O capitalismo de expulsões e seus descontentes

Jorgemar Soares Félix
Resenha

SASSEN, Saskia. Expulsões – brutalidade e complexidade na economia global Trad. Angélica Freitas, Rio de Janeiro, Editora Paz & Terra, 2016, 336 páginas.

Jorgemar Soares Félix

 

Uma das principais particularidades do trabalho da socióloga holandesa Saskia Sassen é sua inconformidade com as “categorias familiares” ou, em outras palavras, com a perenidade das definições oferecidas pela sociologia a  fenômenos em constante evolução e mutação[2]. Segundo a professora da Universidade de Columbia, incluída em lista dos 50 maiores pensadores do planeta (Prospect Magazine), o que nos parece familiar e aceitável como explicação da realidade oculta aquilo que deveríamos investigar e compreender melhor, nos limita como pesquisadores ou indivíduos em busca do conhecimento e da possibilidade de interferência na sociedade. Sassen está sempre em guerra com as abordagens conceituais ordinárias.

Foi a partir desta inquietação que ela trouxe à tona o conceito de “cidades globais”[3] para ir além dos termos metrópoles, megalópoles e outros para explicar a nova configuração das cidades em rede moldada pela globalização. Ela colocou luz sobre a intersecção entre o local e o global até então pouco perceptível pela sociologia voltada à ecologia das formas urbanas tradicionais, à distribuição da população, das classes, dos grupos sociais, estilos de vida no espaço e os chamados “problemas urbanos”. Sassen os transformou em problemas globais regidos não apenas por decisões políticas locais ou pontos de vista ideológicos dos gestores municipais, mas pelo capital financeiro (sobretudo sua fração imobiliária) globalizado e hipertrofiado, que colocou as cidades à sua mercê.

Nesta trilha de pesquisa, Sassen chega à categoria “expulsões”, segundo seu ponto de vista, muito mais esclarecedora da dinâmica do capitalismo contemporâneo. Este seria o imperador de um processo de “seleção selvagem” em meio a um desenvolvimento econômico excludente e limitado no tempo. Ou construtor de “formas predatórias”. Sassen procura investigar os limites. Até onde costumamos parar nossas análises, sem ultrapassar estas fronteiras, estas barreiras e avançar sobre os extremos para compreendê-los, explicá-los e transformá-los? Ela escolhe três temas exemplares para detectar “tendências subterrâneas” na sociedade contemporânea: i) as transformações no capitalismo a partir da década de 1980, ii) o novo mercado global de terras, a hegemonia das “finanças” na economia e iii) o impacto desta dinâmica no meio ambiente ou, como ela prefere, a formação de “terra morta e água morta”.

Ao abordar temas variados e, aparentemente, sem conexões claras, Sassen mostra a brutalidade e complexidade da economia global. Ela conclui, assim, com a constatação de que a economia contemporânea extrapola a desigualdade de classes tradicional ou intrínseca do capitalismo. Ela encontrou mesmo formas, no fim do século XX e no século XXI, de se estabelecer como um “sistema orientado para expulsões de tudo o que não se encaixa em sua lógica em evolução” (Pág. 257). Visitante contumaz do Brasil e com relações com a América Latina, pois morou em Buenos Aires até a adolescência, Sassen tem uma sensibilidade maior do que outros autores anglo-saxônicos para incluir o continente no seu campo de análise. Por isso é precisa ao afirmar que, seguindo a lógica de expulsão peculiar desse capitalismo, o Brasil dificilmente conseguiria manter um projeto desenvolvimentista por muito tempo. Ao escrever, em 2012, ela prevê o enquadramento do país, rapidamente, nos mesmos modelos seguidos pelo Ocidente (Pág. 258).

O livro é dividido em quatro capítulos, além da introdução e da conclusão. O primeiro capítulo aborda a “economia em contração” produtora de exclusões cada vez maiores. A autora visita a história das mutações do modelo keynesiano do pós-guerra para o neoliberalismo regido pela política de austeridade fiscal sob a justificativa de necessidade de “ajuste”. No entanto, o pleonasmo oculta o altíssimo nível de evasão fiscal verificada em boa parte das economias. Em 2010, afirma a partir de pesquisas citadas, entre as 2.772 empresas norte-americanas proprietárias de 81% do total de ativos empresariais, com uma média de 23 bilhões de dólares por empresa, o pagamento de impostos correspondeu em média a 16,7% dos lucros a despeito destes terem crescido 45,2% – um recorde. Os Estados Unidos aparecem em primeiro lugar na sonegação fiscal, seguido pelo Brasil (pág. 33).

Os subterfúgios para os mais ricos pagarem menos impostos, segundo Sassen, agrava a desigualdade social e acirra as expulsões – “de projetos de vida e de meios de sobrevivência, de um pertencimento à sociedade, e do contrato social que está no centro da democracia liberal” (Pág. 39). Estas expulsões podem, muitas vezes, estar ocultas, omitidas ou submersas. Mas estão lá, determinando as relações sociais. É o caso das classes médias empobrecidas que podem até conseguir conservar belas casas, mas amargam “perdas escondidas por trás das fachadas decoradas”. Cada vez mais, destaca a autora, esses lares têm vendido a maior parte de seus bens para conseguir fazer pagamentos de suas necessidades. Estas condições extremas guardam grande parte da culpa pelo aumento dos suicídios em muitos países ricos. Sassen dedica grande atenção a esta brutalidade tão cara às Ciências Sociais.

Tal anomalia, diz ela, redefine o espaço da economia. Os programas de austeridade, defende Sassen, em nenhum momento têm em vista contribuir para o aumento do emprego e da produção, mas apenas – como é de conhecimento amplo – o pagamento do serviço da dívida dos países. O desemprego e a pobreza seguem aumentando o número de pessoas com privações na Europa, chegando a 41% na Bulgária contra 1% em Luxemburgo, segundo números do Eurostat citados no livro. A desigualdade social invade, assim, países historicamente menos vulneráveis a este problema, como a Finlândia. Todos estes fatos, segundo Sassen, ajudam a explicar o deslocamento em massa. Em 2011, 42,5 milhões de pessoas no planeta haviam saído à força de suas casas como consequências dos mais variados tipos de conflitos.

O inovador na análise é que Sassen inclui os presidiários entre os expulsos e analisa como, na lógica da austeridade fiscal, a privatização dos presídios forjou uma força de trabalho barata para gigantes globais do capitalismo contemporâneo, como Wall Mart, Chevron, Starbucks, AT&T, Bank of America entre outros (Pág. 86). Muitas empresas multinacionais estabeleceram fábricas dentro de prisões privadas pagando salários de 12  a 40 centavos de dólar (contra a média de 17 a 20 dólares nos Estados Unidos). O “encarceramento em massa” passou a ser um veículo poderoso de expulsão para o capitalismo contemporâneo, na visão de Sassen. A população encarcerada dos Estados Unidos aumento 600% nas últimas quatro décadas, resultado da imposição de ocupação das camas e celas para maximizar o lucro.

O segundo capítulo aborda o novo mercado de terras a partir da aquisição por governos e empresas estrangeiros a partir de 2006. A tese de Sassen é que, ao detectarem o risco de uma crise financeira na magnitude da iniciada em 2007, o mercado tratou de direcionar capital para uma mercantilização da terra sem precedentes na história. Dois motivos são apontados pela autora, a demanda por cultivos industriais e o preço dos alimentos, ambos relacionados com o agronegócio. No caso do Brasil, Sassen destaca o avanço da soja (Pág. 101). A extração de recursos naturais também dirige esse processo sob a benção de “elites predatórias” (pág. 110)[4] constituídas em diversos países preocupadas em atender à imposição do capital global para moldar a economia política e reposicionar os países do hemisfério Sul “como lugares de extração de recursos naturais e até do poder de consumo de sua população” (Pág. 110). Sassen dedica grande espaço a um mapeamento detalhado da aquisição de terras e como esta nova configuração expulsa a própria autoridade soberana dos Estados sobre seus territórios.

No terceiro capítulo, Sassen analisa a financeirização da economia no século XXI. A autora segue a distinção feita por alguns economistas marxistas de capital financeiro (sistema bancário tradicional) e finança (ou, em inglês, financial e finance)[5]. Segundo ela, as finanças podem ser entendidas como a capacidade de securitizar quase tudo em uma economia. Em outras palavras, “enquanto o negócio do sistema bancário tradicional é vender o dinheiro que o banco tem, o do setor financeiro é vender algo que não tem e, para fazer isso, o setor financeiro precisa invadir – isto é – securitizar setores não financeiros” (Pág. 18). Ela considera as finanças um “espaço operacional”, um conjunto complexo de atores e capacidades de operação. Como exemplo, cita o estoque de físicos que trabalham para o Goldman Sachs com uma capacidade matemática imensamente superior a dos executivos mais bem remunerados. Neste espaço operacional, o banco criou derivativos para o governo grego que facilitavam a entrada da Grécia na União Europeia e, em seguida, desenvolveram para outro cliente instrumentos que gerariam lucro se o governo da Grécia falisse. Sassen caracteriza a financeirização quantificando o total de derivativos em circulação em 2008, em torno de 600 trilhões de dólares, contra um PIB global de 45 trilhões.

O meio ambiente transformado pela lógica da financeirização e da exploração pela ganância é o tema do último capítulo, no qual Sassen mapeia a extração de água no planeta pelas empresas transnacionais, principalmente a Nestlé. É um capítulo onde quase todos os temas esparsos tratados no livro se encontram em uma materizalização perversa e deletéria para o planeta. Sassen denomina de “terra morta” as fontes secas pela extração desregulamentada. Terras que talvez nunca mais sejam produtivas. Ela também aborda outras brutalidades contra a natureza, como o faturamento hidráulico para a produção do gás de xisto, as contaminações por chumbo e cromo, a radioatividade, os acidentes nucleares e várias outras formas de o capital ir aos extremos em busca de sua reprodução a despeito das consequências para a Humanidade, sobretudo o aumento das expulsões.

Sassen deixa uma pergunta inquietante no fim do livro: quais são os espaços dos expulsos? Sua resposta é que as medições comuns da economia e dos estados modernos os tornam invisíveis. O mérito do trabalho de Sassen é torna-los visíveis a partir de conexões pouco comuns, mesmo raras, afeitas a uma pensadora sempre inquieta e inovadora. O livro nos obriga a abandonar o conforto de trabalhar apenas a partir de interpretações sedimentadas dos fenômenos contemporâneos quando existem tantas relações sociais em ebulição no interior de uma realidade complexa a ser desvendada.

 

Jorgemar Soares Félix é doutorando em Ciências Sociais (bolsista CNPq), mestre em Economia Política (PUC-SP) e professor convidado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH-USP), da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e da PUC-SP. jorgemarfelix@gmail.com

 

[2] Ver entrevista que fiz com a autora para o nº  18 (2015) da revista Ponto e Vírgula, do Programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, disponível no site da revista http://revistas.pucsp.br/index.php/pontoevirgula/article/view/29811

[3] Ver SASSEN, S. (2001) The global city: New York, London, Tokyo, 2ª ed. Revisada, Princeton, Princeton University Press.

[4] O termo refere-se às elites nacionais cujos objetivos de acumulação estão mais relacionados aos do capital globalizado e são pouco ou nada íntimos dos interesses de seus próprios países. Sobre as elites predatórias no Brasil, ver BRESSER-PEREIRA, L.C. (2016) A construção política do Brasil, São Paulo, Editora 34.

[5] Sobre esta questão conceitual, ver CHESNAIS, F. (2016) Financial capital today, corporations and banks in the lasting global slump, Brill, Leiden/Boston.