Resenha de East West Mimesis. Auerbach in Turkey, de Kader Konuk.
Um dos efeitos duradouros do renome intelectual consiste em conferir às declarações que lhe são atribuídas o valor de uma autoridade inequívoca. Em Tristes trópicos, por exemplo, olhando retrospectivamente para os dois anos, na segunda metade da década de 1930, em que ocupou a cadeira de sociologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da recém-fundada Universidade de São Paulo, Claude Lévi-Strauss descreve seus alunos como ávidos pelas teorias em voga, inaptos no emprego da erudição e inclinados a disputas de prestígio entre os entourages de cada professor.[1] Diante dessa descrição, Heloisa Pontes observa que, educado em um sistema intelectual estabelecido, Lévi-Strauss extraiu daí os critérios cognitivos empregados para redigi-la, esperando portanto de seus alunos — Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Decio de Almeida Prado, entre outros — atitudes que, naquele momento, eles jamais poderiam demonstrar.[2] Na verdade, as palavras de Lévi-Strauss, diz ela, podem ser lidas “como uma expressão condensada da fala nativa, nesse caso européia, acerca do impacto e decepções decorrentes do esforço de implantar um sistema de trabalho e de pensamento sem um enraizamento maior na tradição nativa dos outros, no caso brasileira”.[3] Ao examinar tal descrição “numa chave diversa da intenção do autor”,[4] sem contudo desconsiderá-la, Pontes furta-se ao poder simbólico que o renome de Lévi-Strauss impõe a tudo o que ele escreveu, tratando-o como um sujeito histórico diante de “obstáculos, afetivos e epistemológicos, que precisam ser transpostos para entender culturas, sociedades e grupos diferentes dos nossos”.[5]
O procedimento de dupla leitura, a um só tempo a favor e contra as intenções declaradas das fontes,[6] também é empregado, ainda que o problema, em ambos os casos, não seja elaborado exatamente nesses termos, por Kader Konuk para discutir os comentários, por muito tempo inquestionados, do filólogo judeu-alemão Erich Auerbach (1892-1957), que compartilha com Lévi-Strauss o rol dos maiores intelectuais do século xx, sobre seu exílio em Istambul entre 1936 e 1947, onde escreveu Mimesis,[7] livro sobre o qual repousa grande parte de seu renome. “Mimesis é muito conscientemente”, declarou Auerbach em 1953, respondendo aos seus críticos, “um livro que uma pessoa particular, em uma situação particular, escreveu no começo dos anos 1940”.[8] Ele não descreveu em detalhes tal situação; o que ele disse a respeito encontra-se fundamentalmente no seguinte trecho do epílogo de Mimesis:
o livro foi escrito durante a guerra e em Istambul, onde as bibliotecas não são bem equipadas para estudos europeus. As comunicações internacionais estavam impedidas; tive que dispensar quase todos os periódicos, quase todas as investigações mais recentes e em alguns casos edições críticas confiáveis de meus textos. Por isso é possível e até provável que eu tenha negligenciado coisas que deveria ter considerado e que eu tenha ocasionalmente afirmado algo que o pesquisador moderno refutou ou modificou. Confio que estes erros prováveis não incluam nenhum que afete o núcleo do meu argumento. A falta de literatura técnica e periódicos pode também servir para explicar a ausência de notas em meu livro. À parte os textos, eu cito comparativamente pouco, e foi fácil incluir esse pouco no corpo do livro. Em contrapartida, é bem possível que o livro deva sua existência justamente à essa falta de uma biblioteca rica e especializada. Se tivesse sido possível familiarizar-me com todo o trabalho que tem sido feito sobre tantos assuntos, eu poderia nunca ter começado a escrever.[9]
Segundo Konuk, que ocupa atualmente uma cadeira de estudos turcos na Universidade Duisburg-Essen, na Alemanha, a declaração de Auerbach, pautada na caracterização da periferia como um espaço de carência, mas também de liberdade intelectual, foi endossada sem questionamentos sobretudo pelos críticos Harry Levin e Edward Said.[10] Ao contrário, defende a autora, é preciso levar a sério as palavras de Auerbach sobre as condições específicas de redação de seu livro, o que implica em um esforço de objetivação de seu exílio turco.
Na origem de sua imigração forçada, encontram-se as perseguições raciais que lhe impuseram uma identidade judaica que ele, ainda que não a rejeitasse, certamente não reivindicava plenamente: “Sou prussiano de confissão judaica vivendo em Berlin-Char-lottenburg”,[11] escreveu ele em seu currículo por ocasião da defesa de sua tese de doutorado em filologia românica na Universidade de Greifswald, em 1921. Na virada do século, Berlin-Charlottenburg era uma vizinhança próspera, cujos habitantes incluíam inúmeras famílias judaicas de classe média, entre elas a de Walter Benjamin, que também nasceu em 1892. Conforme cresceu, Auerbach seguiu os passos de muitos judeu-alemães assimilados: em casa, foi educado segundo princípios laicos, no ginásio francês, de acordo com a cartilha humanista; estudou direito e, quando se deflagrou a Primeira Guerra, alistou-se na infantaria do exército alemão e lutou no norte da França, retornando para casa com uma cicatriz no pé esquerdo infligida por um ferimento grave. Após a guerra, ele trocou o direito pela filologia românica, disciplina que estuda as línguas e literaturas oriundas do latim a partir de uma perspectiva comparativa e ampliada, ultrapassando as fronteiras nacionais. Entre sua tese de doutorado, dedicada à novela renascentista na França e na Itália, e sua tese de habilitação, consagrada a Dante e defendida em 1929,[12] ele trabalhou na Biblioteca Estatal Prussiana, em Berlim; a habilitação franqueou-lhe enfim uma posição na Universidade de Marburg, arrebatada em 1935 pelas leis de Nuremberg.
O passo decisivo em direção à Istambul foi dado no verão de 1935, quando Auerbach encontrou-se com o filólogo austríaco Leo Spitzer em Bolonha, dando-se conta que não havia efetivamente outra saída senão deixar a Alemanha. De fato, ele estava duplamente condenado: de um lado, por ser judeu; de outro, por ser um humanista. Desde o começo do século, o humanismo enfrentava com pouco sucesso a concorrência do orientalismo, que propunha um percurso distinto à história cultural, e do nacionalismo, que recusava uma origem clássica para a nação alemã; com a ascensão de Hitler, os humanistas viram-se afinal em contradição com a própria ideologia nazista porque eles defendiam uma cultura européia cujas raízes não eram exclusivamente germânicas. Spitzer dirigia então a faculdade de línguas e literaturas ocidentais da Universidade de Istambul, onde se instalara dois anos antes após perder sua posição na Universidade de Colônia devido às perseguições anti-semíticas; mas ele preparava-se para emigrar novamente, desta vez aos Estados Unidos, pois aceitara um convite da Universidade Johns Hopkins, e decidira indicar Auerbach para substituí-lo na Turquia. Auerbach possuía concorrentes, entre eles dois filólogos que permaneceriam na Alemanha e sobreviveriam à guerra: Victor Klemperer, cujos diários registram um dos testemunhos mais eloquentes dos horrores aí vividos, e Ernst Robert Curtius, que se debruçou nesses anos sobre o problema da continuidade da literatura ocidental através da persistência dos topoi antigos. No entanto, segundo a autora, o comitê de seleção chegou afinal à sua decisão entre Auerbach e o medievalista Hans Rheinfelder, que lecionava na Universidade de Munique; com o apoio de Spitzer, de Karl Vossler, prestigioso filólogo alemão que se pronunciou contra o anti-semitismo, e de Benedetto Croce, cujo trabalho ele traduzira nos anos 1920, Auerbach obteve a posição em Istambul. Esse é contudo apenas um lado da história; o outro, igualmente importante, reside na adequação do perfil, tanto intelectual como pessoal, de Auerbach aos objetivos modernizantes do governo turco.
Aos olhos turcos, a chegada dos intelectuais europeus em fuga do fascismo remetia ao movimento inverso realizado pelos estudiosos bizantinos que, diante da invasão otomana de Constantinopla em 1453, refugiaram-se na Europa, levando consigo os manuscritos gregos, romanos e bizantinos que disseminaram a educação clássica no continente; agora, os “scholars europeus reviveriam a educação clássica na cidade outrora aclamada como o maior centro de aprendizado no mundo”.[13] O projeto modernizante de nacionalização da educação e da cultura, iniciado antes da Primeira Guerra, fora suspenso devido à ocupação do território otomano no final do conflito, porém retomado com a fundação da república turca em 1923. Tal projeto tomava a Alemanha como modelo porque, assim como a Turquia, ela despertara tardiamente à questão nacional em relação aos outros países europeus; seu objetivo principal residia em unificar a nação através de reformas educacionais e culturais de cunho humanista, assim como “criar um senso de sincronicidade com o Ocidente”.[14] Entre as reformas promovidas pelo projeto, encontra-se a substituição do calendário islâmico pelo ocidental, a latinização do alfabeto, a tradução de centenas de textos ocidentais, a encenação de peças, concertos e óperas ocidentais, a compilação de dicionários e o treinamento de professores em línguas e literaturas clássicas e modernas. No âmbito institucional, a reforma mais importante consistiu na transformação da antiga Darülfünun, a principal instituição de ensino superior do país, na Universidade de Istambul, substituindo mais da metade de seu corpo docente por professores turcos e estrangeiros treinados na Europa; prevalecia porém a preocupação de contratar professores oriundos de diversos países para impedir a dominação política e cultural de uma única nação européia. Essa reforma foi realizada em 1933, ano da ascensão nazista na Alemanha, estimulando o governo turco a contratar intelectuais judeus e antifascistas cujas carreiras e vidas encontravam-se ameaçadas em seu país natal; calcula-se que pelo menos oitocentos scholars alemães, acompanhados de suas famílias, estabeleceram-se na Turquia nos anos subsequentes, mas a condição precária em que se encontravam servia de garantia à autonomia intelectual e política turca. Assim, defende Konuk, ainda que esse projeto modernizante tenha sido em parte um processo de ocidentalização, os turcos participaram dele como agentes, não como vítimas; em contrapartida, sua identidade nacional não pode ser caracterizada como puramente autóctone, pois ela dependeu em grande medida da presença dos scholars europeus refugiados. Mas é preciso sublinhar que a Turquia não concedeu um asilo geral às vítimas do fascismo e, em 1939, ela fechou suas fronteiras aos imigrantes judeus; o acolhimento dos scholars justificava-se pelo propósito modernizante do país e orientava-se fundamentalmente por dois critérios: o conhecimento humanista e o rompimento do vínculo com o país de origem.
“O senhor Auerbach”, lê-se no relatório que o comitê de seleção submeteu à administração da Universidade de Istambul em maio de 1936, “trabalhou particularmente sobre a história literária da França e da Itália, que ele relaciona com as maiores correntes de civilização (Antiguidade, Cristianismo, Laicização moderna) e ele sabe ver a civilização ocidental de fora, de forma crítica”.[15] A capacidade de Auerbach de tratar a Europa de uma perspectiva distanciada, somada à sua imensa erudição, levou o comitê a escolhê-lo como sucessor de Spitzer. Todavia, ainda que o aspecto intelectual tenha sem dúvida contribuído decisivamente para tal escolha, é necessário considerar também o aspecto político da questão, que destacava Auerbach de seus concorrentes. “Para dizer sem rodeios”, resume a autora, “a expulsão de Auerbach como um judeu serviu o interesse da política cultural e educacional da Turquia: Auerbach poderia ensinar as literaturas européias ocidentais da era clássica à moderna ao mesmo tempo que preservava a autonomia cultural do país”.[16] Na prática, Spitzer e Auerbach forneceram aos turcos os fundamentos do conhecimento humanista, estimulando assim a secularização das humanidades. Do ponto de vista de Auerbach, contudo, o projeto modernizante turco não passava de “um nacionalismo fanaticamente antitradicional”,[17] segundo a expressão que ele mesmo emprega em uma carta enviada a Benjamin em janeiro de 1937, alguns meses após sua chegada em Istambul; para ele, tratava-se do mesmo fenômeno autoritário que se desenrolava na Alemanha e na Itália, destruindo o caráter histórico nacional e conduzindo à estandardização da cultura, tema ao qual ele dedicaria um artigo anos mais tarde.[18] A autora contrapõe-se porém à idéia de que as reformas modernizantes turcas tenham se restringido a uma mera imitação do Ocidente, pois elas orientavam-se na prática por um mecanismo de mímesis cultural que, apesar de tomar a Europa como modelo, pressupunha uma apropriação, o que significa dizer que esse modelo foi transformado segundo os interesses nacionais turcos. Essa noção de mímesis cultural é igualmente o produto de uma apropriação, uma vez que sua elaboração pautou-se no próprio livro de Auerbach, focado em examinar ao longo de séculos as diversas representações da realidade produzidas pelo artifício literário ocidental; Konuk, por sua vez, propõe o emprego de uma ferramenta da crítica literária, o conceito de mímesis, para descrever uma modalidade política de prática cultural, a ocidentalização da Turquia, que reformulou em escala nacional a noção de realidade e de passado. Assim fazendo, ela não apenas restitui a redação de Mimesis a sua espessura histórica particular; ela extrai do próprio livro de Auerbach a categoria analítica necessária para descrever tal espessura. O objetivo de East West Mimesis orienta-se portanto por um procedimento reflexivo: “como estar em Istambul moldou a redação de Mimesis e como Mimesis ajuda-nos a compreender Istambul”.[19]
Na interpretação de Auerbach sobre o exílio de Dante, formulada em sua tese de habilitação, de 1929,[20] Konuk identifica o modelo empregado pelo próprio filólogo para fornecer um sentido a sua produção intelectual em Istambul. Exilado de Florença por motivos políticos, mas confiante na justiça divina, Dante teria criado na Comédia novas formas linguísticas e narrativas, encontrando assim sua própria voz européia, que, no caso, fundamenta-se na revelação universal cristã; assim como Dante, argumenta a autora, Auerbach também teria encontrado no exílio sua voz européia, capaz de descrever a formação da história literária e cultural do continente em uma duração longuíssima, redigindo um livro repleto de inovações. Nesse sentido, as palavras de Auerbach sobre a redação de Mimesis citadas acima não se dedicaram, como inclinou-se a crítica, a qualificar Istambul como um espaço de carência, mas serviram para justificar o caráter sui generis do livro, que, contrariando a tradição filológica, debruça-se sobre pequenos excertos literários para dar conta de um processo que se desenrola ao longo de três milênios. No intuito de ler a contrapelo o recurso retórico de Auerbach, Konuk questiona então três aspectos dessa interpretação equivocada: a falta de livros, o diálogo intelectual rarefeito e o distanciamento como precondição do pensamento crítico.
Ainda que não houvesse livros suficientes no alfabeto latino recém-adotado, a situação estava sendo revertida com a compra de milhares de títulos, muitos deles oriundos de livreiros e antiquários judeu-alemães que, forçados pelas leis anti-semíticas a se desfazerem rapidamente de seus estoques, vendiam-nos a preços baixos. Se Auerbach não encontrasse o material desejado no acervo universitário, ele contava ainda com as livrarias francesas, alemãs e italianas alojadas em Istambul e com várias outras bibliotecas: a sua própria, que viera com sua mulher e seu filho e preenchera mais de sessenta caixas, as de seus colegas e as municipais. Ele mesmo assinala o valor desses acervos: “Fui capaz de escrever os trabalhos sobre figura e passio”, fundamentais em sua obra, “porque um conjunto inteiro da Patrologia de [Jacques-Paul] Migne estava localizado em uma sala no sótão da biblioteca do monastério dominicano de San Pietro di Galata. A biblioteca do monastério não era pública, mas o delegado apostólico, monsenhor [Angelo] Roncalli, […] fez a gentileza de me conceder seu uso”.[21] As alegações de ausência de diálogo tampouco eram verdadeiras porque em 1935, alguns meses antes da chegada de Auerbach à Turquia, havia quarenta e seis scholars alemães na Universidade de Istambul, de modo que ele foi acolhido em um ambiente interdisciplinar que compartilhava seus interesses pela gênese do realismo e pela noção de história na Europa Ocidental. Ao invés de uma cidade inadequada ao trabalho intelectual, afirma a autora, “Auerbach encontrou o humanismo em casa em Istambul no mesmo momento em que ele estava sendo banido da Europa”.[22]
Quanto à questão do distanciamento como precondição do pensamento crítico, Konuk reconhece-a na própria estrutura de Mimesis. Como se sabe, o procedimento aí empregado por Auerbach é revelado no último capítulo, que examina a técnica de fluxo de consciência elaborada por autores da literatura contemporânea, em particular Virginia Woolf e Marcel Proust; essa técnica fundamenta-se na capacidade de certos eventos aleatórios e banais do cotidiano em deflagrar uma sequência de idéias e lembranças que, ao mergulhar em camadas temporais descontínuas, tende a se distanciar do presente; nesses autores, a reconstrução do passado de seus personagens depende portanto de um afastamento do evento que iniciou o processo. Auerbach era um perspectivista na linhagem de Giambattista Vico; ele postulava a unidade de todos os fenômenos culturais de uma época, daí a possibilidade de apropriação da técnica de Woolf e Proust como procedimento estruturante de Mimesis, o que conduz Konuk a concluir que Auerbach “via o distancimento de seu próprio presente como uma precondição para escrever um relato de seu passado literário e cultural”.[23] Segundo ela, tal distanciamento foi crucial para delinear os limites da idéia de Europa proposta no livro.
Em Mimesis, o último capítulo encontra-se intimamente vinculado ao primeiro, que estabelece o contraste entre a Odisséia e o Velho Testamento.
Em sua discussão de Woolf e Homero, […] Auerbach lida com uma viagem adiada que promete reconciliação; ele enfatiza detalhes prosaicos (por exemplo, a lavagem dos pés ou a medição de uma meia) que estimula a recordação ou a reflexão; e ele lida com a digressão como um dispositivo narrativo. O excerto de Em busca do tempo perdido, por outro lado, entrelaça-se na história de Abraão e Isaac para ilustrar a criação de profundidade histórica através da interpretação e da prefiguração no Gênesis. Assim fazendo, Auerbach enquadra a literatura européia ocidental como um corpus textual que é conectado historicamente por motivos recorrentes, dispositivos narrativos e referências intertextuais explícitas.[24]
No momento em que a Europa enfrentava sua crise mais profunda até então, Mimesis ampliou as fronteiras do continente, mostrando como o patrimônio literário e cultural europeu é um produto da fusão entre as tradições clássica e judaico-cristã. Todavia, apesar dessa contribuição inestimável, defende a autora, “através de seus exclusões, Mimesis exemplifica como o Ocidente chegou a se pensar como diferente e separado do que agora é chamado o Oriente Médio”.[25] Tais exclusões referem-se ao Islã e destacam-se em duas situações cujo centro é ocupado pela Comédia, obra que suscita uma discussão delicada no mundo islâmico porque apresenta, além de outros muçulmanos, Maomé no oitavo círculo do Inferno (xxviii, 22-61).[26] Na primeira dessas situações, ao tratar da Comédia em seu livro introdutório à filologia românica, publicado originalmente em turco em 1944, Auerbach não menciona a presença de Maomé no Inferno, o que a autora considera uma oportunidade perdida de discutir os desafios da adoção do humanismo secular por uma sociedade islâmica. A segunda situação circunscreve-se à troca epistolar entre Auerbach e o sociólogo e economista alemão Alexander Rüstow, que também se encontrava exilado em Istambul: nessas cartas, outra fonte que contradiz a idéia do isolamento intelectual na Turquia, Rüstow cobra de Auerbach uma atenção minuciosa aos elementos muçulmanos que, empregados por Dante na criação de seu mundo extra-terreno, tenderam a ser silenciados ao longo do tempo em benefício dos elementos cristãos. Ao contrário do que se verifica em sua tese sobre Dante, na qual o Mediterrâneo é visto como um ponto de encontro entre o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, durante o seu exílio Auerbach enfatizou apenas as duas primeiras tradições. A escolha pelo distanciamento não deixa contudo de abrigar uma discrepância curiosa em relação a duas palestras que ele proferiu em Istambul, transcritas no apêndice de East West Mimesis e nas quais o contexto social e político da literatura ocupa uma posição central: a primeira trata do realismo europeu oitocentista, a segunda, da literatura de guerra.
Ainda que Konuk tenha razão, é preciso observar que, ao traçar os limites externos dessa unidade chamada Europa, Mimesis acabou delineando, talvez à revelia, também suas fronteiras internas: a despeito da enorme importância do Quixote para a discussão sobre o realismo, na primeira edição do livro, publicada em 1946, a obra de Cervantes é mencionada apenas de passagem; um capítulo integral seria lhe dedicado somente por ocasião da tradução realizada por Ignacio Villanueva e Eugenio Ímaz para o Fondo de Cultura Económica, em 1950. Ademais, a ausência do Quixote na edição original de Mimesis assinala a própria ausência da literatura espanhola em um livro de filologia românica redigido por alguém que ambicionava registrar um patrimônio cultural à beira da destruição.[27]
Auerbach jamais retornaria a residir na Europa: após a guerra, ele trocou Istambul pelos Estados Unidos, onde faleceria dez anos mais tarde. Em grande medida, a decisão de deixar Istambul foi incentivada pelo estatuto de “convidado eterno” que ele compartilhava aí com muitos judeus, impedindo qualquer tentativa de assimilação; aos olhos turcos, seu valor residia no traço que o diferenciava, ou seja, sua capacidade de transmitir o conhecimento erudito europeu. “O acordo que Auerbach estabeleceu implicitamente com a Turquia”, afirma Konuk, “[…] dependia da preservação — não da transcendência — da diferença. O aceite desse acordo foi o que permitiu Auerbach sobreviver ao Holocausto”.[28]
Ao fornecer as condições objetivas do exílio de Auerbach em Istambul, lendo a contrapelo sua declaração sobre essa experiência, Konuk oferece os elementos indispensáveis para compreender e apreciar Mimesis de forma crítica e, por isso, East West Mimesis já conquistou uma posição duradoura na bibliografia sobre esse livro decisivo para se entender o entre-guerras. O pilar do trabalho intelectual reside na crítica, atividade que não pode ser plenamente exercida sem questionar o próprio fundamento da autoridade intelectual, incluindo aí também suas idéias; caso contrário, não há crítica, tampouco produção de conhecimento, mas apenas doxa — e certamente não precisamos de doxa.
LUÍS FELIPE SOBRAL é pós-doutorando em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo e pesquisador convidado do Laboratório de Antropologia e Hisória da CNRS-EHESS.
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[1] Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, tr. de Rosa Freire d’Aguiar, São Paulo, Companhia das Letras, 1996, pp. 98-99. Sobre o período de Lévi-Strauss no Brasil, ver Fernanda Peixoto, “Lévi-Strauss no Brasil: a formação do etnólogo”, Mana. Estudos de Antropologia Social, vol. 4, nº 1, 1998, pp. 79-107.
[2] Heloisa Pontes, Destinos mistos. Os críticos do Grupo Clima em São Paulo (1940-68), São Paulo, Companhia das Letras, 1998, pp. 92-93.
[3] Id., ibid., p. 93.
[4] Id., ibid., p. 92.
[5] Id., ibid., p. 93.
[6] Sobre a dupla leitura, ver Walter Benjamin, “Sobre o conceito de história”, Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura, tr. de Sergio Paulo Rouanet, São Paulo, Brasiliense, 1994, pp. 222-232; Carlo Ginzburg, Relações de força. História, retórica, prova, tr. de Jônatas Batista Neto, São Paulo, Companhia das Letras, 2002, pp. 13-45.
[7] Erich Auerbach, Mimesis: Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur, Berna, A. Francke, 1946; ed. utilizada: id., Mimesis. The Representation of Reality in Western Literature, tr. de Willard R. Trask, Princeton, Princeton University Press, 2003. Para uma introdução didática a Mimesis, ver Leopoldo Waizbort, “Erich Auerbach e a condição humana”, Jorge de Almeida & Wolfgang Bader, eds., O pensamento alemão no século xx. Grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Volume 2, São Paulo, Cosac Naify, 2013, pp. 175-217; ver também o trecho da minha tese em antropologia social que dediquei a uma apresentação da filologia de Auerbach: Luís Felipe Sobral, Fronteiras da Europa. A corrida de touros vista da Paris literária entre-guerras, Campinas, Unicamp, 2015, pp. 435-464.
[8] Erich Auerbach, “Epilegomena to Mimesis”, tr. de Jan M. Ziolkowski, Mimesis, op. cit., p. 574. Salvo indicação contrária, todas as traduções são minhas.
[9] E. Auerbach, Mimesis, op. cit., p. 557. No final da década de 1940, ao publicar um livro introdutório à filologia românica, também redigido em Istambul e dirigido aos seus alunos turcos, Auerbach valeu-se da mesma justificativa para defender-se de possíveis críticas, além de explicar algumas das características da obra, como um capítulo dedicado ao cristianismo: “Foi durante a guerra; eu estava longe das bibliotecas européias e americanas; eu não tinha quase nenhum contato com meus colegas no estrangeiro e há muito tempo eu não vira nem livro nem revista publicados recentemente” (Erich Auerbach, Introduction aux études de philologie romane, Frankfurt am Main, Vittorio Klostermann, 1949, p. 5).
[10] Cf. Harry Levin, “Two Romanisten in America: Spitzer and Auerbach”, Donald Fleming & Bernard Bailyn, eds., The Intellectual Migration. Europe and America, 1930-1960, Cambridge, ma, Belknap Press of Harvard University Press, 1969, pp. 463-484; Edward Said, The World, the Text, and the Critic, Cambridge, ma, Harvard University Press, 1983, pp. 5-9.
[11] K. Konuk, East West Mimesis, op. cit., p. 32.
[12] Cf. Erich Auerbach, A novela no início do Renascimento. Itália e França, tr. de Tercio Redondo, São Paulo, Cosac Naify, 2013; Erich Auerbach, Dante. Poet of the Secular World, tr. de Ralph Manheim, Nova York, The New York Review of Books, 2007.
[13] Id., ibid., p. 2.
[14] Id., ibid., p. 60.
[15] Id., ibid., pp. 38-39.
[16] Id., ibid., p. 65.
[17] Karlheinz Barck, “Walter Benjamin and Erich Auerbach: Fragments of a Correspondence”, tr. de Anthony Reynolds, Diacritics, vol. 22, nº 3/4, 1992, p. 82 apud K. Konuk, East West Mimesis, op. cit., p. 69.
[18] Cf. Erich Auerbach, “Filologia da literatura mundial”, Ensaios de literatura ocidental. Filologia e crítica, ed. de Davi Arrigucci Jr. e Samuel Titan Jr., tr. de Samuel Titan Jr. e José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo, Duas Cidades & Editora 34, 2007, pp. 357-373.
[19] K. Konuk, East West Mimesis, op. cit., p. 12.
[20] Cf. E. Auerbach, Dante, loc. cit.
[21] E. Auerbach, “Epilegomena to Mimesis”, op. cit., p. 567, nota 15. A Patrologia Latina consiste em “mais de duzentos volumes de escrita eclesiástica latina, abrangendo mais de dois mil anos de história teológica, filosófica e literária de Tertuliano ao papa Inocêncio iii [entre os séculos ii a. C. ao xiii]” (K. Konuk, East West Mimesis, op. cit., p. 142); o monsenhor Roncalli tornaria-se em 1958 o papa João xxiii.
[22] K. Konuk, East West Mimesis, op. cit., p. 55.
[23] Id., ibid., p. 163.
[24] Id., ibid.
[25] Id., ibid., p. 16.
[26] Cf. Dante Alighieri, A divina comédia. Inferno, tr. de Italo Eugenio Mauro, São Paulo, Editora 34, 1998, pp. 188-189.
[27] Trabalho atualmente em um artigo sobre essa questão.
[28] Id., ibid., p. 97.