAE), da Unicamp. A sequência dos poemas também é a mesma adotada na antologia-fonte.

Pécora expõe sua dúvida quanto ao fato de se Piva daria esses poemas como finalizados, o que parece justo. Mas, ao mesmo tempo, não menciona nem inclui na reunião livros organizados por Piva e ainda inéditos, como Corações de hot dog e Outdoors, donde a impressão, para voltar ao início deste texto, de que a organização levou pouco em conta a pesquisa sobre a obra do autor realizada na última década e meia.

Afora essa dessintonia com os desdobramentos mais recentes da pesquisa em torno de Piva, o volume ora publicado pela Companhia das Letras também parece atestar pouca familiaridade com o pensamento e as concepções estéticas defendidas pelo autor em termos mais gerais – o que se revela em aspectos que extrapolam a organização dos textos, como a capa e o projeto gráfico, assinados por Elisa von Randow. Diferentemente das capas de outras antologias de autores associados, como Piva, à “poesia marginal”, como Cacaso, Ana Cristina, Waly Salomão e Paulo Leminski, em que a imagem de capa se apoiava em algum elemento emblemático da imagem pública dos poetas (como o bigode de Leminski ou os óculos de Cacaso), a capa gráfica de Morda meu coração na esquina, apoiada em uma concepção clean e sóbria, com o sobrenome do autor em letras garrafais sem serifa, parece antes evocar um poema visual concretista. Levando em conta as críticas de Piva ao racionalismo construtivo, à “estética cabaço” das “vanguardinhas de colégio de freira”, como o poeta costumava brincar, a escolha da capa parece contradizer o trabalho de um artista afeito à anarquia e aos excessos (“A estrada do excesso leva ao palácio da sabedoria”, verso de Blake que Piva costumava repetir como uma espécie de mantra).

E o que pensar da reprodução de fotos de Wesley Duke Lee, originalmente publicadas em diálogo com os poemas de Paranoia (1963), que agora aparecem em número reduzido (das 76 fotos do livro de estreia, foram aproveitadas apenas 10, mais um retrato de Piva nos anos 1960), no começo do volume, longe dos poemas a que elas se referiam? No lugar do contraponto criterioso e surpreendente entre imagem verbal e imagem visual, temos agora, salvo engano, um uso eminentemente decorativo e imotivado.

Quanto aos paratextos agrupados no fim do volume, após os posfácios, encontra-se uma útil cronologia feita por Érico Melo, seguida de sugestões de leituras (de livros, artigos, entrevistas) e filmes, mais um índice de títulos e primeiros versos. Novamente aqui, em relação à reunião anterior da obra piviana, parece ter havido certo empobrecimento. Antes, a bibliografia do autor incluía uma lista exaustiva de todos os seus títulos (livros, plaquetes, artigos para jornais, periódicos etc., reedições), e das traduções para o espanhol, inglês e francês, informação que agora só aparece de modo incompleto na cronologia. Do mesmo modo, excetuando os dados que constam da cronologia, a data das publicações originais não aparece junto dos textos nem no sumário, como é de praxe. Para saber que a “Ode a Fernando Pessoa”, poema que abre a coletânea, foi originalmente publicado em 1961, sob a forma de plaquete, por Massao Ohno, o leitor terá de caçar essa informação na cronologia.

A poesia de Roberto Piva é complexa e multifária: atravessa fases, lança mão de variados procedimentos expressivos (do verso longo ao fragmento, passando pelo poema em prosa, pela colagem, pelo manifesto), dialoga com distintos interlocutores, acolhe variados temas e motivos – do combate (homo)erótico-amoroso à celebração dos direitos não humanos do planeta. Os estudos críticos que ela tem ensejado vêm crescendo nos últimos anos, debruçando-se ora sobre a relação entre corpo e cidade, ora sobre a intertextualidade (a polêmica filiação ao surrealismo, à literatura beat, ao modernismo brasileiro), ora sobre a dimensão ecológico-xamânica… E um mesmo aspecto pode render diferentes abordagens, como se vê, por exemplo, no fim do ensaio de Pécora, que decompõe retoricamente a poesia étnico-xamânica de Piva mostrando como nela as imagens nada convencionais remontam a convenções da poesia pastoril e a procedimentos associados a determinados loci clássicos, revelando, por trás da celebração “do caos e da devassidão desencadeados pelo xamã”, um ideal de civilidade e mesmo de cortesania contrário às formas de assujeitamento da vida urbana moderna.

Mesmo assim, há aspectos ainda pouco explorados no campo da crítica, como o inconfundível humor piviano, presente sobretudo nos livros publicados nos anos 1970, sem falar na possibilidade de novas leituras suscitadas por interrogações do presente, como a importância dos povos originários para deter a catástrofe ambiental (intuição que já abastecia os versos de Piva desde os anos 1980), as novas formas de dissidência de gênero e sexualidade (e de ação afirmativa em favor das minorias), a vigilância panóptica dos ambientes digitais etc. – interrogações que reverberam, ainda que de modo indireto, no arsenal de imagens agenciadas pelo poeta.

Por tudo isso, a reunião de sua obra deve se colocar à altura das exigências postas por ela. Que o corpus piviano, erótico e bélico, se amplie em breve, incorporando uma quantidade mais significativa de inéditos, e o aparato crítico das coletâneas se atualize, mencionando os achados das pesquisas mais recentes para que Piva siga excitando de modo prolongado as novas gerações de leitores.

 

Fabio Weintraub [https://orcid.org/0000-0001-9226-641X] é doutor em Letras pela Universidade de São Paulo. Foi professor visitante do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e professor colaborador da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Poeta e editor, foi também o responsável pela publicação do livro Ciclones, de Roberto Piva, pela editora Nankin, em 1997. E-mail: fabioweintraub@gmail.com.