Por Bianca Tavolari
13 maio 2020
“Eu vou te dizer, eu acho que os locadores vão pegar leve. Nós podemos publicar uma declaração sobre isso. Eu acho que muitas pessoas a quem se deve dinheiro vão pegar leve. Eles meio que não têm escolha.” Esta foi a resposta do presidente norte-americano Donald Trump à pergunta de um jornalista sobre o que as pessoas deveriam fazer quando o dia do pagamento do aluguel chegasse em abril, o primeiro mês de pagamento afetado diretamente pelas consequências econômicas das medidas restritivas da pandemia.
Em um país em que 43 milhões de famílias vivem de aluguel – com números historicamente subnotificados, como afirma o Census Bureau – e em que milhões de pessoas se somam à fila do desemprego a cada semana, a aposta do presidente foi, literalmente, um “take it easy”. Locadores seriam razoáveis, “pegariam leve”, ou seja, renegociariam os valores dos aluguéis para baixo. Nas entrelinhas desta suposição está a ideia de que estes ajustes seriam da ordem da negociação privada entre proprietários e inquilinos, o que também significa que o governo norte-americano não iria destinar qualquer esforço para pensar em uma política ou uma regulação temporária para o desamparo generalizado em relação ao aluguel.
Mas o Congresso americano deu uma resposta diferente. O CARES Act, a lei de emergência para mitigar os efeitos econômicos da crise e para criar normas de transição, prevê, na seção 4.024, uma moratória de 120 dias que impede locadores e proprietários de acionarem o Judiciário por falta de pagamento de aluguel ou das taxas vinculadas à locação. Diversas cidades americanas estão criando normas específicas e mais protetivas ao aluguel residencial – Nova York e Los Angeles são alguns dos exemplos.
No Brasil, a lei que apresenta regras de transição para o regime de direito privado – e inclui a locação residencial – foi proposta no dia 30 de março pelo senador Antonio Anastasia (PSD/MG). O projeto ainda não foi aprovado e, atualmente, está em discussão na Câmara. No Senado, a proposta original foi bastante modificada. O texto aprovado por senadores e senadoras não é muito diferente do “take it easy” que marcou a fala de Donald Trump. O substitutivo eliminou qualquer referência às regras de transição para o aluguel, deixando apenas um artigo sobre a suspensão de liminares em ações de despejo. Em seu parecer para a Comissão de Constituição e Justiça, a senadora Simone Tebet (MDB/MS) afirma: “O ideal é deixar para as negociações privadas esse assunto, com a lembrança de que o ordenamento jurídico já dispõe de ferramentas para autorizar, a depender do caso concreto, a revisão contratual, a exemplo dos arts. 317 e 478 do Código Civil”.
Qualquer proposta que leve a pandemia a sério precisa, necessariamente, endereçar a questão habitacional como uma prioridade. O aluguel residencial é uma parte muito importante desta equação. Com o aumento do desemprego e com impactos significativos em seus rendimentos, muitos não vão conseguir pagar o valor de seus aluguéis pré-pandemia. E esta não é uma insegurança qualquer. Significa não ter onde morar quando a principal recomendação de todas as autoridades médicas é ficar em casa. Impedir despejos e garantir critérios mínimos para que proprietários e inquilinos possam ter alguma previsibilidade durante o período de isolamento é fundamental.
Tratar a questão como um assunto entre privados, como mais um contrato entre tantos, é ignorar o tamanho no problema. Os dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) de 2018 fornecem um bom quadro para retratar a situação do aluguel no Brasil: 11,7 milhões de famílias registraram algum gasto monetário com aluguel em 2018, das quais 77% têm rendimento mensal de até 6 salários mínimos e 29% de até dois salários mínimos. O grupo de rendimento de mais de 10 salários mínimos compõe apenas 10% deste montante. Assim, a diferenciação por faixas de rendimento mostra que as famílias mais pobres são as que mais dependem do aluguel no Brasil.
Se olharmos para o peso do aluguel no orçamento familiar, veremos que, por mais que as famílias tendam a gastar conforme sua renda, grupos de menor rendimento comprometem valores proporcionalmente maiores com o aluguel do que grupos mais ricos. A disparidade é bastante grande: enquanto os gastos com aluguel equivalem a 34% da renda entre as famílias com rendimentos de até 2 salários mínimos, para o grupo mais rico, representam apenas 4% de todo o rendimento mensal.
Os dados são ainda mais preocupantes se considerarmos que este é um cenário de 2018, pré-pandemia. Entre as famílias mais pobres, a vasta maioria dos adultos ocupados são trabalhadores informais, com renda diretamente impactada pelas medidas de isolamento, o que torna o comprometimento com valores de aluguel ainda maior.
Deixar esse assunto simplesmente para a negociação entre privados é ignorar que proprietários e inquilinos podem não chegar a acordos. O texto atual do Projeto de Lei n. 1.179/2020 impede as decisões liminares em ações de despejo, mas não impede que sentenças tenham o efeito de expulsar inquilinos caso não possam pagar pelo valor do aluguel. É uma proteção frágil demais para a importância da segurança da moradia em meio a esta crise. A resposta, certamente, não é um “take it easy”.
Bianca Tavolari é professora do Insper e pesquisadora do Cebrap. Coordena a seção “As cidades e as coisas” na revista Quatro Cinco Um.
Pedestre no bairro Capitol Hill, Seattle, em 1º de abril de 2020. Foto: Ted S. Warren/AP.