Por Sandra Garcia, Wânia Pasinato e Juliana Martins
14 set. 2020
Como campo político e tema de estudos, a violência doméstica contra as mulheres e seu enfrentamento não são uma pauta nova no Brasil, pelo contrário, estiveram sempre presentes no ativismo político de mulheres e feministas, surgindo com maior intensidade a partir do período de redemocratização do país, com a criação, ainda na década de 1980, da primeira Delegacia de Defesa da Mulher, na cidade de São Paulo, modelo de política pública que posteriormente se expandiu para outros estados e para o Distrito Federal. Desde então, os movimentos feministas percorreram um longo e árduo caminho até a aprovação, em 2006, do marco legal mais importante para o enfrentamento da violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha – lei n. 11.340/2006 (Pasinato, 2015; Hein, 2017).
Em 2015, mais um passo importante foi dado com a aprovação da Lei do Feminicídio (lei n. 13.104/2015), que qualificava como hediondos homicídios motivados por condições de gênero, ou seja, mulheres que foram mortas simplesmente por serem mulheres.
Juntamente com os avanços legislativos, entre 2003 e 2015 o país conheceu sua primeira política nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres que possibilitou avanço na criação de serviços, produção de documentos técnicos, capacitação de profissionais e produção de conhecimento sobre a violência de gênero contra as mulheres no país.
Apesar dos avanços da política, os números de violência contra as mulheres apresentaram pouca redução no período. Em 2018, tivemos 4.519 mulheres assassinadas, uma a cada duas horas, segundo o Atlas da violência 2020 (FBSP; Ipea, 2020). A maior parte das vítimas (68%) é negra, é morta por armas de fogo (51,3%) e, em 30,4% dos casos, dentro de casa.
Ainda de acordo com o documento, seguindo a tendência geral de queda nos números de homicídios, entre 2017 e 2018 houve uma redução no número de homicídios de mulheres, sendo registrado -12,3% de casos entre mulheres não negras e -7,2% entre mulheres negras. Na década (2008-18), contudo, os homicídios de mulheres negras aumentaram 12,4%, enquanto os de mulheres não negras reduziram 11,7%.
A partir de 2015 o quadro de desenvolvimento das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres começou a se modificar em razão das mudanças provocadas após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Entre 2015 e 2018, sucessivas transformações na estrutura da Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres (SNPM) levaram a um esvaziamento da capacidade administrativa, financeira e política do órgão que viu reduzir seu papel nacional de indutor das políticas para as mulheres.
De acordo com um relatório do TCU (2019), a partir de 2015 e com as mudanças posteriores, o órgão perdeu 80% de seu orçamento e 42,3% de seu quadro de pessoal. Estudo recente publicado pela Consultoria Legislativa da Câmara dos Deputados (Rodrigues, 2020) mostrou que o atual governo desidratou o orçamento das políticas para mulheres ao cortar os recursos no orçamento de 2020. Em junho o órgão dispunha de 130 milhões para investir nas políticas para mulheres, mas nenhum centavo foi destinado para ações de enfrentamento à pandemia. Hoje, aparentemente, o problema da SNPM não é falta de recursos financeiros, e sim uma clara decisão política de não os utilizar para apoio de respostas para a pandemia.
Em relação aos equipamentos e serviços públicos voltados ao atendimento das mulheres vítimas de violência, os dados também não são animadores. Os últimos anos foram de desmontes e retrocessos no campo do enfrentamento à violência contra as mulheres que não podem ser ignorados porque é nesse contexto que a pandemia chega e nos coloca frente ao desafio de responder à violência de gênero em condições totalmente novas, inesperadas e que exigem soluções rápidas, inovadoras e efetivas.
A Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Brasil, 2019) mostra um cenário de retrocesso na manutenção desses equipamentos, a começar pela redução no número de organismos de políticas para mulheres: em 2013, 27,5% dos municípios possuíam esses organismos, que em 2018 eram encontrados apenas em 19,9%. Essa diminuição ocorreu de forma desigual entre as regiões do país e entre os municípios, afetando mais severamente aqueles de menor porte (com menos de 20 mil habitantes).
Outro dado importante está relacionado com os serviços especializados. Em 2018, o IBGE mostrou que 134 municípios possuíam casas-abrigo, em 385 era possível encontrar centros de referência especializados de atendimento às mulheres e em 460 municípios existiam delegacias da mulher.
É importante, portanto, destacar as conquistas obtidas nesse campo, mas também reconhecer que estamos muito distantes de garantir às mulheres o direito à vida.
É nesse cenário de desestruturação que a pandemia chega ao Brasil, trazendo consigo os ecos sobre o aumento da violência ocorrida em outros países e a necessidade de criar soluções e implementar respostas que possam superar as limitações do isolamento social.
No Brasil, a crise sanitária também encontrou a desigualdade social agravada pelas crises política e econômica, que têm sido escaladas em níveis alarmantes e que ganham contornos mais dramáticos sob a lente de gênero, raça/cor.
Pudemos observar no Brasil, no primeiro semestre de 2020, a redução nos registros de ocorrências relacionadas à violência doméstica e que dependiam da presença da vítima na delegacia. Essa redução não significa a diminuição da violência contra a mulher, uma vez que observamos o aumento das chamadas de emergência para o 190, número das polícias militares, e para o 180, do governo federal, e dos registros de feminicídio no mesmo período (FBSP, 2020). No entanto, importante dizer que, se em tempos de normalidade já é bastante difícil para as mulheres que vivem situações de violência de gênero procurarem ajuda, a situação foi agravada pelas circunstâncias associadas às medidas de contenção sanitária da Covid-19.
Ademais, embora importante para o conhecimento das autoridades e a tomada de medidas para responsabilização dos agressores, a denúncia às instituições policiais não pode ser o único canal disponível para a mulher em situação de violência. Como foi demonstrado por pesquisa recentemente realizada a respeito do impacto da pandemia na vida das mulheres (SOF, GN, 2020), entre as 11% de mulheres que disseram ter sofrido violência, a violência psicológica como as formas de controle, desqualificação das mulheres relacionadas às atividades de cuidado foram mais citadas que as violências física e sexual, violências que seriam melhor acolhidas por serviços de atendimento e orientação psicossocial.
Infelizmente, como mostrado com os dados do IBGE citados, o que observamos é um desmonte das políticas públicas nessa área e, consequentemente, uma redução no número de equipamentos e pessoas disponíveis para o acolhimento e acompanhamento dessas mulheres. Passados seis meses desde a chegada da pandemia ao Brasil, que lições podemos aprender a partir do contexto de isolamento social visando ao aperfeiçoamento dos mecanismos de enfrentamento da violência contra a mulher, e particularmente, em situação de violência doméstica?
Apesar do contexto de desestruturação dos serviços, é importante reconhecer a rápida resposta que foi dada para suprir o atendimento presencial por atendimento remoto. Essa ação demonstra a relevância que a violência doméstica e familiar contra as mulheres assumiu para a sociedade brasileira. Ou seja, este não é um assunto privado ou pessoal. Este é um assunto social, com todas as implicações políticas e mudanças estruturais decorrentes dessa visão.
Organizações não governamentais, organismos de políticas para mulheres nos estados e municípios, empresas, instituições do sistema de justiça e segurança pública se mobilizaram de diferentes formas na tentativa de oferecer ferramentas e canais de denúncias e acolhimento para as mulheres confinadas e em situação de violência. Vários estados disponibilizaram boletins de ocorrência eletrônicos para casos de violência doméstica, empresas disponibilizaram para suas funcionárias canais de atendimento e fizeram campanhas alertando para o problema. Profissionais de saúde e justiça se uniram em projetos de acolhimento e encaminhamento de casos em diferentes contextos: acompanhamento psicológico, orientação jurídica, elaboração de denúncias ou encaminhamento aos equipamentos públicos de acolhimento. No entanto, são experiências que devem ser monitoradas para que possamos avaliar sua relevância e formas de incorporação a uma nova política de enfrentamento à violência contra as mulheres mais adequada à realidade social, política e econômica do país pós-pandemia.
Sem esquecer que, muito embora essa nova política de enfrentamento da violência contra a mulher incorpore o recorte de gênero na sua construção, a verdadeira transformação social somente ocorrerá quando as políticas públicas de educação introduzirem a temática do gênero de forma articulada com o combate à violência contra meninas e mulheres. Dessa forma será possível construir uma sociedade mais igualitária e sem violência de gênero nas esferas pública e privada.
Sobre as autoras
Sandra Garcia é antropóloga, mestra em Gender and Development Studies (IDS/Sussex University, Reino Unido) e doutora em demografia (Unicamp). É pesquisadora sênior e coordenadora do Núcleo de População e Sociedade do Cebrap.
Wânia Pasinato é socióloga, com doutorado pela USP e pós-doutorado pela Unicamp. É consultora especializada em pesquisas aplicadas sobre gênero, violência contra as mulheres e políticas para enfrentamento à violência doméstica e feminicídios.
Juliana Martins é psicóloga, com mestrado e doutorado em psicologia (USP). É coordenadora institucional do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Referências bibliográficas
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Ilustração Girl Power, de Viktorija Semjonova