O prefeito do município de São Paulo, João Doria (PSDB), anunciou que pretende levar adiante cinquenta e cinco projetos de privatização até o final do seu mandato. Para tanto, criou agências encarregadas da formulação de seu ousado plano – a Secretaria de Desestatização e Parceria e a empresa pública SP Parcerias – e produziu propagandas para circulação internacional de representação da cidade de São Paulo como um espaço propício para o investimento privado. Tais discursos, eventos e decisões reaqueceram debates inflamados e polarizados sobre o significado mais amplo das “privatizações” para a governança urbana.
Para o campo da direita, a privatização é “a” solução apresentada para a produção de serviços e o governo das cidades. Quando a ideia de privatização é enunciada, o “Estado” é imediatamente associado à ineficiência e à corrupção. O “Mercado”, por sua vez, é retratado como o reino da virtude, da produtividade e da eficiência na alocação de recursos para a entrega de políticas. No outro polo, o campo da esquerda apresenta a privatização como o processo responsável pela captura do Estado na produção de serviços públicos, em que garantias e direitos são submetidos à lógica do lucro e os objetivos de inclusão social, redução das desigualdades socioeconômicas e fortalecimento da democracia são ameaçados.
Subjacente a ambas interpretações está a predeterminação dos resultados dos processos de privatização. Se por um lado reconhecem que a produção de políticas e serviços públicos envolve múltiplas combinações entre Estado e setores privados, por outro, não dão conta de explicar a variabilidade dos resultados, tornando desimportante olhar para a regulação pública.
Este ensaio dá um passo atrás nessa polarização, procurando problematizar, no nível do detalhe, a operacionalização de instrumentos e práticas burocráticas na governança urbana como elementos de mediação das relações entre Estado e empresas privadas. A preocupação com esses elementos tem crescido, mas ainda não foi produzida uma crítica arguta sobre o funcionamento, as possibilidades de instrumentos de políticas e seus papéis na regulação. Nosso texto pretende, também, apontar para os riscos de uma perspectiva acrítica acerca da privatização e seus impactos para a produção de políticas na cidade.
O uso corrente do termo “privatização” confunde diferentes arranjos público-privados no contexto das cidades. Divisar analiticamente seus tipos é certamente um bom início para identificar os instrumentos e dispositivos que permitem a regulação em cada caso. Sugerimos a separação seguinte: (1) a venda de ativos, com a conversão do patrimônio público em liquidez financeira; (2) a venda ou cessão do direito de uso ou de construção às empresas privadas; (3) a contratação da prestação de serviços públicos junto à iniciativa privada.
A venda de patrimônio significa aumento imediato de caixa para futuros e potenciais investimentos e/ou execução de políticas, ao mesmo tempo em que representa a subtração de ativos do poder público. Ainda que esta solução seja acompanhada de discursos sobre redução de custos, raramente ocorre uma avaliação estratégica dos ativos postos à venda, sendo frequente a perda de valor econômico para o Estado e a redução da capacidade de ação e de intervenção nas chamadas falhas de mercado. A propriedade da terra pelo Estado, por exemplo, permite a produção de habitações dissociada do moroso e custoso processo de desapropriação, ou mesmo da determinação da localização de empreendimentos pelo setor privado. Embora haja menor necessidade da construção de dispositivos de regulação da ação privada, é primordial estabelecer condições institucionais associadas à venda dos ativos – preço, prazos, regras de transição etc. Para além da perda econômica, a alienação de ativos produz uma inflexão sem volta na trajetória das políticas, pelos efeitos sobre o desenho urbano, usos, aumento da dependência em relação a atores privados e por ser, em geral, difícil reavê-los. A gestão Doria não aparenta preocupação com essas implicações prospectando investidores estrangeiros para seus projetos de privatização antes mesmo de haver preparado estudos de viabilidade e análise dos ativos.
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No segundo tipo, estão arranjos que autorizam o setor privado a explorar economicamente a produção do espaço urbano. Dentro desse grupo, vale destacar no caso mais extremo as privatizações associadas ao emprego de instrumentos urbanísticos que constam no Plano Diretor: a concessão urbanística (quando é concedido o direito de desapropriação e de intervenção direta ao ente privado em certo perímetro), a outorga onerosa e as Operações Urbanas Consorciadas (em ambos os casos se separam os direitos de propriedade dos de construir e se procede com a venda do potencial construtivo que captura parte da renda fundiária). |
Mas o mero desenho destes instrumentos diz pouco a respeito de seus efeitos sobre a regulação, sendo necessário estudar como têm sido agenciados na prática. Nas Operações Urbanas, a Prefeitura tanto pode programar o leilão dos Cepacs [certificados de potencial adicional de construção, emitidos pela prefeitura do município de São Paulo e utilizados como meio de pagamento de contrapartida para a outorga de direito urbanístico adicional dentro do perímetro de uma Operação Urbana Consorciada]. em um só turno, capturando menor renda fundiária dos compradores que especularão com os títulos no mercado, como pode diluir a oferta dos certificados no tempo, aumentando sua receita com a valorização dos terrenos. Como os recursos devem ser reinvestidos no perímetro da Operação, têm-se aí uma possibilidade de redução da segregação socioespacial via construção de habitação social, mas isso também varia conforme o conselho gestor da Operação regula o uso dos recursos. O que sabemos, no caso paulistano, é que essa potencialidade não se confirmou, embora existam dispositivos para isso. O prefeito Doria, nesse contexto, tem repercutido apenas o interesse do mercado imobiliário, discutindo propostas para flexibilizar regras do Plano Diretor e reduzir o custo da outorga onerosa, o que reduz o montante de recursos que o poder público tem a sua disposição para a produção de políticas.
O terceiro tipo de privatização tem seu arcabouço legal amparado no ciclo de contratações de serviços públicos, que se desdobra em diversas etapas operacionais: o planejamento financeiro, o mapeamento da necessidade e estimativa da demanda, a justificativa da contratação e pedido de autorização para a autoridade competente, a especificação técnica, o procedimento licitatório, o desenho e assinatura do contrato e sua gestão e fiscalização.
Ignorando esse marco legal temos acompanhado, de maneira recorrente, interações do governo Doria que transcorrem em uma fronteira oficiosa da lei, como a doação de remédios por empresa farmacêutica, a doação supostamente gratuita de serviços de consultoria de planejamento à prefeitura (com acesso privilegiado a informações internas do Estado) e até a revelação, pelo próprio prefeito, de empresa escolhida para prestar serviços previamente ao chamamento público. Para além dessas flagrantes irregularidades, é promovida uma visão de política pública enquanto filantropia, deixando à margem das decisões instâncias participativas que tem função importante no controle social. Há nessa perspectiva um voluntarismo que nos distancia da problematização dos instrumentos. Em contraposição a essa perspectiva, argumentamos a favor de seu papel na compreensão da tarefa de regular a privatização de serviços.
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Voltando ao ciclo de contratações de serviços públicos, a primeira etapa da regulação é expressa na contratação, momento em que as partes acordam seus direitos e obrigações. A segunda etapa ocorre nas práticas cotidianas de fiscalização sobre cumprimento dos acordos contratuais e de documentação do desempenho operacional, tornadas possíveis por instrumentos de políticas que permitem o registro de informações sobre a provisão de serviços. |
É sabido que o registro de informações é obrigatório em ambos os casos, variando seus formatos de acordo com o setor de politica. Mas somente a ampliação da escala de análise e um mergulho no cotidiano das burocracias nos permite perceber que as formas de produção e circulação de informação e de documentos afetam as posições e os recursos dos atores envolvidos no ciclo do registro. Em outras palavras, a esses importa o que é registrado. Como decorrência dessa dinâmica de produção de informação, o comportamento dos atores pode ser compreendido como estratégico. Por isso, a ausência de informações consolidadas, sistematizadas ou confiáveis que, no processo formal, alimentam a regulação, não se reduz à incapacidade técnica, podendo ser fruto também, de uma decisão de não registrar. Assim, ocorre frequentemente que as decisões sobre penalizações, futuras contratações e mesmo cálculo da remuneração de um serviço são prejudicadas por dados inconsistentes produzidos pelas próprias burocracias.
Nesse contexto, as empresas privadas também atuam nas práticas de documentação. Na limpeza urbana, por exemplo, quando a remuneração era calculada com base no peso do lixo, foram identificados casos em que concessionárias do serviço molhavam o lixo coletado ou incluíam areia para enviesar a documentação do desempenho. Um outro caso ilustrativo da mesma questão, que permite levantar hipóteses sobre o impacto da mobilização de instrumentos na reorganização das condições de produção da informação, é o da implementação da bilhetagem eletrônica nos serviços de ônibus, que reduziu substantivamente a opacidade da regulação do valor da tarifa, pela transição para a contagem eletrônica de passageiros e receita.
Tais exemplos demonstram que a contratação de serviços é uma tarefa complexa que exige conhecimento não apenas sobre marco legal, etapas, práticas de mercado, dispositivos de controle, mas também inclui as racionalidades e dinâmicas interativas dos operadores de política e, ainda, elevada capacidade de coordenação.
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Considerando que o cotidiano é operado nessa interação estratégica, a ideia, que sustenta o discurso da privatização, de que o simples transplante das práticas de mercado promove a eficiência é completamente falaciosa. Pelo contrário, ela pode produzir mais descoordenação e opacidade. Cabe ainda ressaltar que o mecanismo concorrencial de eliminação das empresas ineficientes funciona coletivamente para um setor econômico no médio prazo, mas a existência de empresas individuais ineficientes é prevista pelo próprio mecanismo. O que acontece se o Estado entregar a produção de certos serviços exatamente para uma delas? E como pensar essa privatização à luz da diferença de capacidades que as organizações estatais precisam assimilar, ao passar de provedores diretos do serviço para reguladores? |
Em estudos no Centro de Estudos da Metrópole (CEM), identificamos que existe um complexo conflito politico em torno da regulação, seja qual for o governo. Ele é variável por setor de política, por nível de regulação, orientado por agendas e fortemente influenciado por instrumentos. Em cada uma das etapas da regulação, instrumentos estão sendo mobilizados por diversos atores em direções variadas, de maneira que a política cotidiana frequentemente produz desvios em relação ao que foi planejado, produzindo também efeitos positivos imprevistos. Daí a impossibilidade de se enfrentar esse debate na abstração, sem a discussão das ferramentas. Em vez de fazer coro a generalizações, o debate deve ser deslocado para os mecanismos de regulação pública que o Estado utiliza, como os utiliza e que efeitos produzem.
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O prefeito João Doria, que procura assiduamente “mostrar trabalho” vestindo a camisa dos executores das políticas nas pontas, tem demonstrado despreocupação com os contextos e os instrumentos que estes operam em suas práticas cotidianas. Sem publicizar a construção dos detalhes e das garantias sobre a regulação das privatizações, será apenas marketing. E implementar tal plano de privatizações sem garantias institucionais detalhadas que previnam a captura do Estado será, no mínimo, irresponsável. |
Telma Hoyler é doutoranda em Ciência Política na USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole.
Marcos Campos é mestre Ciência Política na USP e pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole.
Pedro Henrique Campos é mestrando em Administração Pública e Governo na Fundação Getulio Vargas.
Com agradecimentos a Eduardo Marques, Úrsula Peres e Diogo Bardal.