Um imaginário de violência

Annateresa Fabris
Resenha

ALONSO, Angela; ESPADA, Heloisa (orgs.). Conflitos: fotografia e violência política no Brasil 1889-1964. São Paulo: IMS, 2017.

por Annateresa Fabris

O advento da fotografia ajudou a forjar uma nova memória coletiva dos acontecimentos históricos. Enraizada anteriormente em relatos orais, em narrativas impressas e em modalidades de representação visual que não se caracterizavam pela exatidão associada com a fotografia, a escrita da história conta, desde a segunda metade do século XIX, com um auxiliar de peso: um novo tipo de imagem que se relaciona com o acontecimento de maneira singular. Como lembra Michel Frizot, a fotografia de um acontecimento é uma imagem, de certo modo, pré-vista: sua tomada é fruto de uma construção imaginária, gerada pelo contato entre uma determinada realidade e um sistema cultural que circunscreve o que pode ser mostrado, compreendido e admitido.

A reflexão do autor francês aplica-se, sem dúvida, a Conflitos: fotografia e violência política no Brasil 1889-1964 (2017), que coloca em pauta não uma narrativa totalizante, e sim “fragmentos de uma história de disputas políticas e armas”, cujos significados devem ser buscados nas imagens feitas a partir de recortes específicos do que pode/deve ser mostrado, como ressalta Heloisa Espada. Curadora da mostra e coorganizadora com Angela Alonso do volume homônimo, Espada propõe um roteiro de questões que repontam nos textos dos diversos colaboradores: objetivos dos autores das fotografias e dos comitentes; tecnologia fotográfica disponível em cada período; estratégias visuais adotadas; formas de comercialização e de circulação das imagens; postura ideológica dos órgãos da imprensa que as divulgam etc.

Os ensaios, que propõem uma reflexão sobre diferentes modalidades de uma luta simbólica, são um convite a perceber como a fotografia, ao conferir uma determinada forma aos efeitos do acontecimento, desempenha o papel de “fábrica da história” (Frizot). O modo pelo qual a imagem técnica singulariza um evento é o leitmotiv dos capítulos dedicados à Revolta da Armada e às Guerras de Canudos e do Contestado, já que seus autores se debruçam sobre a relação existente entre os operadores e os comitentes das imagens. Juan Gutierrez, Flávio de Barros e Claro Jansson estavam engajados militarmente nos episódios registrados, o que explica a coincidência entre seus pontos de vista e os dos destinatários. Numa avaliação global dos três casos, é possível afirmar que o que ficou para a posteridade não foram imagens dos conflitos, e sim fotografias sobre seus efeitos, evidenciados por estratégias de encenação que não deixam dúvidas sobre o lugar que cabe aos vencedores e aos vencidos.

A popularização das revistas ilustradas cria um novo elo entre fotografia e acontecimento, colaborando com outras formas visuais (e não) na elaboração da cultura política de uma época histórica, como assinalava Ana Maria Mauad num texto de 2008.    No catálogo do Instituto Moreira Salles, a presença desse instrumento midiático e seu impacto sobre o público podem ser acompanhados a partir da cobertura das Revoluções de 1924, 1930 e 1932. Atento ao caráter oficial das tomadas relativas à “insubordinação” de São Paulo, Aniceto de Barros Gomes abastece as revistas com cenários de ruínas controlados pelas forças da ordem e com retratos de militares. A ele podem ser contrapostos os cartões-postais de Gustavo Prugner, que apresentam uma espécie de contradiscurso, no qual ganham espaço momentos do conflito e seus efeitos sobre a população. Narrativas oficiais estão também na base da análise dedicada à tomada do poder por Getúlio Vargas e à guerra civil de 1932. Representada pelas principais revistas ilustradas como uma narrativa épica, na qual desponta um novo ator político – a população aclamando os vitoriosos ou festejando nas ruas –, a Revolução de 1930 é contestada pelo confronto separatista de 1932. Para exaltar a união nacional, as revistas adotam uma nova estratégia visual, cobrindo a chegada de tropas de outros estados e seus deslocamentos durante o conflito.

Símbolos antagônicos são objeto de outros dois ensaios: Lampião e Vargas. A luta simbólica em volta do primeiro abarca dois aspectos: a construção de uma representação teatralizada da vida dos cangaceiros promovida pelo próprio Lampião e a contraofensiva oficial, cujo clímax será representado pelo registro macabro, mas não menos espetacular da derrota de um dos principais inimigos do Governo. A morte de Vargas, por sua vez, é analisada em suas diversas implicações políticas, tendo como epicentro a guerra de imagens travada em vários pontos do país com significados altamente emblemáticos, que vão de uma afirmação regionalista (imagem de Porto Alegre com a faixa do VI Salão de Arte Francisco Lisboa) à conclamação a uma intervenção militar (O Cruzeiro).

O catálogo traz ainda três ensaios que contextualizam historicamente os momentos de conflitos destacados: de 1889 a 1916; entre 1923 e 1935; e o curto espaço de tempo que separa 1954 de 1964. Nem todos os conflitos registrados fotograficamente e presentes na mostra e no catálogo foram objeto de ensaios, deixando em aberto uma interrogação: seus autores foram igualmente agentes produtores de “novos textos para alimentar o imaginário da história” (Frizot)? Nos ensaios publicados no volume, as fotografias prestam-se frequentemente a esse desígnio.  Alimentam a visão crítica do leitor, instado a ir além da primeira impressão e a adentrar as imagens em busca de um punctum ou de detalhes que abram novas possibilidades de leitura. E o convidam a interrogar-se sobre o modo pelo qual elas pretendem participar da construção de uma narrativa da história, para além de uma possível naturalização dos eventos e de seus registros.

 

Annateresa Fabris é professora titular aposentada da Escola de Comunicações e Artes da USP, historiadora e crítica de arte. É autora, entre outros, de A fotografia e a crise da modernidade (2015).

 

imagem da chamada: Rendição de amotinados da Revolta de Aragarças, GO, 1959 | foto: Campanella Neto/CPDoc Jornal do Brasil.