Reflexões sobre a invenção de um projeto nacional de desenvolvimento para o século XXI

Resenha

 

por Alexandre Abdal
2 jun. 2023

 

Rossini, Gabriel; Cardoso, Fernanda; Favareto, Arilson. Democracia, Desenvolvimento e Sustentabilidade: perspectivas teóricas e desafios. Santo André: UFABC, 2022. Disponível em: https://editora.ufabc.edu.br/downloads/download/5-livros-em-pdf/43-democracia-desenvolvimento-e-sustentabilidade. Acesso em: 02/06/2023.

 

Necessário e urgente. É com esses dois adjetivos, aparentemente insossos, que abro a resenha do interessantíssimo livro Democracia, desenvolvimento e sustentabilidade: perspectivas teóricas e desafios, organizado por Gabriel Rossini, Fernanda Cardoso e Arilson Favareto. O livro é necessário porque dificilmente construiremos um projeto de desenvolvimento (e de país) ambientalmente sustentável, socialmente justo e politicamente inclusivo e participativo sem enfrentar de forma ampla e profunda as discussões que os seus dez capítulos suscitam. O livro é urgente porque estamos há quarenta anos semiestagnados, a preservação da natureza não está assegurada, as dívidas históricas da nossa formação social estão longe de serem pagas, a pobreza e a miséria não foram superadas e a democracia, que julgávamos consolidada, quase desmoronou.

Lançado em 2022, no ocaso do desgoverno Bolsonaro, o livro aponta sobretudo para o futuro. A partir da crítica do passado e da negação de um presente indesejado, cada um de seus capítulos, escritos por pesquisadoras e pesquisadores associados ao Núcleo de Estudos Estratégicos Sobre Democracia, Desenvolvimento e Sustentabilidade (NEEDDS) da Universidade Federal do ABC, contribui para a elaboração de uma agenda de reflexão e pesquisa para a sociedade brasileira. Mais do que respostas, oferece perguntas, questionamentos e problematizações críticas.

Em conjunto, autoras e autores chamam a atenção para a necessidade premente de construção de um projeto de desenvolvimento nacional, que supere a semiestagnação da economia brasileira, prevalecente desde a década de 1980, e que seja capaz de reverter o processo crônico e de longo prazo de simplificação da estrutura produtiva nacional. Um projeto que, pelo menos dessa vez, não seja feito às custas da natureza, das populações tradicionais, da inclusão social e da participação popular nos processos decisórios.

Essa não é uma tarefa fácil e também não pode ser feita por uma única pessoa ou segmento social, como se fosse um mero ato de vontade. Um bom ponto de partida é a crítica não aos nossos fracassos, que foram muitos, mas aos nossos sucessos. Ao longo do século XX fomos capazes de construir uma sociedade moderna, baseada em uma estrutura produtiva de crescente complexidade. Contudo, a construção da sociedade industrial brasileira ocorreu de costas para a sua região, sem uma integração latino-americana, e com um grau altíssimo de mimetização de padrões produtivos provindos do Norte global. Contudo, diferentemente das sociedades do Norte, participação política, direitos sociais e formação de um mercado de consumo robusto só aconteceria décadas depois, no início do século XXI.

Além disso, o desenvolvimento brasileiro se fez a partir do paradigma desenvolvimentista – emprego a expressão conforme Luís Roberto de Paula a usa no capítulo três (“Há mundos por vir? Povos indígenas, democratização do espaço público e a crítica do ‘desenvolvimento a qualquer custo’ no Brasil”), em sentido ontológico e de crítica à lógica do progresso. Lógica essa caracterizada por uma racionalidade tecnocrática e autoritária de dominação do mundo e de exploração da natureza.

O paradigma desenvolvimentista implica a busca por desenvolvimento a qualquer custo, como se o famigerado Progresso fosse bom em si mesmo, estando muito além da querela econômica entre liberais e desenvolvimentistas de como gerir a política econômica. Esse paradigma animou a construção e o desenvolvimento nacional ao longo dos séculos XX e XXI, nos governos nacionais-desenvolvimentistas e liberais, nos períodos ditatoriais e democráticos e, inclusive, nos governos constitucionais pós-1988, com destaque para FHC, Lula e Dilma.

Por isso, considero que um dos maiores desafios do presente seja inventar e construir um novo projeto de desenvolvimento nacional para o século XXI, capaz de conjugar participação democrática com inclusão social, redistribuição e proteção do meio ambiente. Um projeto que não mimetize padrões insustentáveis de produção e de consumo do Norte, mas que esteja antenado às necessidades do Sul, notadamente América Latina e África. A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU), enquanto compromissos formalmente assumidos pelo Estado brasileiro, pode fornecer rico guia e visão inicial de futuro.

Destaco que isso traz como tarefa intelectual e política a crítica do que melhor tivemos no pós-1988: os governos do período 1994-2014, compreendendo os mandatos de FHC, Lula e Dilma. Em primeiro lugar porque, apesar do surgimento de vozes dissonantes, foram igualmente transpassados pelo paradigma desenvolvimentista, capturados pelo brilho paralisante de Belos Montes e Jiraus. Em segundo lugar porque, apesar de políticas públicas bem-sucedida em diversas áreas, foram incapazes de, por um lado, alcançar uma inserção externa menos subordinada e, por outro lado, de sofisticar a estrutura produtiva no sentido de atividades econômicas vibrantes, capazes de incorporar tecnologia, agregar valor e gerar empregos de boa qualidade e proteção. Por fim, porque, apesar de permitirem o advento de novos atores políticos, comprometidos com a agenda da Constituição de 1988, tocaram apenas superficialmente no conjunto histórico de privilégios e prerrogativas de uma elite majoritariamente antinacional e que não se identifica com o seu povo.

Já comentei um pouco aqui o primeiro ponto. Gostaria, agora, de comentar os capítulos quatro, “Economia brasileira, indústria e desenvolvimento”, de Gabriel Rossini, Guilherme Magacho e Ricardo Gaspar, o cinco, “Política econômica e desempenho macroeconômico no Brasil”, de Vitor Schincariol e Cristina Reis, e o seis, “Ameaças à economia de amanhã”, de Ricardo Amorim. Esses capítulos convergem no diagnóstico da semiestagnação da economia brasileira, com destaque para (i) os processos de desindustrialização, reprimarização da pauta de exportações e simplificação da estrutura produtiva, e para (ii) as armadilhas do câmbio sistematicamente sobreapreciado e da dependência dos juros altos. Processos e armadilhas associados a uma subordinação da economia brasileira à externa, com destaque para o papel crescente de fornecedora de commodities agrícolas e minerais, e ao tradicional vício em utilizar a política monetária e cambial para a estabilização dos preços, cujo resultado é uma contradição de curto prazo entre crescimento e controle da inflação e, no médio e longo prazo, uma tendência à simplificação da estrutura produtiva.

Portanto, a invenção e a construção desse novo projeto de desenvolvimento nacional têm a difícil tarefa de articular uma abordagem pós-desenvolvimentista com a reversão da semiestagnação da economia brasileira, com a busca de uma nova inserção externa da economia nacional e com a retomada da sofisticação produtiva. Essa é uma tarefa fundamentalmente difícil e requer muita imaginação, porque, nos últimos trezentos anos, os processos de transformação estrutural das economias e sociedades foram feitos justamente, em maior ou menor grau, sob o paradigma desenvolvimentista.

Evidentemente, esse não é um desafio único e exclusivamente brasileiro. Ao contrário, é transversal a todas as nações e, como argumentado no primeiro capítulo do livro, “O desenvolvimento da perspectiva do Sul: vínculos entre América Latina e África”, de Cristina Reis, Muryatan Barbosa e Fernanda Cardoso, os saberes e as perspectivas do Sul global podem ser bastante profícuos no tateamento de respostas para esse desafio.

Resta ainda uma questão: como inventar e construir esse novo projeto de desenvolvimento nacional? Tal qual nas indagações anteriores, não há resposta simples aqui. Creio, contudo, que sem um processo radical de participação social, no qual todos os segmentos da população brasileira estejam incluídos e todos os saberes sejam considerados, dificilmente teremos algo que vença a máxima tecnocrática do desenvolvimento a qualquer custo. A participação popular robusta e diversa é o melhor antídoto à captura do projeto por interesses particulares e por elites constituídas nos e pelos seus privilégios estruturais e de longa data. Como ensina a economia política, é lógico que tudo isso depende de uma coalizão política que dê sustentação a esse projeto, embora seja necessário entender que essa coalização é muito mais o resultado do que a pré-condição do processo.

Mais do que isso não arrisco falar. É disso que o livro trata e são estas as questões que ele suscita. É fundamentalmente por isso que sugiro a sua leitura.

 

Alexandre Abdal [https://orcid.org/0000-0003-3577-1238] é sociólogo, com formação em sociologia pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutorado pelo International Postdoctoral Program (IPP) do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). É professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP), professor-colaborador da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP), pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e pesquisador associado à rede de pesquisa Observatório das Metrópoles, núcleo São Paulo, do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia (INCT), sediado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). E-mail: alexandre.abdal@fgv.br.