Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado – se é obra singular na tradição intelectual brasileira – não o é em meio às reflexões do sociólogo Sérgio Miceli e por vários motivos. Primeiro, porque retoma os estudos comparativos entre a vida intelectual brasileira e a argentina, tema do seu livro anterior, Vanguardas em retrocesso: ensaios de história social e intelectual do modernismo latino-americano; segundo, porque reexamina o fenômeno das vanguardas modernas nos dois países, o que o leva a revisitar o período que se estende entre 1920 a 1940, tempo privilegiado pelo autor desde as suas primeiras publicações e anos decisivos à mudança da cultura, produzida no curso da modernização acelerada; terceiro, por seu caráter de reflexão desassombrada dos intelectuais e letrados, pondo em escrutínio autores consagrados e vistos como personalidades inefáveis, a exemplo de Jorge Luís Borges; finalmente, por sua condição de combinar pesquisa ampla e multifacetada com análises minuciosas e exaustivas da vida intelectual, que revela profunda familiaridade com a história do país vizinho, a exigir do leitor atenção redobrada e a busca permanente de referências. O livro surpreende a todo momento, por seu atributo de trazer à cena novos e inusitados ângulos de interpretação, o que o torna realmente exclusivo, mesmo para aqueles familiarizados com a obra do sociólogo.
O exercício da comparação, já salientado nas primeiras frases – quando o sociólogo explicita que o seu “interesse pela história intelectual e cultural argentina” o “levou a compará-la com o caso brasileiro”, pela similitude entre as condições de surgimento das vanguardas entre os dois países – revela preocupações de natureza mais funda na trajetória do sociólogo e que ultrapassam as questões da elucidação do método, como a assinalada na passagem sobre a perspectiva analítica que guia o exame da revista modernista SUR: “Não sou contra nem a favor de SUR. Quis elaborar uma análise do experimento suscetível de combinar o perfil morfológico dos mentores, a peleja doutrinária e política da qual foram sujeitos e contendores e o invejável patrimônio simbólico que se empenharam em construir… Refuto as armadilhas de praxe: a toada culturalista apartada do acicate político; a denúncia vazia do empreendedorismo de classe; o louvor estetizante de primícias literárias” (p 15).
Tais palavras condensam a substância da perspectiva analítica de Sérgio Miceli, bem como o cerne do seu empreendimento intelectual, liberto das visões de autoexaltação do métier, mas comprometido, por isso, com o desvendamento, mesmo a dessacralização, de um ofício comumente identificado às vocações mais naturalizadas e visto como ausente de ancoragem social, por vezes aparentado das expressões do sublime. Contrariamente, o sociólogo recusa as veleidades afirmadoras da criação desabrigada de amarras e opta por encarar as questões estruturais presentes na constituição das vanguardas modernas nesses países. Centrada, prioritariamente, nos anos de 1920, a obra avança em direção às décadas seguintes, período privilegiado pelo autor, que corresponde ao processo de modernização e de intensa transformação dessas sociedades, que passaram a conviver com a presença maciça de imigrantes, obrigando suas elites a absorver o impacto resultante do trato com o diverso, sendo compungidas a enfrentar a figura estridente dos estrangeiros e receber os forasteiros.
Neste cenário de profundas mudanças, vicejaram as vanguardas, que se viram impelidas a responder aos desafios postos pela crise oligárquica, por vezes instadas a afirmar o passado, como se percebe na poética de Borges, sobretudo dos anos 1920, e na exploração das fontes populares em Mário de Andrade, autores analisados no livro anterior Vanguardas em Retrocesso. Apesar do terreno cediço, plantaram as sementes da nova cultura em solo instável para receber a fertilização do novo, condição em larga medida responsável pelo mal-estar que se expressa nas obras dos vanguardistas, sintoma das hesitações do presente. “Borges e Mário de Andrade buscaram infundir uma feição nacionalista, até nativista, à produção poética e ensaística, o que também os ajudou a eufemizar as marcas de classe, o rechaço dos imigrantes e das dissonâncias culturais derivadas de sua presença, esfumando, assim, certa nostalgia elitista tão vibrante no estoque expressivo de frações arruinadas e mesmo o entranhado conservadorismo social e político. A consecução desses alvos, na aparência tão contraditórios, viabilizou-se em parte pelo alarde em torno da adoção de formas, linguagens e estilos importados dos repertórios vigentes nas metrópoles europeias” (Vanguardas em retrocesso, p 36-37).
Sonhos da periferia deriva, assim, das preocupações mais fundamentais de Miceli com os problemas da cultura e dos intelectuais em sociedades periféricas como as latino-americanas, daquelas expressões do moderno em realidades refratárias à modernização em muitas das suas dimensões. Nessa medida, a comparação enseja considerar a “posição periférica das sociedades latino-americanas em relação às metrópoles culturais europeias, situação histórica que lhes permitiu, ao mesmo tempo, desvencilhar-se dos entraves e ditames impostos pelas potências colonizadoras declinantes, Espanha e Portugal” (Sonhos da periferia, p 20). Esclarece-se, nessas passagens, os problemas intelectuais de fundo do autor, ligados à compreensão das hesitações do moderno nesses contextos, das formas específicas da sua realização que, embora não se desprendam das propostas forâneas e avançadas nos centros hegemônicos, guardam particularidades, sem que, com isso, devam ser tratadas no crivo das realizações subalternas, tampouco de mera cópia do externamente dado, mas cuja singularidade já se manifesta na própria combinação da linguagem modernista com representações da nação.
Não obstante os traços oligárquicos e os modos diferenciados de expressão da nacionalidade, característicos a grande parte das vanguardas argentinas e brasileiras e que permitem aquilatar a envergadura das invenções, os movimentos foram distintos, como se percebe nas formas de estruturação, nos apoios recebidos e nas modalidades de recepção interna e externa. As repercussões do programa estético da revista SUR – criada em 1931 e patrocinada por Victoria Ocampo, intelectual e personalidade pertencente à elite e frequentadora das altas rodas argentinas – ultrapassaram as fronteiras nacionais por ter logrado afirmar princípios de uma cultura remida do tempo, liberta das circunstâncias, espécie de revelação da mais pura linguagem estética, pelo menos até o momento em que, às contradições mais agudas da história do país, somaram-se os impasses oriundos da Segunda Guerra Mundial. Não é fortuito que Borges tenha sido o seu representante mais paradigmático, entendido como criador de “uma literatura desmaterializada, infensa às servidões do mundo social e temporal” (p 74-75). Tais circunstâncias são componentes inequívocos do êxito que obteve como escritor atemporal, espécie de corporificação dos valores estéticos, produtor de uma linguagem acessível apenas a iniciados, por ter destituído a literatura das suas contingências, decantando-a das gangas da história. “Borges incensava o ego do leitor ao lhe conferir o privilégio de sentir-se dotado do cabedal indispensável ao desfrute de iguarias; ato contínuo, ele nivelou o status do leitor ao do escritor, como que turvando a agência autoral” (p 92). Daí para a consagração além-fronteiras resta apenas um passo.
O caráter de publicação patrocinada por figuras cosmopolitas e familiarizadas com o Grand Monde letrado e das artes, especialmente o francês, naturalmente predispõe a que SUR tenha repercussão internacional e possa, igualmente, divulgar os seus colaboradores, dentre os quais Borges era o mais apto a ser externamente celebrado. Vários fatores concorreram para a sua consagração , sendo importante o fato de o escritor pertencer ao mesmo universo social de Victoria Ocampo e daqueles que giravam em torno da mecenas. Reversivamente, o aprofundamento da sua consagração revertia sobre a sua literatura, que foi adquirindo traços crescentemente desmaterializados, visíveis na linguagem quase insondável. Esse conjunto de atributos expressivos, se fez do escritor a figura mais proeminente da vida intelectual argentina, não foi, todavia, exclusivo.
As análises das trajetórias da dupla de outsiders, Alfonsina Storni e Horacio Quiroga, desenvolvida na última parte do livro, permitem a Sérgio Miceli criar uma imagem contrastante do círculo exclusivo de SUR. De origem popular e imigrante, a escritora produziu uma obra variada em função das circunstâncias adversas da sua vida; impelida a colaborar nos veículos da indústria cultural em franco processo de modernização, legou escritos sensíveis e matizados, presos às imposições do estilo inerente a cada meio. Da mesma maneira Quiroga, oriundo de uma família tradicional, mas dilacerada por tragédias, viveu permanentemente sob o signo da provisoriedade, circunstância que modelou sua criação e a sua própria desdita. “Prensados entre o rechaço movido pelos líderes da vanguarda martinfierrista e a adulação concedida pelos periódicos de ampla tiragem, eles deram feição inovadora a gêneros canônicos por meio de linguagens ajustadas às preferências do público emergente e aos moldes imperativos da mídia impressa” (p 97). A contrapartida das trajetórias à margem do círculo intelectualmente consagrado facultou a esses escritores certa liberdade expressiva e o acesso a leitores socialmente diversos.
O quadro multifacetado do período, concebido pelo sociólogo, estende-se ao tratamento das vanguardas brasileiras na mesma época, embora elas também desempenhem o papel de refletir, por contraste, o caso argentino, cuja origem e estrutura do campo intelectual distinguem-se do nosso. “Enquanto no Brasil foi se configurando um regime de cooptação dos intelectuais pelo Estado, no país vizinho a inteligência subsistiu dependente do mecenato privado” (p 10). Apesar do exame dos modernistas brasileiros ser mais lateral, as análises sobre a nossa experiência – e que resultaram de várias obras anteriormente publicadas – tecem o fio condutor ao raciocínio e percorrem os capítulos. Em termos mais explícitos, a reflexão transpira o sentimento de um intelectual comprometido com os problemas da vida cultural do seu país, deixando a entrever o aparecimento de um projeto novo e de abertura de futuro veio interpretativo, como se depreende da passagem que reforça o procedimento comparativo: “Talvez se possa aventar a hipótese de que a liderança intelectual substituiu a perda do comando social e político por parte dos mentores de SUR. No Brasil, o surto do romance social tomou alento na conjuntura de derrota da oligarquia paulista, mecenas do modernismo; emergiu, não por acaso, em rincões estratégicos para a coalização em torno de Vargas – os estados do Nordeste, Minas Gerais e Rio Grande do Sul… SUR constituiu o último refúgio de uma classe em retirada da esfera temporal… Lá, o referente esquálido de Borges, aqui, a desforra verista de Graciliano” (p 93-94).
A comparação, a rigor, insinua certa compreensão afinada com os caminhos abertos pelos modernos brasileiros, que produziram uma literatura comprometida com os retratos abrangentes escritos pelos denominados intérpretes do Brasil, o que lhes franqueou a possibilidade de revelar as hesitações presentes no curso da formação da moderna sociedade entre nós; opostamente, no país vizinho, dominaram as inclinações de franca evasão; representações particulares, enfim, de impasses semelhantes. O legado do fenômeno das vanguardas no continente atestou, igualmente, o compromisso de construir uma cultura genuína e sintonizada com as vogas avançadas, capaz de desalojar as expressões mais típicas do provincianismo intelectual que grassava no meio. “Os modernistas brasileiros e argentinos fizeram avançar a substituição de bens simbólicos ao empalamar as inovações introduzidas pelas vanguardas europeias… a transição nas rotas da dependência surtiu efeitos contrastantes no tocante à produção literária autóctone” (p 91). A face criativa, não obstante, não conseguiu abjurar completamente os nexos que nos tornavam caudatários da dinâmica externa, responsáveis pela nossa condição de cultura periférica.
As conclusões do livro explicitam e reforçam o caráter enraizado da reflexão de Sérgio Miceli, intelectual que tanto explora as potencialidades das interpretações sociológicas da cultura, quanto a elas alia amplo conhecimento das correntes contemporâneas do pensamento, da literatura e das artes. Tais atributos permitem filiá-lo à tradição mais expressiva da nossa crítica da cultura, herdeira dos estudos alinhados com o chamado paradigma da formação, não obstante preserve predicados típicos da sua autonomia autoral, tornando-se guardador zeloso e retratista de inequívoca personalidade. Poucos são os autores capazes de compor traços tão marcantes e reconhecíveis quanto o sociólogo Sérgio Miceli.
Maria Arminda do Nascimento Arruda é Professora Titular do Departamento de Sociologia e atual Diretora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.
Referências Bibliográficas
Miceli, Sérgio. Sonhos da periferia: inteligência argentina e mecenato privado. São Paulo, Editora Todavia, 2018.
Miceli, Sérgio. Vanguardas em retrocesso: ensaios de história social e intelectual do modernismo latino-americano. São Paulo, Companhia das Letras, 2012.