Ao caminharmos pelas principais cidades brasileiras, logo percebemos a crescente presença, em diversos equipamentos públicos, das logomarcas de concessionárias e empresas ao lado dos brasões dos governos e prefeituras. Apesar da privatização dos serviços públicos não ser um fenômeno recente no país, sua expansão nas esferas estadual e municipal se intensificou nos últimos anos. Marco recente desse processo ocorreu em 2017, quando, sob a nova roupagem da “desestatização”, a atual gestão da Prefeitura de São Paulo lançou seu plano municipal de privatizações. A despeito do amplo e polarizado debate sobre o tema, questionamentos acerca da dimensão dos gastos públicos e possíveis riscos fiscais têm ganhado destaque devido aos recentes escândalos de corrupção, merecendo maior atenção de políticos, acadêmicos e mídia.
Dentre os instrumentos utilizados pelos estados e municípios para delegar serviços aos atores de mercado, na expectativa de redução de gastos, figuram as Parcerias Público-Privadas (PPPs). Nas principais capitais brasileiras, experiências com parcerias têm sido realizadas em diversas áreas, com destaque para as políticas de infraestrutura urbana, como saneamento, iluminação pública, habitação e mobilidade. Frequentemente confundidas com outras modalidades de contratos administrativos, como as concessões comuns – utilizadas, por exemplo, em rodovias e aeroportos – o arranjo institucional das PPPs possui uma diferença fundamental em relação às demais: a remuneração do privado pelo ente público[1]. Ou seja, apenas nas parcerias os governos remuneram as concessionárias pela prestação do serviço. Segundo de Paula (2014, p. 43-44), tal concepção do modelo foi influenciada por dois discursos: sob a ótica econômica, as PPPs possibilitariam maior inovação e eficiência na prestação dos serviços públicos; na perspectiva jurídico-financeira, o instrumento asseguraria a realização de investimentos em infraestrutura, ao mesmo tempo que evitaria a ampliação do endividamento estatal.
No entanto, uma vez que parcerias envolvem gastos públicos, no atual contexto de escândalos de desvio de recursos envolvendo atores de mercado, a promessa de maior eficiência dos serviços com diminuição das despesas tem sido observada com cautela pelos veículos de comunicação e atores da sociedade civil engajados no controle do orçamento público. Recentemente, o jornal Folha de S.Paulo apurou que estados e municípios não tem realizado controle adequado – ou ainda, qualquer controle – do impacto fiscal das PPPs[2]. Segundo dados da agência de consultoria Radar PPP e do Tesouro Nacional, a matéria aponta que, dos 53 entes que possuem contratos vigentes de parcerias, apenas cinco realizam corretamente o registro contábil das informações fiscais em seus balanços. Entre os demais, dois descumprem obrigações fiscais, seis registram apenas parcialmente e 40 não realizam qualquer registro.
A ausência de controle fiscal das PPPs representa, certamente, uma gravíssima ameaça para o equilíbrio das contas públicas. Afinal, elas envolvem diversos riscos econômicos que, se concretizados, têm impacto direto no orçamento. Especialmente nos municípios, onde têm sido implementadas PPPs em áreas de grande interesse de setores empresariais urbanos, como a infraestrutura, a pressão desses grupos pela minimização da análise de impactos financeiros das parcerias merece cautela. A fim de compreender a origem do problema, bem como vislumbrar possíveis caminhos de ação, propomos neste ensaio uma discussão que não se restringe aos contornos do polarizado debate na arena política. Nela, geralmente se discutem visões e discursos de ordem demasiado abstrata ou pouco direcionados ao entendimento dos reais mecanismos produtores dos efeitos indesejados. Para enxergarmos, afinal, onde mora o perigo, é necessário analisar as obrigações fiscais às quais os governos estão sujeitos ao realizar parcerias e, a partir disso, identificar quem controla (ou deveria controlar) os gastos públicos relativos às PPPs.
Ao estruturar o arranjo institucional das parcerias público-privadas, a lei de PPPs (Lei 11.079/2004) instituiu mecanismos, tanto de atração do interesse privado, como de controle dos riscos ao caixa público. De um lado, em benefício às concessionárias, criaram-se garantias de cumprimento das obrigações financeiras assumidas pelo Poder Público[3] – valendo-se, por exemplo, da vinculação de receitas e utilização de fundos especiais. De outro, para o controle dos gastos públicos, foram estabelecidos três tipos de constrangimentos fiscais aos governos: (i) teto de gastos; (ii) compatibilização dos gastos com metas fiscais e com leis orçamentárias e (iii) realização de registro contábil de ativos, passivos e contingências. Primeiro, em relação ao teto de gastos, a lei formulou um limite indireto, ao não conceder garantias ou transferências voluntárias aos estados e municípios se os gastos anuais com PPPs tiverem excedido 5% da receita corrente líquida do exercício[4]. Em segundo lugar, em cumprimento à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF – Lei Complementar 101/2000), a lei de parcerias exigiu que os governos elaborem uma estimativa do impacto orçamentário-financeiro[5]; compatibilizem as despesas com as metas fiscais estabelecidas no anexo da LDO[6] e com as diretrizes sobre os limites da dívida pública previstas na LRF[7] e, ainda, adicionem a previsão das PPPs nas respectivas leis orçamentárias e planos plurianuais. Por fim, em relação ao registro contábil, é importante ressaltar que a Lei de PPPs conferiu à Secretaria do Tesouro Nacional (STN) autoridade para elaboração das normas para consolidação das contas públicas[8]. Assim, a STN editou a Portaria nº 614 em 2006, tornando obrigatório o registro contábil dos ativos e passivos das parcerias – inclusive contingentes – pelos estados e municípios.
A análise do conjunto de obrigações fiscais revela a formulação de uma arquitetura jurídico-institucional do instrumento bastante robusta. Mecanismos específicos foram criados para o registro e controle dos gastos e para sua compatibilização com as previsões orçamentárias. Apesar desse quadro, os constrangimentos fiscais impostos aos entes não têm sido respeitados. O gargalo à sua implementação reside, portanto, no sistema de controle fiscal das parcerias estaduais e municipais.
Para gerir a execução dos contratos de parcerias e, mais especificamente, realizar seu acompanhamento econômico-fiscal, foi desenhado um sistema de controle centrado em um órgão gestor, cuja composição incluiria membros dos Ministérios do Planejamento, da Fazenda e da Casa Civil. Sua principal função consistiria na fiscalização dos relatórios de execução dos contratos, bem como no envio anual de informações a dois órgãos de controle externo: o Congresso Nacional e o Tribunal de Contas da União (TCU).
Contudo, esse sistema de controle previsto pela lei é aplicável apenas para a União. Em razão de sua autonomia administrativa, estados e municípios devem se encarregar da criação de regras locais, que melhor atendam a suas necessidades e especificidades. Um sistema efetivo de controle fiscal demanda dos governos locais a formulação de instrumentos adequados e suficientes, a criação de órgãos e agências especializados, e a promoção do desenvolvimento das capacidades administrativas e competências burocráticas necessárias à sua implementação. Ou seja, é preciso que estados e municípios criem sistemas de controle próprios, por meio da instituição de órgãos gestores e mecanismos de controle externo, como o envio de informações para avaliação dos órgãos legislativos, tribunais de contas, além de agências reguladoras e controladorias.
Diversos estados e municípios já contam com marcos regulatórios próprios para a adoção de PPPs. Contudo, os dados apurados pela Folha de S.Paulo indicam que, não obstante a presença de regras e obrigações fiscais, há um alarmante gargalo na implementação dos sistemas de controle fiscal. Em nossa percepção, seu enfrentamento demanda uma estratégia política abrangente, capaz de mobilizar toda a estrutura federativa. No nível subnacional, conforme já apontado, é necessário fortalecer as capacidades de controle fiscal e de controle interno (por exemplo, por meio da instituição de controladorias estaduais e municipais), promovendo a criação e implementação dos órgãos e instrumentos necessários, além da capacitação das burocracias envolvidas. Acreditamos, ainda, que o sistema local de controle se beneficiaria fortemente de instituições federativas de controle, voltadas ao acompanhamento dos orçamentos e balanços dos entes. Não se trata, no entanto, de um deslocamento do controle local para o sistema da União, mas sim da promoção de um mecanismo integrado, capaz de garantir o atendimento de padrões mínimos nas diferentes localidades.
A Secretaria do Tesouro Nacional tem exercido esse papel de coordenação federal, mas de maneira insuficiente. Os altos níveis de qualificação técnica exigidos pela tarefa demandam capacidades específicas. Nesse sentido, foi prevista pela Lei de Responsabilidade Fiscal a criação do Conselho de Gestão Fiscal (CGF)[9], cuja função consistiria no acompanhamento das três esferas federativas, de forma a promover harmonização e coordenação do controle entre os entes. Contudo, embora já existam projetos de lei em tramitação para criação do CGF, nenhuma proposta foi aprovada. Segundo Afonso e Ribeiro (2016), a ausência do CGF é um importante fator para o não cumprimento de obrigações fiscais pelos entes, ou ainda para a produção de “medidas fiscais criativas” e para a falta de padronização e transparência ativa nos governos locais.
Compreender a dimensão dos riscos fiscais impostos pelas parcerias público-privadas estaduais e municipais requer ir além dos debates generalizantes acerca das vantagens e desvantagens do instrumento em abstrato. Precisamos, antes de mais nada, ter maior clareza sobre os arranjos institucionais, os instrumentos políticos e as práticas que compõem o sistema de controle das contas públicas e, a partir disso, compreender os mecanismos que produzem os resultados observados. Considerando que existe um robusto quadro de obrigações fiscais impostas aos entes, uma vez que os dados indicam a ausência de um controle efetivo do caixa público, temos boas razões para acreditar na existência de um gargalo no sistema de controle das parcerias estaduais e municipais. Como consequência, os riscos econômicos atrelados às PPPs geram um preocupante cenário de instabilidade orçamentária e financeira futura. A ausência de um controle externo autônomo e empoderado é especialmente grave nos municípios, onde a adoção de PPPs em áreas de infraestrutura urbana gera maior pressão dos atores de mercado pela minimização da análise de impactos financeiros. O fortalecimento das capacidades locais de controle e a promoção de um órgão de acompanhamento e coordenação a nível federal parecem ser caminhos interessantes para começarmos a encontrar as saídas do labirinto fiscal.
Marília Rolemberg Lessa é mestranda em Ciência Política (DCP/USP), graduada em Direito (FDUSP) e pesquisadora júnior do CEM/USP.
Ursula Dias Peres é doutora em Economia (FGV/SP), professora e pesquisadora do Programa de Graduação e Mestrado em Gestão de Políticas Públicas da EACH/USP, pesquisadora associada ao CEM/USP.
Com agradecimentos a Eduardo Marques, Henrique Almeida de Castro, Marco Antônio Moraes Alberto e Telma Hoyler.
Referências bibliográficas
Afonso, J. R. & Ribeiro, L. Um conselho para responsabilidade fiscal. Conjuntura Econômica, v. 70, n. 8, p. 20-22, 2016.
de Paula, P. As Parcerias Público-Privadas de metrô em São Paulo: as empresas estatais e o aprendizado institucional no financiamento da infraestrutura de serviços públicos no Brasil. 2014. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo.
di Pietro, M. S. Direito Administrativo. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2015.
[1] Art. 2º, Lei 11.079/2004.
[2] Hirata, T. “PPPs são bombas-relógio sobre o caixa público”. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 mai.2018. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/ppps-sao-bombas-relogio-sobre-o-caixa-publico.shtml. Acesso em: 04 jun. 2018.
[3] Art. 8º, Lei 11.079/2004.
[4] Art. 28, Lei 11.079/2004.
[5] Art. 10, II, Lei 11.079/2004.
[6] Art. 10, I, “b”, Lei 11.079/2004.
[7] Art. 10, I, “a”, Lei 11.079/2004.
[8] Art. 25, Lei 11.079/2004.
[9] Art. 67, Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000).
Imagem de divulgação – Estádio da Fonte Nova em Salvador-BA, 2007. https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Est%C3%A1dio_da_Fonte_Nova_em_Salvador-BA_-_panoramio.jpg This file is licensed under the Creative Commons Attribution-Share Alike 3.0 Unported license. Attribution: enioprado.