No curso de uma longa carreira, Albert O. Hirschman tornou-se muitas coisas para muitas pessoas. Dissidente, reformista, transgressor, iconoclasta e ícone, historiador, psicólogo, pesquisador de campo e teórico, ele foi uma das raras figuras do século xx a situar-se acima de nossas áreas e disciplinas.
Resumo
Este ensaio se concentra em um aspecto do que ele chamava “um estilo cognitivo”. Hirschman tinha a capacidade de cavar os lugares-comuns da vida — atos, palavras, discursos, comportamentos — para extrair novos modos de entender a vida social e a experiência do mercado. Seu estilo privilegiava um tipo diferente de dados — não tabelas de números ou “estudos de caso” estilizados — e uma estratégia de tratamento diferente. A orientação refletia uma preferência pessoal por um modo de olhar para o mundo e derivar conceitos interpretativos. Na verdade, Hirschman começava por olhar, observar e erguer uma “lanterna empírica” para a ciência social, como ele disse em Journeys towards progress [Jornadas rumo ao progresso], um estudo clássico dos efeitos da reforma na América Latina no começo da década de 1960 e um esforço para contrabalançar a atenção da direita e da esquerda ao fantasma da revolução. Mesmo nesse volume original, os “estudos de caso” da reforma no Brasil, no Chile e na Colômbia eram de fato mais histórias intelectuais da imaginação reformista do que análise cuidadosamente dosada. A observação precedia os conceitos. É claro que isso não significava que sua mente era uma tabula rasa, a ser gravada com anotações e visões. Hirschman portava uma chave mestra; ela se exibia em seu estilo, e não na tematização de metodologias explicativas abstratas.
A lente para focalizar o aparentemente desimportante veio do cunhado de Hirschman, Eugenio Colorni, mas Hirschman se apropriou totalmente do estilo; ela também o tornou verdadeiramente singular. A preferência por escalas menores não refletia falta de ambição. Longe disso. Hirschman tinha um projeto que transcendia as normas da ciência social profissionalizada e desafiava a categorização fácil. Sua busca era para revelar como atos de imaginação intelectual podiam liberar amplas possibilidades. Ao encontrar fissuras mesmo
nas estruturas mais impenetráveis, podiam-se criar aberturas e alternativas prospectivas. Essas eram tarefas para o intelectual. E isso era a fonte tanto do idealismo pragmático de Hirschman quanto de uma tensão com as disciplinas dominantes. Muitas vezes, essa disposição significava contestar certezas estabelecidas, desde o tipo catastrofista ou fútil até a convicção eufórica de que se pode mudar tudo de uma só vez — dadas as “condições necessárias”. Essas palavras eram ingredientes básicos da dieta da ciência social; poucas foram mais responsáveis por levar acadêmicos a correr atrás do próprio rabo. Entre aqueles com quem Hirschman boxeava incluíam-se desde pregadores de ortodoxias comunistas na década
de 1930 ou planejadores econômicos liberais do “Big Push” [Grande Impulso] na década de 1960, até os apóstolos reacionários da década de 1980. No meio-tempo houve uma discussão solidária contínua com estruturalistas, na década de 1960, na América Latina, e neoliberais, na década de 1980. Em vez de brandir modelos grandiosos de sociedade ou história, Hirschman preferia a modéstia — o que o fazia voltar a abordagens discretas, não convencionais. Entre seus alvos estavam os gurus estabelecidos do “crescimento equilibrado” para o Terceiro Mundo, a crença de que os economistas podiam induzir o desenvolvimento movendo simultaneamente as partes complexas de uma economia inteira em perfeita conformidade. Hirschman adotava a visão contrastante. Optava por uma abordagem mais parcial, desequilibrada, que favorecia o foco estratégico em detrimento do alcance abrangente. Assim ele resumiu sua visão: “Olhar para o crescimento desequilibrado significa […] olhar para a dinâmica do processo de desenvolvimento no pequeno. Mas talvez esteja mais do que na hora de fazermos exatamente isso”.
A questão que se coloca de imediato no atual cenário de conturbação e agitação políticas refere-se ao grau de inconformismo demonstrado nas ruas relativamente ao funcionamento das instituições políticas brasileiras. Por que tanta revolta, sentimento que se fez sentir em toda sua agudeza ao longo do mês de junho de 2013?
Resumo
Os brasileiros que agora adentram a meia-idade começaram sua vida adulta durante o período militar. Iniciaram, portanto, sua socialização política em meio a uma ditadura, regime
que resultou de um golpe civil e militar desferido em 1964 contra o governo de João Goulart e as instituições representativas criadas em 1946. A crise que antecedeu o evento se explica em boa medida pelo processo de radicalização política a envolver os principais atores da cena brasileira à época. À esquerda, facções no interior de alguns partidos de orientação socialista e trabalhista, sindicatos, estudantes e segmentos minoritários das Forças Armadas confrontavam, direita, facções no interior de partidos conservadores, empresários, o grosso das Forças Armadas, classes médias e principais órgãos de imprensa. Embora afastados quanto a valores, interesses e visões de mundo, algo unia tais contendores: o desprezo pelas instituições da
democracia representativa e seu mecanismo principal, o voto popular. À esquerda e à direita, uma visão negativa, profundamente negativa, prevalecia sobre o modo pelo qual operava o sistema político, sobretudo, o Congresso Nacional. Instituição, para uns, sede de uma elite atrasada e ponto de veto às reformas necessárias para tornar país mais justo; para outros, corrupta, clientelista, responsável pela irracionalidade no gasto e nas contas públicas. O golpe, como é sabido, veio e com ampla vantagem para as forças da direita política.
Cerca de trinta anos mais tarde, é o momento de fazer um balanço do que se alcançou a partir da transição para a democracia. Qual seria o legado, também de uma perspectiva ampla, do livre funcionamento das instituições do governo representativo? Por definição, os obstáculos políticos existentes durante a ditadura foram removidos, pois do contrário não estaríamos a falar de legado democrático. Do ponto de vista econômico, temos a retomada do crescimento (tendo sido raros os anos de recessão ou declínio), inflação de um dígito há quase vinte anos, redução drástica da vulnerabilidade externa, aumento consistente do emprego e da renda, sobretudo das camadas mais pobres. Do ponto de vista social, embora ainda longe de alcançar patamares razoáveis de qualidade, educação e saúde públicas massificadas, redução significativa nos indicadores de pobreza e desigualdade, além de um quadro de crescente mobilidade.
A Constituição Federal de 1988 se firmou como marco de referência para lutas por direitos, reivindicados por diversos movimentos sociais. Passa pela Constituição a luta nos tribunais, dos direitos civis e sociais às questões federativas e eleitorais. Tudo somado, a densificação da democracia constitucional no Brasil tem suscitado o interesse da universidade por novos objetos e novos problemas de pesquisa relacionados à ordem constitucional. São indícios de uma transformação mais profunda e de longo alcance: a implantação de um modelo de sociedade democrática previsto na Constituição de 1988, o“social-desenvolvimentista”.
Resumo
Juristas sempre comemoram as efemérides constitucionais. Os dez, quinze, vinte e agora 25 anos da Constituição de 1988 foram lembrados em livros, artigos em periódicos acadêmicos e na imprensa. Na grande maioria, são análises dirigidas aos profissionais do direito, característica sintomática de uma esfera pública jurídica bastante restrita e tímida. No entanto, nos últimos tempos, o tema parece despertar o interesse de um público mais amplo. Intelectuais consideram a Constituição em seu engajamento público; acadêmicos de várias áreas encontram espaço em periódicos das ciências sociais3. É bem verdade que, à época da convocação da constituinte e durante seus trabalhos, o debate sobre a Constituição era amplo e plural, fazendo eco à intensa participação popular. No entanto, o debate logo se restringiu, no mais das vezes, aos profissionais do direito. Recentemente, o círculo dos autores voltou a se ampliar, inclusive para juristas que se voltam menos aos profissionais e mais à colaboração com as ciências sociais.
As razões para isso são muitas. A Constituição se firmou como marco de referência para lutas por direitos, reivindicados por diversos movimentos sociais. Passa pela Constituição a luta nos tribunais, dos direitos civis e sociais às questões federativas e eleitorais. A imprensa, talhada para cobrir os poderes Legislativo e Executivo, começa a aprender a cobrir o trabalho de juízes. Em 2002, teve início a transmissão da TV Justiça. Além do protagonismo mais recente dos juízes, são 25 anos de funcionamento constitucional dos poderes com sucessivas eleições. Dois presidentes consecutivos, eleitos diretamente, conseguiram terminar o mandato, o que não ocorria desde a Primeira República. Tudo somado, a densificação da democracia constitucional
no Brasil tem suscitado o interesse da universidade por novos objetos e novos problemas de pesquisa relacionados à ordem constitucional. Somados, são indícios de uma transformação mais profunda e de longo alcance: a implantação de um modelo de sociedade democrática previsto na Constituição de 1988, o“social-desenvolvimentista”.
Uma tentativa de diagnóstico dos 25 anos da ordem constitucional esbarra em muitas dificuldades, a começar pelas lacunas de conhecimento empírico — em que pese a ampla bibliografia hoje disponível sobre o STF — sobre a aplicação da Constituição nas várias instâncias do Judiciário, assim como sobre outros temas relevantes. Outra se impõe pela diversidade de perspectivas disciplinares que, da história constitucional e ciência política aos debates de teoria do direito e teoria constitucional, visam a constituição. Menos evidente é a dificuldade de natureza conceitual: escolher um conceito de direito largo o suficiente para cobrir e interligar dimensões empíricas e normativas e produtivo o suficiente para incorporar e criticar as ofertas de explicação e compreensão da ordem constitucional vigente.
Resumo
O artigo explora a tese de que a ordem constitucional vigente sob a Constituição Federal de 1988 é caracterizada pela indeterminação social do direito. Esse conceito combina dimensões
empíricas e normativas: a multiplicidade de arenas decisórias especializadas na estabilização de expectativas e a luta de justificação sobre a interpretação política das normas jurídicas.
Vou delinear em grandes linhas uma tese conceitual que articula duas dimensões do direito. Na primeira dimensão, o direito é definido como conjunto de processos institucionalizados para produzir decisões e, com isso, desempenhar a função de estabilização de expectativas sobre comportamentos sociais. A segunda dimensão enfatiza o direito como prática argumentativa acerca da indeterminação das normas jurídicas. Na primeira dimensão, o direito funciona como parâmetro para a ação estratégica dos clientes do sistema jurídico. Na segunda, o direito é um medium especializado para o exercício da argumentação prática pelos cidadãos. Por si só, cada dimensão exigiria uma discussão extensa, o que não posso fazer aqui. A apresentação é
limitada pelo ponto de fuga do artigo: caracterizar a indeterminação social do direito na ordem constitucional pós-1988.
A melhor maneira de deixar de compreender o papel do direito nas democracias contemporâneas é encará?lo como um conjunto de regras claras que devem ser aplicadas inequivocamente pelo Poder Judiciário. A visão do direito como “regra do jogo”, ou seja, como uma série de normas dotadas de autoridade, cujo sentido preciso pode ser identificado fora e antes da luta social, tem produzido avaliações equivocadas da dinâmica das instituições do estado de direito, em especial, do papel dos Tribunais Superiores.
Resumo
A partir de O espírito das leis, de Montesquieu, e do pensamento de Carl Schmitt e Franz Neumann, um de seus maiores críticos, o texto mostra que a simplicidade das leis e a existência de
um Judiciário ativo estão relacionadas com o caráter democrático ou não das diversas sociedades. Ademais, o texto sustenta que o direito no século xx pode ser caracterizado pela regulação de diversas diferenças sociais por meio de normas especiais, resultantes de reivindicações democráticas por novos direitos, as quais contribuem para aumentar a complexidade das leis e a necessidade de intervenção judicial para dar sentido ao direito.
Para uma parte dos analistas brasileiros, estaríamos vivendo uma grave “crise institucional”, que se explicaria pelo fato de o Supremo Tribunal Federal estar “invadindo” o espaço do Poder
Legislativo, ou seja, estar se comportando como não deveria. Qualquer sinal de “ativismo judicial”, identificado com a atividade de interpretar as leis para além da literalidade de seu texto, seria perigoso para o equilíbrio entre os poderes. Afinal, de acordo com essa análise, as leis seriam a verdadeira expressão da “vontade do povo”, pois votadas por um poder eleito democraticamente. “Desrespeitar” seu texto ou mesmo preencher lacunas na legislação (na falta de texto expresso) significaria usurpar a soberania popular e instaurar uma normatividade de caráter autoritário. Ao interpretar as leis, o Supremo estaria criando uma situação de “desequilíbrio entre os poderes”.
Por isso mesmo, seria necessário fazer soar todos os alarmes para alertar a sociedade brasileira sobre os perigos da instauração de uma “ditadura dos juízes”, supostamente capaz de ameaçar a vontade popular. A inação do Parlamento, que tem deixado de votar leis sobre assuntos importantes, seria a principal responsável por esse avanço “antidemocrático” do stf sobre as prerrogativas parlamentares. Nessa ordem de razões, seria preciso, portanto, que o Parlamento retomasse seu protagonismo “natural” e reduzisse o Supremo ao seu “devido lugar”, combatendo a “judicialização da política”.
Estamos realmente correndo o risco de uma inflexão autoritária de nossas instituições? O quadro é tão grave quanto essa forma de pensar sugere? Para refletir sobre isso, parece?me importante retomar algumas questões fundamentais a respeito da relação entre decisão judicial e legislação, um problema que ocupa os juristas, mas não apenas eles, há muito tempo. Trata?se de compreender, ao fim e ao cabo, que espécie de poder exerce o Poder Judiciário ou, na formulação dos mais radicais revolucionários franceses: afinal, para que servem os juízes?
Ativismo judicial é um termo que tem sido utilizado para apreciar as instituições e agentes judiciais nas democracias contemporâneas. O termo tem distintas designações, como modelo ou programa para a decisão judicial, atitude ou comportamento dos juízes, ou ainda tendência das decisões judiciais em conjunto. Tal como o seu oposto, a contenção judicial, ele tem sido criticado por sua ambiguidade, dificuldades de utilização para analisar e classificar decisões particulares e carga valorativa. As controvérsias sobre sua utilidade foram acompanhadas de tentativas de teorização e refinamento conceitual em diversas disciplinas.
Resumo
O artigo analisa o debate acadêmico sobre o ativismo judicial. Critica o seu enfoque no problema da autonomia individual do juiz na tomada de decisão e seu propósito normativo de
definir o modelo apropriado para o Judiciário numa ordem constitucional democrática. O debate coloca em segundo plano o caráter institucionalmente inserido dos tribunais e simplifica as relações entre a prática judicial e o contexto político. Em seguida, propõe um quadro para a análise das relações entre jurisprudência e política, baseado nos conceitos de regime governamental e regime jurisprudencial. Enfim, é apresentada uma análise preliminar das mudanças no controle da constitucionalidade pelo STF após 1988.
O caráter polêmico do termo “ativismo judicial” não impediu seu uso. Pelo contrário, ele é crescentemente usado desde sua emergência nos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial. Ele foi incorporado ao debate brasileiro após 1988, inicialmente como parte da problemática da judicialização da política e mais recentemente nas discussões jurídicas sobre o Supremo Tribunal Federal (STF). Em ambos os países, é usado em sentido crítico ou elogioso, a partir de diversos marcos intelectuais e posições políticas. O debate versa sobre o papel apropriado do Poder Judiciário, o modelo de decisão judicial e o comportamento dos juízes, e tem como foco o problema da autonomia de julgamento do juiz na construção do caso e a tomada de decisão. O enfoque tem implicações para a maneira como o problema é pensado e, assim, os trabalhos sobre o ativismo judicial evidenciam uma maneira de pensar o direito na contemporaneidade. A análise crítica do debate serve como ponto de partida para propor outra perspectiva de análise política das relações entre prática judicial e política na ordem constitucional brasileira pós-1988.
O presente artigo tem o duplo objetivo de discutir a maneira pela qual tem sido problematizado o termo “ativismo judicial” no Brasil e nos Estados Unidos e de propor um quadro para a análise política do pensamento jurídico e da prática judicial e um esboço de análise sobre a atuação do stf pós-1988. Pretende também contribuir para a crítica de abordagens de ciência política que se apoiam em conceitos e temas de direito constitucional, e deixam de abordar as práticas e os processos históricos efetivos pelos quais seus temas de pesquisa se constituíram.
A reformulação da questão de classe empreendida por Pierre Bourdieu exemplifica os principais aspectos da sua sociologia in globo. Essa reformulação destaca as mudanças conceituais fundamentais efetuadas pelo sociólogo francês num esforço para recolocar e resolver uma das questões mais problemáticas da história e da teoria social: a alquimia sociossimbólica mediante a qual um construto mental, que existe abstratamente nas mentes de pessoas individuais, torna-se uma realidade social concreta, que adquire veracidade existencial, bem como potência histórica fora e acima delas.
Resumo
A reformulação da questão de classe empreendida por Pierre Bourdieu exemplifica os traços principais da sua sociologia e a maneira pela qual ele amplia, mescla e corrige visões clássicas
num quadro próprio. O artigo revela a motivação existente por detrás dos deslocamentos conceituais-chave que Bourdieu efetua, de estrutura de classe a espaço social, de consciência de classe a habitus, de ideologia a violência simbólica, e de classe dirigente a campo de poder. Destaca também estudos recentes que investigaram, testaram e refinaram os princípios centrais
do modelo de Bourdieu e oferece uma bibliografia das suas publicações sobre classe, documentando um duplo deslocamento, empírico e analítico, para uma sociologia da realização de categorias, o que evidencia o poder constitutivo das estruturas simbólicas.
A abordagem que Bourdieu faz de classe incorpora sua concepção marcadamente relacional da vida social. Para o autor de A distinção, da mesma forma que para Marx e Durkheim, o estofo da realidade social — e, portanto, a base para a heterogeneidade e a desigualdade — consiste de relações. Não de indivíduos ou grupos, que povoam nosso horizonte mundano, mas sim de redes de laços materiais e simbólicos, que constituem o objeto adequado da análise social. Essas relações existem sob duas formas principais: primeiramente, reificadas como
conjuntos de posições objetivas que as pessoas ocupam (instituições ou “campos”) e que, externamente, determinam a percepção e a ação; e, em segundo lugar, depositadas dentro de corpos individuais, na forma de esquemas mentais de percepção e apreciação (cuja articulação, em camadas, compõe o “habitus”), através dos quais nós experimentamos internamente e construímos ativamente o mundo vivido. Para capturá-los, pode-se e deve-se superar a oposição mortal entre duas posturas antitéticas e igualmente truncadas, o objetivismo e o
subjetivismo, mediante a adoção de um relacionalismo metodológico sistemático, capaz de apreender a complicada dialética das estruturas sociais e cognitivas na história, a intrincada dança de disposições e posições da qual a prática deriva.
Em artigo breve e denso escrito para uma edição especial da revista L’Arc de 1978, Bourdieu resume e esclarece as teses centrais de “A distinção”, combinando, em um modelo sociológico próprio de classe, o materialismo sensível de Marx, os ensinamentos de Durkheim sobre classificação e as análises de Weber das hierarquias de honra.
Resumo
O artigo desenvolve e esclarece a noção de classe social subjacente aos estudos sociológicos de Bourdieu desde A distinção. A teoria das classes sociais deve superar a oposição entre teorias objetivistas que assimilam as classes a grupos discretos objetivamente inscritos na realidade e teorias subjetivistas que reduzem a “ordem social” a uma classificação coletiva obtida pela soma das estratégias individuais pelas quais os agentes classificam a si e aos outros.
Todo empreendimento científico de classificação deve considerar que os agentes sociais aparecem como objetivamente caracterizados por duas espécies diferentes de propriedades: de um lado, propriedades materiais que, começando pelo corpo, se deixam denominar e medir como qualquer outro objeto do mundo físico; de outro, propriedades simbólicas adquiridas na relação com sujeitos que os percebem e apreciam, propriedades essas que precisam ser interpretadas segundo sua lógica específica. Isso significa que a realidade social admite duas leituras diferentes: de um lado, aquela armada de um uso objetivista da estatística para estabelecer distribuições (no sentido estatístico e também econômico), expressões quantificadas da repartição de uma quantidade finita de energia social entre um grande número de indivíduos em concorrência, apreendidas por meio de “indicadores objetivos” (ou seja, de propriedades materiais); de outro, a leitura voltada a decifrar significações e a lançar luz sobre as operações cognitivas pelas quais os agentes as produzem e decifram.
Passada a década de 1990, em que a agenda de intervenção do Estado na economia perdeu fôlego, algumas evidências sugerem um revigorado interesse dos Estados em desenvolver atuações regulatórias em suas economias. Os países desenvolvidos, acometidos pela grave crise financeira iniciada em 2008 e reforçada em 2011, têm procurado alternativas institucionais para evitar uma depressão abrupta de seus mercados. Nesse cardápio, situam-se várias opções, desde uma regulação cambial francamente discricionária, utilizada como medida para a proteção dos mercados nacionais, até a proposta de criação de um banco nacional de desenvolvimento, nos Estados Unidos e na França.
Resumo
Evidências sugerem uma retomada do ativismo estatal. No Brasil, além das políticas de caráter regulatório, priorizadas nos anos 1990, foram implementadas, desde 2003, três novas
políticas industriais. Neste contexto, coloca-se um desafio de desenho institucional: como estabelecer parâmetros para que as decisões discricionárias do Estado sejam economicamente consistentes e democraticamente responsivas? Uma pista pode ser dada pelos acertos da governança administrativa da política monetária, em especial pelo ganho de institucionalidade
do seu processo decisório e da sua prestação de contas. O resultado desse aprendizado pode se traduzir em um ganho de legitimidade e consequente credibilidade para as outras políticas econômicas, como as políticas industriais, que ainda padecem de uma discricionariedade distorcida.
O cenário nos países em desenvolvimento é similar. Também por estes horizontes pode-se verificar uma maior atenção sendo dispensada às soluções estatais. Um exemplo disso são as políticas de competitividade industrial, que voltaram ao centro das agendas de governo, na América Latina3. O México, em 2002, implementou a Política Económica para La Competitividad, selecionando doze setores para programas de incentivo setoriais, tais como: têxtil, couro e calçadista, alta tecnologia, maquiladoras para exportação e automotivo. Outros países da região também têm se aventurado na redescoberta das políticas industriais. Com focos e estratégias diferentes, uns favorecendo medidas mais horizontais, outros preferindo intervenções seletivas, países como Argentina, Chile, Costa Rica e Uruguai têm, cada qual a seu modo, desenhado incentivos de promoção industrial. No Brasil, além das políticas de caráter propriamente regulatório (regulação setorial e defesa da concorrência), foram implementadas, desde 2003, três novas políticas industriais, que combinam um viés desenvolvimentista com uma orientação para a inovação: a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE, 2003-2007), a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP, 2008-2010), e recentemente o Plano Brasil Maior (PBM, 2011).
Depois de uma década de governo do AKP, um consenso internacional tem retratado a Turquia de Erdogan como a alternativa “bem-sucedida” tanto ao autoritarismo árabe secular quanto ao islamismo revolucionário do Irã. Pesquisas de opinião revelam uma aceitação mais cautelosa: relata-se que cerca de 60% dos árabes veem a Turquia como um modelo. Até que ponto um exame de cabeça fria da política externa e do histórico doméstico do AKP sustenta essas afirmações?
Resumo
O artigo avalia o histórico das políticas domésticas e externa do governo de Recep Tayyip Erdogan (AKP) e investiga os bastidores da ascensão da Turquia ao papel ambíguo de “modelo
democrático do mundo islâmico”, a diplomacia de “zero problemas” com países árabes vizinhos e Israel, o bloqueio da Líbia e o envolvimento no conflito sírio, a violência contra os curdos e o silêncio em relação à repressão dos movimentos que ficaram conhecidos como Primavera Árabe.
Os levantes políticos da Primavera Árabe e as vitórias eleitorais de partidos islâmicos trouxeram de volta à tona o debate a respeito do “modelo turco” — que “integra Islã, democracia e economia vibrante de maneira bem-sucedida”, de acordo com um artigo efusivo de 2011 do New York Times, que saudou o primeiro-ministro da Turquia Recep Tayyip Erdogan como “provavelmente a figura mais influente do Oriente Médio”. Funcionários da Casa Branca enfatizaram o exemplo positivo que a Turquia poderia dar como país muçulmano que mantém relações diplomáticas com Israel; em 2009, Obama, em uma visita a Ancara muito anunciada, saudou o governo do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (akp) como um “parceiro-modelo” e um dos pilares da Otan. O International Crisis Group descreve a Turquia como “objeto de inveja do mundo árabe”, usufruindo “uma democracia sólida, um líder legitimamente eleito que parece representar o ânimo popular, produtos populares do Afeganistão ao Marrocos — inclusive dezenas de seriados televisivos dublados em árabe que estão em televisores em toda parte — e uma economia que vale cerca de metade de todo o mundo árabe”. Turistas de outros lugares da região acorriam para testemunhar “uma sociedade muçulmana em paz com o mundo, economicamente avançada e onde tradições islâmicas coexistem com os padrões de consumo ocidentais”.
Resenha de Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School. de Abromeit, John. Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
Resumo
Max Horkheimer and the foundations of the Frankfurt School, de John Abromeit, vem somar-se a uma dupla já estabelecida de estudos de referência sobre o nascimento e o desenvolvimento da Teoria Crítica (que, em alguns lugares, como nos Estados Unidos e na França, ainda é conhecida pelo equívoco rótulo “Escola de Frankfurt”): A imaginação dialética, de Martin Jay, e A Escola de Frankfurt, de Rolf Wiggershaus. O livro de Abromeit não tem a abrangência desses dois. Dedica-se apenas ao exame aprofundado de parte da trajetória intelectual de Horkheimer, de seu nascimento, em 1895, até o ano de 1941, que marca uma redução ao mínimo das atividades do Instituto de Pesquisa Social em Nova York e uma virada no pensamento do teórico social. Mas é de Horkheimer que se trata: as fases de sua produção examinadas no livro são não apenas altamente profícuas como também inaugurais, o que é sugerido pela ambição teórica bem mais ampla estampada no subtítulo: apresentar nada menos do que “as fundações da Escola de Frankfurt”.
Resenha de Ensaios sobre cultura e o ministério da cultura, de Celso Furtado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.
Resumo
Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura, organizado por Rosa Freire d’Aguiar Furtado, é o quinto volume da série Arquivos Celso Furtado e contém muitas informações sobre o pensamento de Celso Furtado (1920-2004), um intelectual que teve a ousadia de ultrapassar os limites disciplinares em favor da construção de uma dicção autoral. Furtado foi um homem de pensamento e ação que circulou por distintos territórios, da vida universitária a órgãos de governo, além de transitar por organismos internacionais e nacionais. Essa publicação, que reúne um conjunto bastante diversificado e pouco conhecido de textos (documentos, artigos e entrevistas), apresenta o autor como intelectual, homem público e um brasileiro de projeção internacional.
Resenha de A história das constituições brasileiras: 200 anos de luta contra o arbítrio, de Marco Antonio Villa. São Paulo: Leya, 2011.
Resumo
Em alguns âmbitos, e certamente no campo do direito, a academia brasileira escreve muito pouco para o grande público. Em sua História das constituições brasileiras, Marco Antonio Villa avisa, logo no início, que não se trata de um livro de direito constitucional, tampouco de uma obra acadêmica1, o que certamente chama a atenção para o livro. O autor conseguiu mostrar que é possível escrever sobre um tema árido sem que a linguagem seja necessariamente árida. Infelizmente, contudo, talvez esse seja o único mérito do livro.
Villa não conta uma história das constituições brasileiras; simplesmente compila anedotas e lugares-comuns ao lado de equívocos conceituais e falta de informação. No livro, quase tudo é classificado como “bizarro”, “curioso”, “inusitado” ou “exótico”, e o Brasil como um país sem “seriedade legal”.
Cinthia Marcelle