Por Arilson Favareto e Pedro Gilberto Cavalcante Filho
29 jun. 2020
Muito tem sido dito sobre a pandemia da Covid-19 nos grandes centros urbanos. A mesma atenção não tem sido dispensada a outro drama: aquele que envolve as áreas rurais e interioranas. No momento em que este texto é escrito, ainda são muito incertas as projeções de contaminações e mortes no país. Tudo é mais nebuloso porque a testagem é, além de insuficiente, implementada de maneira pouco uniforme. E, como se sabe, o número de subnotificações e de mortes atribuídas a outras doenças respiratórias é extremamente alto, gerando distorções no monitoramento dos dados.
Ainda assim, pode-se dizer que estamos em uma quarta etapa da dinâmica espacial das contaminações. Após o início dos casos nos bairros mais ricos das grandes cidades o epicentro se deslocou para as periferias, e dali para as cidades médias do interior, seguindo os vetores da rede de transportes e de conectividade física. Na etapa atual prevalece a heterogeneidade: os números seguem crescendo em âmbito nacional; metade dos novos casos acontecem no Nordeste; e coexistem situações de regiões onde o número de casos ainda aumenta em ritmo alarmante, enquanto em outras a curva arrefece.[1] O traço inegável é a interiorização da pandemia.
Embora oficialmente a população rural brasileira esteja em torno de 16%, se ampliamos o olhar para os pequenos municípios e as regiões de características rurais, ainda que com presença de cidades médias, chegamos a um terço dos habitantes do país, onde vive metade do total das pessoas mais pobres. Em termos espaciais estas áreas envolvem a maior parte do território nacional. Mais ainda, nelas estão povos indígenas e comunidades tradicionais sobre os quais os casos registrados crescem rapidamente e podem ter efeitos simplesmente devastadores.[2]
O primeiro impacto da pandemia nestas áreas é, portanto, de ordem sanitária e humanitária. Tabulações especiais que produzimos a partir do Índice de Vulnerabilidade dos Municípios à Covid-19, elaborado pelo Instituto Votorantim, mostram que, das 163 microrregiões de características predominantemente rurais no Brasil, 99 estavam em situação de alta vulnerabilidade. Isso leva em conta informações sobre as condições sociais das famílias, dados da economia local, capacidade de resposta do poder publico, e características do sistema de saúde. E das 215 microrregiões que também têm características rurais, mas contam com a presença de ao menos um centro urbano de maior porte, simplesmente 119 se encontravam na mesma condição; a maioria, portanto, em ambos os casos.[3]
Se por um lado, a estrutura e a organização do sistema de saúde nessas áreas é mais débil, esse deslocamento do front de combate à pandemia para as regiões interioranas deveria ter tornado mais fácil monitorar preventivamente casos potenciais de contágio, comparativamente ao Brasil metropolitano, onde a intensidade das interações e a frequência e distância dos deslocamentos são maiores. Naquele mesmo artigo publicado em O Estado de S. Paulo dias atrás mencionamos várias medidas, e quase nada daquilo vem sendo feito de maneira organizada nacionalmente.
Há exceções em municípios e unidades da federação, como o estado do Piauí, que adotou medidas de busca ativa e outras que poderiam estar sendo aplicadas nos demais locais, de maneira mais bem coordenada entre os vários entes federativos. Mas, como regra, o Brasil parece ter perdido dupla oportunidade de aprendizado: com a experiência dos países asiáticos e europeus, onde a pandemia chegou antes, e com a própria experiência do país, pois havia tempo para tomar medidas preventivas nas regiões interioranas, após o primeiro caso oficialmente registrado em São Paulo. Resta esperar que não ocorra uma nova onda de casos, agora que medidas de relaxamento do isolamento começam a ser tomadas, de forma no mínimo controversa, nos maiores centros; ou que o movimento de interiorização da pandemia não continue em direção às áreas mais frágeis, pois as grandes cidades, até aqui mais afetadas, nem são os lugares com maior vulnerabilidade.
Ainda sobre a dimensão sanitária e humanitária, seria fundamental que estivessem sendo organizados protocolos de contingência para o caso de novas situações ocorrerem nos próximos meses, com medidas adaptadas às características territoriais de municípios e regiões. Isso deveria permitir uma resposta mais rápida e ágil para temas como: garantia de suprimento de itens e equipamentos de segurança e saúde; barreiras sanitárias e monitoramento informatizado e integrado de fluxos de pessoas e casos; rede de proteção social acessível de forma mais simplificada para pessoas vulneráveis; atendimento em escala regional no caso de áreas com menor infraestrutura hospitalar. Estes são apenas alguns aspectos sobre os quais enfrentamos problemas e para os quais já há algum aprendizado. Infelizmente, em vez disso, as preocupações têm se voltado mais a questões elementares e imediatas, como garantir que haja informação pública confiável sobre contaminações e mortes, ou que o relaxamento das restrições não ponha a perder o pouco que se conseguiu até aqui no controle da doença.
O segundo impacto da pandemia diz respeito à dimensão demográfica. Repete-se aqui, em menor proporção, algo visto em outros países como a Índia, com um movimento de retorno de expressivos contingentes populacionais, dos grandes centros para as regiões de origem destas pessoas. No Brasil o número é mais limitado, obviamente, mas foi significativo o número de ônibus clandestinos e outras formas de deslocamento em direção ao interior do país, em muito casos inclusive driblando barreiras sanitárias.
O tempo dirá se esse é um fenômeno temporário ou mais duradouro. A nova situação precisará ser devidamente monitorada. De toda forma, as cidades médias e os municípios de pequeno porte situados em seu entorno já vinham concentrando o crescimento populacional nas últimas duas décadas, algo que deve se acentuar agora. Isso, no curto prazo, já deve ser o suficiente para onerar ainda mais os sistemas de saúde e de assistência já débeis das áreas interioranas. Relatos de gestores de pequenos municípios dão conta de que isso vem ocorrendo em dimensão preocupante.[4] No longo prazo, pode repercutir também sob a forma de maior pressão sobre redes de proteção social nessas áreas, bastante sobrecarregadas, como bem o demonstra a fila de espera para programas como o Bolsa Família.
Isso leva ao terceiro impacto: o provável agravamento da pobreza nas regiões mais pobres do Brasil rural. Estimativas iniciais e muito cautelosas da Cepal falavam em um aumento da pobreza na ordem de 5% na América Latina, com maior incidência justamente nas áreas rurais. A FAO estima que o impacto da pandemia sobre a fome no mundo pode levar à mesma situação em que estávamos vinte anos atrás.[5]
Pesquisa do Instituto de Estudios Peruanos realizada com famílias de todo o país mostrou que em nada menos do que 90% dos domicílios rurais as famílias afirmam ter comido menos e ter comido com menos qualidade durante a pandemia. E em 60% dos lares faltou alimentos ao menos uma vez.[6] No caso brasileiro os números talvez sejam menos expressivos. Ainda não há dados. Mas são inúmeros os relatos de que o fechamento de escolas, por exemplo, afetou duplamente as famílias pobres e as famílias de agricultores: nas regiões mais vulneráveis, é nas escolas que as crianças muitas vezes recebem a única refeição diária de bom valor nutritivo a que podem ter acesso; e é também no fornecimento de produtos para programas de aquisição de alimentos e compras públicas que muitas destas famílias obtêm parte expressiva de sua renda monetária; isso, associado a interdição, restrições ou simples diminuição de demanda em feiras e outras formas de venda direta, está afetando decisivamente a situação social e econômica dessas famílias. Vale lembrar que desde 2015 a pobreza havia voltado a crescer a passos rápidos no país e especialistas já consideram provável que o país volte a figurar no chamado Mapa da Fome. Segundo as agências do Sistema das Nações Unidas, novos pobres devem surgir nos centros urbanos, e nas áreas rurais a perspectiva é de aprofundamento e agudização da pobreza.
Para fazer frente à nova situação serão necessários um adequado monitoramento da nova situação criada com os impactos da pandemia, olhando para os aspectos econômicos, sociais e demográficos mencionados, e, claro, recursos adicionais para as políticas sociais. Ocorre que, como se sabe, o país já vivia situação de congelamento de gastos e restrição fiscal, agora agravada com a derrubada brutal das expectativas de crescimento econômico. Fala-se em retração de 8% em 2020 e os números podem piorar – tensões aumentam, investimentos diminuem, é o sintomático subtítulo do recém-divulgado relatório do Banco Mundial.[7]
Diante dessas restrições, há quem diga que, passado o momento das ajudas emergenciais, o Estado terá que ser ainda mais seletivo em seus gastos e que a agenda da austeridade precisaria retornar com mais força. A solução estaria em ajustar a focalização das políticas sociais. De outro lado, estão os que clamam por uma extensão e mesmo uma ampliação de medidas adotadas, como a renda emergencial, indo em direção a uma garantia mais estável como programa de renda mínima. Como pano de fundo do debate está o financiamento do Estado e os contornos e as modalidades de atuação da rede proteção social – isto é, não só sua cobertura, mas também seu financiamento e como coordenar melhor instrumentos de garantia de renda com a ampliação de oportunidades de inclusão em um contexto de retração econômica.
O quarto impacto deve ser sentido nas regiões mais ricas do Brasil rural, onde predomina a agricultura comercial. Nota técnica produzida por pesquisadores da Embrapa e da Unicamp, publicada semanas atrás,[8] dava sinais de que não havia, ainda, graves problemas associados à produção e distribuição dos produtos agropecuários, ao menos na mesma medida do que se passou, por exemplo, nos EUA, onde cadeias produtivas foram desestruturadas, levando à coexistência de crises localizadas de abastecimento, em algumas áreas, e descarte de animais e produtos, em outras, em proporções gigantescas.[9] Por aqui, no plano imediato, há dúvidas a respeito da oferta de crédito, e também quanto à disponibilidade de mão de obra em atividades mais intensivas de trabalho, por causa das restrições a deslocamentos de trabalhadores.
Ainda quanto ao abastecimento alimentar, além dos problemas mencionados mais acima e envolvendo mercados locais e de compras públicas de produtos da agricultura familiar, é preciso notar que os estoques de alimentos estão em nível crítico, o mais baixo em anos, refletindo as novas orientações governamentais sobre o tema, nas quais há menos atenção para os estoques reguladores. E o financiamento das culturas destinadas ao consumo das famílias vem perdendo espaço, sistematicamente, para os produtos de exportação. Não há exatamente uma crise de oferta, mas a alta de preços associados à alimentação nos domicílios já superava, significativamente, a variação do índice geral, o que resulta em óbvia penalização dos mais pobres. Isso, somado ao desmonte de políticas específicas para a agricultura familiar resulta em quadro nada alentador.
Há, ainda, ao menos três sombras no horizonte sobre as perspectivas do setor, cuja combinação pode ser perigosa. A alta do dólar vinha sendo vista como benéfica para as exportações, mas agora sabe-se que a retração da atividade econômica é brutal e isso tende a afetar a demanda mundial, com possibilidade de alguma repercussão desfavorável para preços praticados no mercado internacional e para volumes comercializados. Na direção oposta, insumos e custos de produção podem se tornar mais caros, por causa da situação cambial atual, o que afetaria margens de lucro levando a maior seletividade e concentração entre produtores. E há um fator de ordem política: a reputação brasileira em queda livre. No caso europeu, é crescente a preocupação com o desmatamento da Amazônia, tema relevante para o destino do acordo comercial com o Mercosul. No caso chinês, para onde vão oito em cada dez toneladas da soja brasileira, manifestações irresponsáveis de altos quadros do governo federal sobre aquele país causaram desconforto diplomático que em nada ajuda nas relações entre os dois países e já dividem, ainda que de maneira contida, as lideranças do agronegócio.[10] O episódio da reunião ministerial cujo conteúdo veio a público no auge da pandemia só colocou mais lenha nessa fogueira.
O quinto impacto diz respeito ao comportamento oportunista de vários agentes nesse contexto. Impossível não mencionar a desastrosa manifestação do ministro do Meio Ambiente na mesma reunião ministerial, afirmando que se deveria aproveitar que as atenções se voltavam à Covid-19 para fazer “passar a boiada”, alegoria ou ato falho usado para ilustrar o desejo de aprovar, sem debate público, um conjunto de normas, cujo sentido geral é flexibilizar e afrouxar ainda mais o aparato regulatório e de fiscalização ambiental. Não por acaso os números do desmatamento na Amazônia recentemente divulgados apontam um aumento de 170% na supressão da floresta comparado com abril do ano passado. Como disse alguém, madeireiros não fazem home office.
Somados, estes cinco efeitos de curto prazo da pandemia podem trazer significativas dificuldades em todas as frentes. É difícil nesse momento falar em tendências claras. Sequer sabemos a duração da crise ou se novas medidas de isolamento terão que ser tomadas nos próximos meses. A única coisa certa é que no futuro próximo as ideias de risco e de incerteza estarão muito mais presentes do que antes e vão forçar reposicionamentos dos agentes públicos e privados. Qual vai ser o sentido desses ajustes é algo impossível de dizer com precisão.
O sexto efeito da pandemia diz respeito, portanto, às perspectivas de médio prazo do setor agroalimentar. Quanto a isso, há duas direções presentes no debate público.
De um lado, abre-se maior espaço para uma reestruturação das formas de produção, distribuição e consumo, fortalecendo cadeias curtas e sistemas localizados, com prioridade para o fornecimento de produtores locais, e novos padrões de consumo orientados pela busca por alimentos mais saudáveis, como assinalado por Philip McMichael, uma das maiores autoridades no tema, em breve texto publicado no blog da International Sociological Association.[11] Na mesma linha, há também a expectativa de que o momento de maior sensibilidade possa favorecer medidas que diminuam o consumo global de carnes ou que alterem as formas de produção de proteína animal, responsáveis por significativo impacto ambiental. Como lembrou Ricardo Abramovay em seminário organizado recentemente pelo Cebrap,[12] se os animais ruminantes, cuja carne é item de consumo cada vez mais presente na dieta da população mundial, fossem um país, ele seria o segundo no ranking das emissões de gases associados ao aquecimento global. E o Brasil não só é um dos maiores exportadores de carnes, como também um dos campeões na produção da soja, cujo destino é a alimentação desses animais em outros países. Ora, a expansão da soja é um dos vetores de mudança no uso do solo no Brasil. E o desmatamento é o grande vilão brasileiro das emissões, além de ser um fator responsável pelo contato humano com agentes patogênicos para os quais os organismos humanos e as tecnologias disponíveis não estão preparados, justamente o que aconteceu com o coronavírus. Mais ainda, lembra ele, outras carnes de não ruminantes, como suínos e frangos, são produzidas sob forte padronização dos animais e largo uso de antibióticos. Isso tem tornado os frigoríficos locais propícios para ao surgimento e disseminação de doenças zoonóticas com efeitos terríveis para animais e humanos.
Ao mesmo tempo, em direção oposta, há quem sustente que, neste contexto, seria um brutal equívoco rever as bases de nosso sistema agroalimentar, tido por muitos como responsável pela estabilidade e crescente oferta de alimentos nas últimas décadas. Essa possibilidade também é admitida no artigo de McMichael: ele menciona movimentos nesta direção sendo adotados por grandes corporações e por parte dos organismos multilaterais. Nesse segundo caminho os ajustes associados à gestão dos riscos e às preocupações com a saúde dos alimentos seriam feitos reforçando a governança centralizada dos sistemas alimentares mundiais, e não privilegiando os sistemas locais e novas formas de produção.
Paradoxalmente, seria uma pena, mas não seria surpresa se ambos os prognósticos se concretizarem. Isto é, nada impede que, nos anos que virão, sejam reforçadas e ampliadas iniciativas localizadas, aumentando o já significativo arquipélago de experiências apoiadas em formas variadas de inclusão, sustentabilidade e fortalecimento de vínculos entre produtores e consumidores, como sinalizado pela primeira linha de argumentos sobre o futuro. Mas também não é improvável que, como imaginado na segunda direção mencionada, simultaneamente ocorra maior concentração nas grandes cadeias globais, motivada pelas dificuldades financeiras de pequenos e médios produtores e empresas, substituição de trabalho humano por máquinas e trabalho artificial, de forma a diminuir certos riscos de contaminação, e ampliação do consumo de alimentos ultraprocessados, que podem ser armazenados por maior tempo.
O problema é que tal combinação deixará totalmente em aberto o que fazer com as duas grandes agendas que nos põem em uma encruzilhada civilizatória e que tem tudo a ver com a crise desencadeada com a pandemia: as desigualdades sociais e as mudanças climáticas.
Para a agenda climática inovações localizadas não são mais suficientes. Nunca houve tanta produção orgânica e agroecológica, jamais se fez tanta certificação socioambiental, o uso de energias renováveis bate recordes e o número de experiências inovadoras em circuitos curtos de produção e comercialização cresce a cada dia. Ao mesmo tempo as emissões de gases estufa no setor agroalimentar, já então responsável por metade das emissões mundiais, continuavam crescendo, a devastação das florestas caminhava a passos largos, a erosão da biodiversidade idem, e a lista poderia ir ainda muito mais longe, evidenciando como a soma dos extremos nesse paradoxo está longe de levar a resultado positivo, revelando os limites do gradualismo nas mudanças em curso.
Para a agenda social, o aumento da desigualdade e a volta da pobreza e da fome já exigiam uma resposta inovadora antes da crise. Mas havia certa tendência em tentar repetir fórmulas passadas. Com maior demanda e severa diminuição do espaço fiscal deveria estar claro que não se trata somente de retomar programas de transferência de renda em maior escala, ainda que isso seja extremamente necessário. O problema é que nossos modelos econômicos e produtivos vêm produzindo estruturalmente cada vez mais desigualdade e mais demanda para políticas sociais, como mostram os influentes trabalhos de Thomas Piketty. A máxima segundo a qual não se deve dar o peixe e sim ensinar a pescar perde cada vez mais a validade, pois mesmo exímios pescadores nada podem fazer em águas onde não há o que fisgar.
Por isso o sétimo e último efeito da pandemia, corolário dos anteriores, só pode ser a necessidade de reinventar algo em nossos modelos de organização social, incluindo aí nossa matriz produtiva, o contrato social que envolve a extensão e o teor do uso do fundo público, e as modalidades de relação entre Estado, sociedade e mercado. Seja porque, sob estes aspectos, o que foi experimentado já evidenciou seus limites. Ou porque o novo e mais dramático contexto não permite simplesmente repetir caminhos já trilhados. Neste quadro, é a própria ideia do que são bens públicos e de com eles devem ser garantidos em um contexto de maior risco e incerteza o que deveria estar no centro das preocupações. Não é inimaginável que situações como a atual se repitam no futuro. E não teremos aprendido muito se não houver novas respostas para ao menos três perguntas.
Como sustentar a necessária expansão e estabilidade das redes de proteção social de forma duradoura em um contexto de crescente demanda? É das finalidades do Estado que se trata, primordialmente, e não só do volume de gastos. O tamanho e o formato do financiamento do Estado devem ser definidos em função disso, e não o contrário. O Brasil não é um país pobre. Mas isso não é o mesmo que dizer que não há problemas no financiamento do Estado. A questão é Estado para quê, e financiado como. Por isso não é plausível que depois de vivermos todo o drama social e humanitário da pandemia, instrumentos absolutamente estratégicos como a Reforma Tributária, que deve entrar em discussão mais cedo ou mais tarde no Congresso Nacional, sejam definidos pensando-se prioritariamente em simplificação do sistema de arrecadação. Tampouco é razoável concentrar o debate somente na focalização, como se fosse possível aumentar a coesão social restringindo cada vez mais o foco das políticas sociais. Igualmente insuficiente é a ilusão de apenas repetir o mix de políticas e programas posto em prática duas décadas atrás: porque o contexto é mais duro, a demanda é maior, e porque mesmo aquilo que vinha tendo sucesso mostrou limites.
Como aproximar as ajudas emergenciais ou permanentes de formas de inclusão produtiva verdadeiramente promissoras e consistentes? Em momentos assim sempre vêm à mesa soluções como a retomada de grandes obras de infraestrutura. Por certo se trata de alternativa com forte impacto imediato sobre o mercado de trabalho. Mas em geral elas são caras, criam empregos temporários e de baixa remuneração, e muitas têm alto impacto ambiental. Igual importância deveria ser dada a atividades apoiadas em novas formas de uso dos recursos naturais, como remunerar populações vulneráveis pela conservação da natureza ou pela regeneração de áreas degradadas. Na mesma direção, porque não pensar em formas inovadoras de ampliação de infraestrutura social, com maior oferta de serviços de educação, saúde e cuidados nas áreas mais vulneráveis, aproveitando que recursos humanos ali são mais baratos? A quem possa ver nisso proposta descabida, vale lembrar que Amartya Sen, Nobel de Economia, há mais de duas décadas já chamava a atenção para essa possibilidade como via para o desenvolvimento, apoiado na ideia de uma economia dos custos relativos. Esse reenquadramento dos temas permitiria pôr fim à dicotomia envolvendo políticas sociais e produtivas, ou à tricotomia que agrega, a isso, a agenda da conservação ambiental. São caminhos inovadores e promissores para promover coordenação e integração de esforços e otimizar recursos públicos.
Finalmente, a terceira pergunta: importa saber se o Brasil continuará apostando em uma trajetória de crescente dependência da exportação de commodities agropecuárias ou se será capaz de inaugurar um novo ciclo, que permita maior diversificação de nossas forças produtivas, revertendo em parte a desindustrialização das últimas décadas; não o velho industrialismo, mas um modelo menos intensivo em recursos naturais, mais apoiado em conhecimento compatível com a conservação da natureza, e que traga outra perspectiva de inserção internacional, menos subordinada e mais sintonizada com os desafios do século XXI. Claro que seguirá sendo fundamental valorizar nossa agricultura comercial e ver nela um trunfo que não pode ser desperdiçado; mas também é tempo de perceber que é ruim para o país e para o próprio agronegócio a forma como essa produção vem, em grande medida, sendo feita e o nível de dependência que existe sobre ela. Não é suficiente falar dos efeitos agregados da agropecuária ou apontar que este é o segmento que tem tido um desempenho satisfatório em momentos de crise. Esses aspectos não devem obscurecer o fato de que a tendência é de menos empregos, justamente pelas inovações tecnológicas; que não há casos de países com crescimento duradouro e altos níveis de bem-estar que dependam tanto de commodities; e que os custos ambientais do modelo de desenvolvimento brasileiro vêm rebaixando o prestígio do país, com efeitos negativos para a possibilidade de que exerça algum tipo de soft power na nova geopolítica internacional.
As respostas a essas três perguntas é que darão os contornos do tipo de contrato social e do estilo do capitalismo brasileiro nas próximas décadas. Elas envolvem, é claro, o destino da agricultura brasileira e dos recursos humanos e naturais de nossas áreas rurais e interioranas. Mas sua importância vai bem além disso. Pois se trata de decisões que afetam a sociedade e o modelo de desenvolvimento do país, pelo número de pessoas envolvidas e pelo potencial impacto que representam sobre o bem-estar, sobre a economia e sobre o meio ambiente.
[1] Os dados oficiais e sua distribuição espacial atualizados podem ser encontrados em https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 15/06/2020.
[2] De Paula, L. R.; Rosalen, J. “Uma visualização da pandemia da Covid-19 entre povos indígenas no Brasil a partir dos Boletins Epidemiológicos da SESAI”. Disponível em: http://www.aba.abant.org.br/files/20200601_5ed561c92875e.pdf. Acesso em: 15/06/2020.
[3] Favareto, A.; Lotta, G.; Andreotti, A. C.; Cavalcante filho, P. “A expansão da Covid-19 pelo Brasil rural e interiorano e seus desafios”. O Estado de S. Paulo. Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/a-expansao-da-covid-19-pelo-brasil-rural-e-interiorano-e-seus-desafios/. Acesso em: 15/06/2000.
[4] Exemplo disso são os relatos de gestores municipais em seminário promovido pelo Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV, abordando os impactos da pandemia em pequenos municípios. Disponível em: https://www.facebook.com/eparlamento/videos/1208100589529809. Acesso em: 26/06/2020.
[5] Cepal/FAO. “Cómo evitar que la crisis del Covid 19 se transforme en uma crisis alimentaria – acciones urgentes contra el hambre en América Latina y el Caribe”. Disponível em: https://www.cepal.org/es/publicaciones/45702-como-evitar-que-la-crisis-covid-19-se-transforme-crisis-alimentaria-acciones. Acesso em: 15/06/2020.
[6] Prensa Latina. “El hambre – aliado estratégico de la Covid-19 en Perú”. Disponível em: https://www.prensa-latina.cu/index.php?o=rn&id=372080&SEO=el-hambre-aliado-estrategico-de-la-covid-19-en-peru. Acesso em: 26/06/2020.
[7] Banco Mundial. “Perspectivas econômicas mundiais – tensões aumentam, investimentos diminuem”. Disponível em: http://pubdocs.worldbank.org/en/129701555427566127/Global-Economic-Prospects-June-2019-Regional-Overview-LAC-PT.pdf. Acesso em: 15/06/2020.
[8] Vieira, P. A.; Buainain, A. M.; Henz, G.; Contini, E.; Grundling, R. “Os riscos do agro brasileiro em tempos de Covid-19”. Disponível em: https://www.forumdofuturo.org/dialogo-agricultura-e-sociedade/os-riscos-do-agro-brasileiro-em-tempos-de-covid-19/. Acesso em: 15/06/2020.
[9] O Estado de S. Paulo. “Vírus invade zona rural, base eleitoral de Trump, e afeta produção de comida”. Disponível em: https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,virus-invade-zona-rural-base-eleitoral-de-trump-e-afeta-producao-de-comida,70003305218. Acesso em: 15/06/2000.
[10] Girardi, G. “‘Não precisa passar as coisas de baciada. Pega mal pro agro’, diz liderança do agronegócio”. O Estado de S. Paulo. Disponível em: https://sustentabilidade.estadao.com.br/blogs/ambiente-se/nao-precisa-passar-as-coisas-de-baciada-pega-mal-pro-agro-diz-lideranca-do-agronegocio/. Acesso em: 15/06/2000.
[11] McMichael, P. “Covid-19: Implications on our ‘Broken Food System’”. Disponível em: https://www.isa-agrifood.com/post/covid-19-implications-on-our-broken-food-system. Acesso em: 15/06/2020.
[12] Abramovay, R. “Agenda ambiental no contexto da pandemia do Coronavírus”. Apresentação realizada no Seminário Cebrap realizado em junho de 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HCKxDC8hylc. Acesso em: 15/06/2020.
Sobre os autores
Arilson Favareto é sociólogo, doutor em ciência ambiental, professor da UFABC e pesquisador do Cebrap.
Pedro Gilberto Cavalcante Filho é economista, doutorando em desenvolvimento econômico pela Unicamp.
Cedro de São João, Baixo São Francisco, Sergipe. Foto Nario Barbosa.