por Lourenço Fernandes Neto e Silva
28 set. 2023
CESARINO, Letícia: O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital. São Paulo: Ubu, 2022.
FISHER, Max: A Máquina do Caos. Tradução de Érico Assis. São Paulo: Todavia, 2023.
A ascensão mundial das redes sociais é um processo ainda em curso cujas consequências ainda não compreendemos plenamente. O que já seria um problema difícil tornou-se também o mais premente diante do inegável papel dessas mídias na política brasileira e global. Como dar conta de um cenário de tantos problemas entrecruzados? A ciência política isolada se revela insuficiente para a tarefa quando a tecnologia toma o papel central. Se for o caso de recorrer à engenharia, será preciso também convocar programadores, executivos, sociólogos, psicólogos e economistas. Muitos especialistas clamam por abordagens inter-, trans- ou pluridisciplinares, pois as fronteiras das disciplinas se veem desafiadas pelo influxo do digital sobre um mundo que vacilantemente ainda busca se impor como contraparte real. Duas tentativas recentes parecem dar passos importantes na constituição das pontes teóricas necessárias para compreender a questão.
A Máquina do Caos, de Max Fisher, jornalista do New York Times, foi publicada em 2022, venceu prêmios norte-americanos de livro do ano e recebeu rápida mas competente tradução ao português. O autor foi contatado em 2018 por um ex-prestador de serviços do Facebook que havia reunido informações internas sensíveis sobre a empresa. Ele buscava no jornalista ajuda para publicá-las. Foi assim que Fisher iniciou um longo trabalho de averiguação e compilação. O livro resultante acabou por se tornar uma história da ascensão das redes sociais que mais impactaram a política na última década, como o Facebook, o 4chan, o Reddit e o YouTube. Numa escrita frenética, que engaja pela qualidade da narrativa e das concatenações e pela quantidade de fatos aviltantes, o livro descreve a política das grandes empresas de tecnologia, bem como dos inúmeros crimes impulsionados por suas estruturas algorítmicas, a respeito das quais pouco ou nada se fez.
Para compor o livro, o autor entrevistou muitos ex-funcionários de empresas de tecnologia, representantes de todo o espectro político, pesquisadores e pessoas comuns que se tornaram famosas ao viralizar na internet, além de recorrer a inúmeros processos judiciais, pesquisas especializadas e reportagens dos últimos anos. Desse modo, ele mapeou ao longo dos capítulos a formação da ideologia utópica e tecnocrata da “liberdade de expressão” no Vale do Silício (cap. 2.2), as mudanças pelas quais o mercado de tecnologia passou e que propiciaram a dominação da internet por plataformas (cap. 5.3), os momentos de criação de diversos aspectos das redes que potencializaram o engajamento dos usuários (como os likes e os upvotes, cap. 1.5), e episódios-chave para a compreensão da formação do comportamento do público das redes sociais. Trata-se de uma história complexa, que envolve muitos autores e empresas, e muda muito rapidamente em poucos anos. Porém, o livro logra prover uma história coerente de todo o processo, capaz de explicar grande parte dos acontecimentos recentes.
Os episódios narrados iniciam-se geralmente com a experiência particular de uma pessoa desconhecida. Já no primeiro capítulo, nos deparamos com a história de uma investidora de tecnologia que, ao buscar informações e dicas na internet para a criação de seu filho, é apresentada no Facebook a inúmeras comunidades conspiratórias, de movimentos antivacina ao terraplanismo. Ela então inicia sua própria pesquisa e descobre que a tendência é sistêmica. Apesar de partir do Facebook, o livro não se restringe a ele, mas mapeia de forma precisa tendências diferentes surgidas de comunidades, plataformas, públicos e CEOs também diferentes. As histórias trazem funcionários das big techs, pesquisadores independentes e pessoas comuns afetadas pelo funcionamento das redes. Um dos episódios iniciais do livro é o chamado Gamergate (cap. 2), movimento reacionário e misógino de aficionados por jogos eletrônicos — gestado em ambientes como o 4chan, o Reddit e o Youtube — que funciona como marco da ascensão das “guerras culturais” em ambiente digital. A partir dele se consolidou uma comunidade gamer veementemente contrária a iniciativas de inclusão e representatividade nos jogos e nos filmes.
O autor discute também a perspectiva das próprias empresas, as quais se mantém surdas às crescentes denúncias dos maus efeitos das redes sociais para a sociedade como um todo, quer elas partam de usuários, pesquisadores ou funcionários. Nas poucas vezes em que atuaram para reduzir alguma prática danosa, as empresas o fizeram sem qualquer alarde. O nexo desse comportamento era a convicção, ao menos alegada, de que maximizar o tempo de tela seria um bem em si mesmo, pois potencializaria a “liberdade de expressão” dos usuários. Esse aspecto foi levado às últimas consequências nos anos recentes, em detrimento de qualquer responsabilidade da parte das plataformas em relação ao conteúdo veiculado através delas.
A culminação da narrativa de Fisher se dá com o assalto ao Capitólio dos Estados Unidos em 6 de janeiro de 2022. Até chegar lá, contudo, constrói-se com cuidado a importância que o ambiente digital veio a ter na aproximação de muitos usuários com diferentes movimentos crescentemente delirantes e perigosos, geralmente de extrema-direita. Passamos por assassinatos de reputações (Amy Cooper, via Twitter, cap. 4.5), genocídios (Mianmar, cap. 1.7; Sri Lanka, cap. 7), atentados que resultaram em chacinas (Christchurch, Nova Zelândia, cap. 9.6) e, enfim, chegamos a uma pandemia inundada por teorias conspiratórias impulsionadas pelos algoritmos. No penúltimo capítulo de um livro que se constrói como um crescendo, o caso do Brasil é extensamente retratado, com destaque à perseguição aos professores, às conspirações contra as vacinas e, finalmente, à eleição de Bolsonaro. Além disso, o epílogo da obra é relevante ao atual debate brasileiro por abordar a questão da regulação das big techs e as formas pelas quais elas buscaram se defender após o evento no Capitólio.
As teorias empregadas pelo jornalista para amparar a história, porém, não têm sempre o mesmo sucesso que os fatos. Embora traga observações valiosas para a compreensão do funcionamento das redes, como a tese sugerida desde o primeiro capítulo de que as redes criam seu próprio público e não apenas dão voz a um público que já existe, falta uma teoria geral coerente. Não que não se tenha buscado por uma: serve a isso o quarto capítulo, “A Tirania dos Primos”. Porém, ao buscar uma razão nos efeitos da dopamina no cérebro e na autodomesticação que teria reduzido a violência da espécie, a antropologia biologizante visada por Fisher se mostra questionável, pois acaba por deixar em segundo plano toda a apuração e análise feita pelo autor dos pormenores das atividades das big techs e do caráter estrutural dos algoritmos. Por isso, a pesquisa de Fisher pode ser subsidiada pelos esforços de outra autora.
Percorrer as páginas de O Mundo do Avesso de Letícia Cesarino é seguir em frente e, ainda, ampliar o escopo apresentado no livro de Fisher, pois, através de uma escrita tão clara quanto rigorosa, ela procura reencontrar nas aspirações à unidade da antropologia um impulso necessário para reconectar as quatro tendências gerais dessa área em uma análise do digital: a inspiração biológica, presente em Fisher, mas também a cultural, a linguística e a técnica. Dessa iniciativa, uma ponte transdisciplinar capaz de compreender o fenômeno digital se afigura possível.
Não por acaso, o trabalho de Cesarino exige uma “mudança de paradigma”, o que não significa propor-se como absolutamente inovador: a tarefa imposta é, antes, a reconhecer o pensamento da “ecologia da mente” e convergir forças com ele. Retomando antropólogos clássicos e contemporâneos, além de autores de muitas outras disciplinas, Letícia pretende organizá-los em torno de uma compreensão cibernética sistêmica. Embora o termo cibernética se propusesse desde 1948, o quadro teórico de Cesarino tem como figura central Gregory Bateson, especialmente os textos reunidos em Steps to an Ecology of Mind, de 1972. Ao longo da segunda metade do século XX, a cibernética foi capaz de galvanizar disciplinas (exatas, naturais e humanas) para explicar o funcionamento dos seres vivos e das máquinas de forma análoga. Sob essa perspectiva, autores de diferentes áreas contribuem para a conformação de um método comum, compondo uma rede de referências fundamental e generosamente elencada pela autora.
Ciente da pouca familiaridade do público com essa abordagem, Cesarino esboça um quadro geral no primeiro capítulo, recenseando elementos capazes de conformar uma visão de conjunto da sociedade e das mídias. Embora a cibernética nos faça imaginar visões da ficção científica, como cérebros em jarros ou androides de inteligência artificial, é uma surpresa boa descobrir que o novo paradigma retornará à materialidade do corpo humano. Essa mudança de eixo, da cognição em abstrato para o corpo integral e social, faz com que os demais problemas se desloquem e se rearranjem. Outros autores, como Bruno Latour e Isabelle Stengers, já apontaram que um certo mito da modernidade contribuiu para a incompreensibilidade de nossos tempos, todavia esta se torna ainda mais aguda diante das redes sociais. Cesarino é muito clara ao mostrar como as divisões cerradas entre natureza e cultura, sujeito e objeto, razão e emoção, fato e ficção, original e cópia, entre outras, devem ser abandonadas em favor de uma abordagem que convoca outras tendências recentes, como a “cognição incorporada” e a teoria do caos. Ao unir elementos novos e tradicionais em uma exposição que apela ao intuitivo, a reconstituição metodológica do primeiro capítulo é valiosíssima por si mesma e monta um instrumental capaz de reorganizar uma série de contradições aparentemente insolúveis da contemporaneidade. Embasada nela, procede-se no capítulo seguinte à interpretação da transformação proporcionada pela incorporação das novas mídias digitais, processo caracterizado pela autora como “plataformização”.
O livro de Cesarino conta com duas partes, cada uma de dois capítulos. Na segunda, a autora aplica a problemas políticos urgentes o que foi estabelecido na primeira, contribuindo assim para uma das descrições mais atuais e penetrantes dos comportamentos que são favorecidos pela própria infraestrutura das novas tecnologias digitais. O trabalho recorre intensamente a etnografias da extrema direita feitas recentemente tanto no Brasil quanto ao redor do mundo — algumas delas feitas pela própria autora. No terceiro capítulo, a autora lida com a questão dos “populismos” digitais, estruturalmente conjugados ao recente impulsionamento algorítmico das teorias da conspiração. No quarto e último capítulo, ela analisa de perto, como caso extremo, a amplificação midiática e conspiratória que acompanhou a epidemia de Covid-19 no Brasil, bem como suas consequências à visão de mundo dos que são afetados por ela.
A ecologia da mente centra-se nas noções de meio, estrutura e relações para englobar o todo, de modo a compreender a dinâmica geral dos repasses sistêmicos. Assim, ela se aproxima de uma teoria da comunicação, incorporando aspectos semióticos e até retóricos, já que a abordagem parte da infraestrutura passional do comportamento humano, para só então realizar uma montagem gradual das funções consideradas superiores da razão. Esse pensamento passa bem longe do reducionismo biológico a que Fisher nos convida em suas especulações. Cesarino, por sua vez, recorre ao que Bateson chama de “processos primários” para descrever a influência das mídias sobre a população, sublinhando aspectos como a economia da atenção, as motivações sociais dos processos cognitivos e os encadeamentos lógicos de ordem mais elementar que operam pela fórmula se-então. Sob este ponto de vista, são as regras do ambiente comunicacional global que determinam mais profundamente os processos do comportamento humano individual. O funcionamento digital, portanto, redobra-se num feedback loop, conceito cibernético por excelência, que ao mesmo tempo constitui e fortalece recursivamente os próprios processos cognitivos que o tornam possível.
A plataformização tem como propriedade crucial a velocidade inédita dos repasses, o que teria como consequência direta a desestabilização das estruturas sociais, em analogia a desenvolvimentos da termodinâmica da década de 1970 (Prigogine e Stengers). Segundo Cesarino, o novo ambiente das plataformas contemporâneas propicia uma “mímese inversa” entre grupos que se opõem num processo de “cismogênese”, conceito usado por Bateson desde a década de 1930. Isso ocasiona a produção de uma antiestrutura simétrica, que é inversa à estrutura dominante das democracias modernas e se prolifera imprevisivelmente, podendo desestabilizar a configuração global do sistema social.
O ambiente comunicacional digital proporciona então o confronto entre a estrutura e a antiestrutura. Ambas podem ser descritas em três níveis: a experiência pessoal, a concepção geral de mundo e os dispositivos que mediam esses dois pólos. Na conformação institucional da modernidade europeia, a concepção geral de mundo seria construída e reforçada pelos mediadores, isto é, pelo sistema educacional e científico dos “peritos”, que não se constitui, como se pensaria, pela veracidade de seus discursos, mas principalmente pelos “ciclos de credibilidade” continuamente retroalimentados. Já a crise da experiência pessoal numa sociedade de mídias sociais, em que a autoexposição é central, seria apenas uma parcela da crise geral. A antiestrutura, por sua vez, adota como resposta uma “eu-pistemologia” que exagera o papel da experiência pessoal enquanto se distrai da arquitetura midiática global que verdadeiramente constitui o imaginário dos indivíduos. Então, a ciência oficial que corroborava a concepção de mundo é substituída pelas “causalidades ocultas” típicas dos conspiracionismos, que admitem reajustes contínuos (updates?) inconsistentes e não verificados, imitando o funcionamento dos próprios algoritmos das plataformas, efetivamente opacos para os usuários. O papel da mediação antes realizado pelos especialistas se pauta agora pela “bifurcação amigo-inimigo”, que seleciona os influenciadores ou outros agrupamentos das novas mídias (como grupos de whatsapp) como “nossos” em oposição aos que são “deles”. Essa substituição torna os “amigos” capazes de efetivar uma mímese inversa dos procedimentos da ciência normal, até suplantando-a em certos setores do público, como os terraplanistas.
A potência da descrição de Cesarino convence mesmo quem se sente desconfortável com o aparato cibernético, pois essa visão global da relação entre mídias e sociedade chega a abarcar sugestões de escopo histórico mais amplo, ocasionais mas de peso, em que se traçam paralelos com o efeito da imprensa na Reforma Protestante, ou do rádio na ascensão do nazismo. Assim, o livro dela é uma resposta teórica potente e incontornável às questões políticas da atual revolução de mídia digital.
Porém, embora esteja plenamente consciente de que essas transformações no público são produzidas pelas políticas das empresas privadas globais, a análise de O mundo do avesso não lida diretamente com essa questão. Cesarino defende inequivocamente que as plataformas criam os algoritmos e que a configuração da plataformização atual monta um ambiente cujas dinâmicas antiestruturais ameaçam desagregar a ordem, em sinergia direta com a ideologia neoliberal e a extrema direita. Contudo, para uma análise política completa seria preciso verificar, agora do ponto de vista específico, as políticas das big techs. Essa é a grande contribuição de Max Fisher. Ele esmiuça de forma satisfatória os meandros dessa complexa história e complementa a análise de Cesarino.
Os dois livros, concebidos de forma completamente independente, amiúde convergem, de modo que a leitura conjunta das duas obras oferece aos leitores a visão mais atualizada e completa do impasse em que nos encontramos. Esse cenário se tornou possível por uma ideologia individualista que se esquece do aspecto global das mídias. A ênfase nos átomos implica o apagamento da dinâmica geral: as mídias digitais ocultam seu próprio funcionamento, potencializando o efeito persuasivo que constrói verdades artificialmente. O usuário se sente empoderado, mas ele é um mero produto para o qual se direcionam ativamente conteúdos, selecionados ademais por critérios dúbios e mesmo malignos. Daqui nascem e se radicalizam inúmeros grupos políticos, majoritariamente da extrema direita, como explicam ambos os autores. Neste ambiente constituído, também a esquerda incorpora novos comportamentos que não dependem tanto da reflexão particular, mas apenas do modo de apresentação das informações nas plataformas. O melhor exemplo disso seria a sugestão automática de vídeos do YouTube implementada no final de 2015 (Fisher, cap. 5), muito bem descrita tanto por Fisher, do ponto de vista histórico e técnico, quanto por Cesarino, em suas consequências estruturais. Juntos e sopesados, os dois livros oferecem um panorama completo do poder político e social das big techs, das questões postas em jogo por suas decisões corporativas, e da importância de sua regulamentação.
Lourenço Fernandes Neto e Silva [https://orcid.org/0000-0002-0956-8298] é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo e tradutor de obras filosóficas. Suas pesquisas tratam da história do método da modernidade até os dias atuais. Contato: lourencofnsilva@gmail.com