Muitas discussões parecem se preocupar demais com a transformação quantitativa da esfera pública e compartilhar tanto de uma perspectiva instrumental sobre o uso efetivo de mídias sociais na mobilização política, como de um ponto de vista otimista demais acerca da melhora da democracia deliberativa, impulsionada pela avançada tecnologia da comunicação. Até o momento, deu-se muito menos atenção à questão crucial da mudança na natureza da própria democracia em conexão com o desenvolvimento da tecnologia da comunicação.
Resumo
Este ensaio reexamina tese de Walter Benjamin da estetização da política relacionando-a ao desenvolvimento das mídias de massa e à crise da democracia. Essa tese é o ponto central tanto de sua concepção da crise da democracia liberal quanto da ascensão do fascismo. O estudo da análise de Benjamin sobre a interação entre a política fascista e as mídias de massa leva a uma consideração crítica da função do espetáculo político na era da mídia e aponta sua relevância para nossa compreensão crítica da ligação entre as novas mídias e a democracia, seja ela a “nova” ou a “antiga”.
O impacto da tecnologia da comunicação na democracia e nos movimentos sociais tem sido uma questão fundamental nos campos da teoria social e política desde que as mídias de massa, incluindo jornais, cinema, rádio e TV, foram institucionalmente estabelecidas e passaram a desempenhar um papel cada vez mais crucial na articulação e na mediação de comunicações políticas. É digno de nota que o recente advento e a ampla propagação de mídias sociais ligadas à internet, como os sites de redes sociais e a blogosfera, tende a ir para além dos limites de uma comunicação de mão única, inseridos nas mídias de massa, e a promover comunicação mútua em uma escala sem precedentes. Desde o final da década de 1990, diversas formas de mídia social foram empregadas em movimentos sociais e campanhas eleitorais por todo o globo. Exemplos notáveis incluem: a utilização inicial de telefones celulares durante a manifestação antiglobalização em Seattle em 1999; o emprego entusiástico do Facebook por coordenadores de campanha de Barack Obama durante a eleição presidencial de 2008; e a propagação das manifestações após as eleições iranianas de 2009, através do Twitter e do YouTube. Houve, portanto, um grande conjunto de discussões focadas no aumento das possibilidades para o desenvolvimento de movimentos populares, de uma representação mais sistemática da opinião pública e de uma comunicação direta entre os poderes políticos e o público. Apesar disso, a meu ver, muitas discussões parecem se preocupar demais com a transformação quantitativa da esfera pública e compartilhar tanto de uma perspectiva instrumental sobre o uso efetivo de mídias sociais na mobilização política, como de um ponto de vista otimista demais acerca da melhora da democracia deliberativa, impulsionada pela avançada tecnologia da comunicação. Até o momento, deu-se muito menos atenção à questão crucial da mudança na natureza da própria democracia em conexão com o desenvolvimento da tecnologia da comunicação. Nesse sentido, chamo atenção particularmente para as discussões sobre a mídia e a democracia liberal na Alemanha no início do século XX, uma discussão desenvolvida especialmente pelo crítico social e cultural judeu-alemão Walter Benjamin (1892-1940).
Procura e desemprego são, por assim dizer, faces de uma mesma moeda. Deslindar a teia de relações e atores sociais que dão vida à procura de trabalho, revelando-a como um processo socialmente denso, é, por isso mesmo, uma boa maneira de caracterizar mudanças em curso no mercado e nas relações de trabalho.
Resumo
O estudo da procura por empregos é uma via elucidativa não apenas para descrever as mudanças recentes da organização do mercado de trabalho, mas também para deslindar o modo como os laços sociais operam na sociedade contemporânea: nos permite desvelar a maneira pela qual mobilizam-se relações sociais, revelam-se eficazes os laços sociais, indicando o peso dos mecanismos não mercantis na organização e reprodução da vida social, em geral, e na operação do mercado de trabalho, em particular.
A procura de trabalho é um fenômeno que tem despertado crescente interesse interpretativo. Tanto maior quanto mais recorrente se torna o desemprego e mais duradouro o tempo que os indivíduos se veem privados de uma (nova) ocupação. Procura e desemprego são, por assim dizer, faces de uma mesma moeda. Deslindar a teia de relações e atores sociais que dão vida à procura de trabalho, revelando-a como um processo socialmente denso, é, por isso mesmo, uma boa maneira de caracterizar mudanças em curso no mercado e nas relações de trabalho. Este texto pretende explorar, ilustrando com resultados recentes de pesquisa, três diferentes e ricas perspectivas sob as quais se pode encarar o fenômeno. Cada uma delas norteará uma seção.
Uma primeira forma de abordar o tema põe ênfase no fato de que procurar trabalho é a conduta socialmente esperada do (bom) desempregado. Essa dimensão normativa pauta o próprio modo como o desemprego é definido e, por consequência, a maneira como tem sido estatisticamente mensurado. Por maiores que sejam as disputas sobre como bem medi-lo, não ter trabalho e estar em busca de obtê-lo são os dois requisitos internacional e unanimemente assumidos em todas as formas de operacionalização dessa noção, como veremos adiante. Nesse sentido, a procura de trabalho é outra forma de falar do desemprego e da experiência de ser desempregado. Disso tratará a primeira seção.
Entretanto, se observamos as formas de procurar trabalho, podemos dizer que, em sua variação, elas são indicadoras do modo como se institucionaliza a operação do mercado de trabalho, da sua construção institucional. Vale dizer, a procura de trabalho é, nessa segunda perspectiva, uma boa porta de entrada para tratarmos dos atores e das instituições encarregados de fazer o encontro (o tão decantado matching) entre oferta e demanda de trabalho. Disso cuidará a segunda seção deste texto.
Mas os modos de procurar trabalho são também reveladores das formas de sociabilidade. Nesse sentido, tratar da procura é outra forma de falar da construção da vida social, da mobilização das relações sociais, da eficácia dos laços sociais, enfim, dos mecanismos não mercantis presentes na operação do mercado de trabalho. A isso se dedicará a terceira e última seção.
Resenha de Liberdade, de Jonathan Franzen.
Resumo
Mesmo antes de sair nos EUA, em setembro de 2010, Liberdade já era objeto de atenção. O livro anterior de Franzen, As correções, de 2001, fizera bastante barulho: ganhou, entre outros, o National Book Award, principal prêmio literário do país, e transformou Franzen numa das promessas mais auspiciosas da literatura americana. Mal começaram a sair as primeiras resenhas elogiosas de Liberdade, Oprah Winfrey incluiu-o em seu clube de leitura, o Guardian pespegou-lhe o epíteto de “livro do século” e a revista Time estampou na capa uma foto do escritor acompanhada da legenda: “O grande romancista americano”.
Parte do frisson em torno de Franzen tem a ver com essa obsessão pelo “Grande Romance Americano”. É um fetiche entre os autores de lá e uma espécie de santo graal da literatura: o grande autor é aquele que consegue transferir para o romance os pontos nevrálgicos da experiência do país. A trinca sagrada da prosa americana da segunda metade do século fez isso: John Updike, Phillip Roth e Saul Bellow devem boa parte de sua reputação ao modo como plasmaram a experiência dos EUA num determinado recorte de sua obra. Em As aventuras de Augie March (1953), de Saul Bellow, por exemplo, lê-se na primeira linha: “Sou americano, nascido em Chicago…”. De saída estamos diante da tentativa de responder a essa pergunta: o que é ser americano?
Essa é uma tradição francesa do século XIX, a do homem de letras empenhado em responder às grandes perguntas do seu tempo. Com a transformação dos EUA em grande potência no século XX, a função se torna estratégica em face de uma experiência cuja ressonância assume escala mundial.
Franzen disputa o posto de herdeiro dessa tradição. O barulho da mídia é também reflexo da expectativa de que ele possa assumir o bastão dessa linhagem nobre em nome da nova geração. É importante lembrar que nessa transição ocorreram os atentados de 11 de Setembro. Não é, portanto, apenas o lugar do novo grande romancista americano que está vago, mas o lugar do grande romancista capaz de dar sentido a uma experiência traumática. Em certa medida, um evento como esse contribui para injetar vitalidade à atividade de escritor, de pronto convocado ao papel de intérprete de seu tempo.
Flávio Pierucci morreu antes de sua hora, interrompendo abruptamente uma bela carreira dedicada ao estudo das religiões no Brasil. É, pois, com grande pesar que o Cebrap se despede de um de seus mais ativos colaboradores, que aqui atuou como pesquisador (1970-1987) e como editor desta revista (2001-2004).
Resumo
Homenagem do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e da revista Novos Estudos ao professor Antônio Flávio Pierucci.
Como ele mesmo disse ao comentar a morte de seu amigo e mentor Cândido Procópio Ferreira de Camargo, podemos dizer tristemente que Flávio Pierucci morreu antes de sua hora, interrompendo abruptamente uma bela carreira dedicada ao estudo das religiões no Brasil. É, pois, com grande pesar que o Cebrap se despede de um de seus mais ativos colaboradores,que aqui atuou como pesquisador (1970-1987) e como editor desta revista (2001-2004).
Nos albores da fundação do Cebrap em 1969, Cândido Procópio Ferreira de Camargo, interessado no fenômeno da “transição religiosa” brasileira organizou um grupo de pesquisa sobre o tema e convidou Flávio a integrá-lo. Desde então, Flávio tornou-se, a espelho de seu mestre, um dos principais comentadores do panorama trazido pelos censos a respeito do comportamento religioso da população brasileira. Não teve tempo de fazê-lo, infelizmente, para o Censo de 2010. Mas certamente ainda valem para esse censo os comentários que fez para o de 2000: “se desenha para nossa terra um croqui identitário ‘neocristão’ mais próximo do ‘tipo internalizado’, tal como definido por Procópio e, posto que internalizado, pós-tradicional”. Se for assim, observou ele, onde estaria a propalada diversidade religiosa brasileira? El gato selacomió, conclui ele, provocativamente. Estaríamos, pois, segundo ele, assistindo ao paradoxo no qual o pluralismo evangélico mina o próprio pluralismo religioso na mesma medida em que fomenta o pluralismo cristão.
A história do Brasil desde a independência pode ser dividida em três grandes ciclos políticos, e, desde 1930, é possível distinguir cinco pactos políticos ou coalizões de classe. Desde 1930 esses pactos são nacionalistas. Apenas nos anos 1990 as elites brasileiras se renderam à hegemonia neoliberal. No entanto, desde meados dos anos 2000 estão recuperando sua ideia de nação.
Resumo
A principal tese deste artigo é que as elites e a sociedade brasileiras são “nacionais-dependentes”, isto é, são ambíguas e contraditórias, cuja definição exige um oxímoro. Hoje, procuram uma síntese entre os dois últimos ciclos políticos — entre justiça social e desenvolvimento econômico no quadro de um regime democrático.
Uma sociedade que não possui a ideia de nação dificilmente experimentará um desenvolvimento sustentável. Os países que realizaram sua revolução capitalista originalmente e hoje são ricos desenvolveram-se sempre com base em um projeto nacional. A mesma experiência tiveram, no século XX, os países retardatários, mas essa experiência foi ainda mais marcante porque tiveram que enfrentar um obstáculo do qual foram poupados os primeiros: o imperialismo moderno, industrial, dos países que se industrializaram nos dois séculos anteriores. Ou o país retardatário logra se afirmar como nação, constrói seu Estado, e define uma estratégia nacional de desenvolvimento, ou crescerá lentamente e não alcançará os padrões de vida dos países ricos. Nesse processo de construção social a iniciativa cabe geralmente a uma elite política, mas, afinal, é o Estado que acaba por liderar o desenvolvimento econômico. Em um segundo momento, no processo de democratização que se segue à revolução capitalista, a sociedade civil e a nação se democratizam internamente, e passam a ser intermediários legítimos entre a sociedade como um todo e o Estado. Nesse quadro teórico, nação e sociedade civil expressam o contrato social básico existente nas sociedades modernas. Mas enquanto esse processo de organização da sociedade não se aprofunda, uma segunda maneira de organizá-la politicamente é através de pactos políticos voltados para o desenvolvimento. Nesse caso, a legitimidade do Estado e de seus governantes continua a estar relacionada ao apoio que têm na sociedade civil ou na nação, mas, mais concretamente, passa a depender do bom êxito da coalizão de classes no poder em promover o desenvolvimento econômico. Nessas coalizões, é necessário distinguir, dentro da classe capitalista, os empresários e os capitalistas-rentistas e, dentro da classe tecnoburocrática, a burocracia pública e a privada. Os pactos desenvolvimentistas implicam sempre a coalizão entre empresários industriais e a tecnoburocracia pública; e quando se trata de uma coalizão popular, implica adicionalmente a participação das classes populares.
Neste ensaio tentarei apresentar uma interpretação da sociedade brasileira a partir desses pressupostos. Para compreendê-la distinguirei três ciclos políticos da sociedade e do Estado pelos quais passou a sociedade brasileira desde sua independência, e, desde os anos 1930, cinco pactos políticos ou coalizões de classe. Partirei de uma hipótese básica: as elites burguesas, políticas e intelectuais brasileiras são essencialmente ambíguas ou contraditórias em relação à questão nacional. Por isso, argumentarei que é falsa a tese que se tornou dominante nas ciências sociais brasileiras nos anos 1970, e até hoje subsiste, segundo a qual “não há nem nunca houve uma burguesia nacional no Brasil”, como é igualmente falsa a tese oposta que veria a burguesia industrial brasileira como tão nacionalista como foram as burguesias dos países ricos quando se desenvolveram, e como são hoje as burguesias e os tecnoburocratas nos países asiáticos dinâmicos.
Em Brasília, a objetividade e a clareza das fotografias de Marcel Gautherot, quando combinadas à presença marcante de sombras densas e perspectivas agudas, as tornam semelhantes, do ponto de vista formal, às obras iniciais do pintor italiano Giorgio de Chirico.
Resumo
Em Brasília, a objetividade e a clareza das fotografias de Marcel Gautherot, quando combinadas à presença marcante de sombras densas e perspectivas agudas, as tornam semelhantes, do ponto de vista formal, às obras iniciais do pintor italiano Giorgio de Chirico. Partindo dessa comparação, o artigo coteja a perspectiva do fotógrafo com os propósitos de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, e com interpretações literárias e críticas que descrevem Brasília como uma paisagem “metafísica” e “surrealista”.
O fotógrafo francês Marcel Gautherot (Paris, 1910-Rio de Janeiro, 1996) era conhecido pela paciência com que escolhia os ângulos de suas imagens e pelo extremo cuidado com cada elemento da composição, a ponto de esperar por horas, sob sol a pino, até que uma nuvem ocupasse determinada posição junto a uma casa . Suas próprias imagens são a maior demonstração de que, para ele, fotografar era sobretudo um ato de compor, sendo capaz de prever mentalmente o lugar adequado de cada elemento. Não por acaso, num de seus raríssimos depoimentos, ele diz que “Fotografia é arquitetura” e que “uma pessoa que não entende de arquitetura não é capaz de fazer uma boa foto” .
Entre 1925 e 1927, na Escola Nacional de Artes Decorativas, em Paris, Gautherot frequentou, sobretudo, as aulas de arquitetura. Ele não chegou a concluir o curso, mas costumava se apresentar como arquiteto. Conhecedor das ideias de Le Corbusier na época, a necessidade de “entender de arquitetura” para fotografar significava também banhar a cena com uma luz generosa e estruturar a composição a partir de formas geométricas primárias, de maneira clara e harmônica.
Em Brasília, no início dos anos 1960, Gautherot escolheu a luz do fim de tarde para registrar os volumes brancos projetados por Niemeyer. Boa parte de suas imagens do eixo monumental, sobretudo do Congresso Nacional e da praça dos Três Poderes, conjuga o céu imenso com formas arquitetônicas modeladas em chiaroscuro, diagonais criadas por perspectivas agudas e sombras densas, às vezes totalmente negras, em primeiro plano.
Nessa cidade, Gautherot não encontrou dificuldades para estruturar suas imagens geometricamente, já que a própria arquitetura lhe forneceu motivos matemáticos. Outro procedimento decisivo em suas fotos é a criação de uma espécie de equivalência entre as áreas de céu e chão, por meio do uso de filtros que equilibram as diferentes intensidades de luz da cena. O asfalto se torna límpido como o céu e o céu, denso como o chão. A atmosfera transparente e o aspecto artificial resultam também do fato de ele colocar todos os planos em foco, produzindo uma espécie de hipervisão da cena e distinguindo assim suas imagens da experiência “real” da visão, na qual os objetos à distância perdem definição. Assim como fotógrafos modernos ligados à straight photograph norte-americana ou à Nova Objetividade alemã, por exemplo, ele dispõe de uma técnica tão precisa que faz o “real” parecer irreal.
Resenha de Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis, de Claudia Sanchez e Bruno Roelants.
Resumo
Em Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis, Claudia Sanchez e Bruno Roelants analisam a transformação que o capitalismo sofreu pela globalização da economia mundial que coincidiu com o triunfo da contrarrevolução neoliberal no chamado Mundo Livre, num momento em que a Guerra Fria se aproximava de seu auge e também do seu fim, no final dos anos 1970. Os autores também oferecem uma análise da presente crise econômica internacional à luz das mudanças trazidas pela Terceira Revolução Industrial — a da informática e da internet —, que tornaram possível a hegemonia do capital financeiro em plano mundial, matriz de crises sucessivas que lhe são inerentes. O que aparece às classes dominantes como “sociedade do conhecimento” se torna exclusão, principalmente pelo desemprego, para os trabalhadores.
Em Capital and the debt trap: learning from cooperatives in the global crisis, Claudia Sanchez e Bruno Roelants analisam a transformação que o capitalismo sofreu pela globalização da economia mundial que coincidiu com o triunfo da contrarrevolução neoliberal no chamado Mundo Livre, num momento em que a Guerra Fria se aproximava de seu auge e também do seu fim, no final dos anos 1970. Os autores também oferecem uma análise da presente crise econômica internacional à luz das mudanças trazidas pela Terceira Revolução Industrial — a da informática e da internet —, que tornaram possível a hegemonia do capital financeiro em plano mundial, matriz de crises sucessivas que lhe são inerentes. O que aparece às classes dominantes como “sociedade do conhecimento” se torna exclusão, principalmente pelo desemprego, para os trabalhadores.
Enquanto a série de crises iniciada em 2007 tem atraído todas as atenções, um capitalismo de novo tipo surge da penumbra, produto da desregulação do capital financeiro e de nova onda de privatização dos principais serviços públicos que, por sua essencialidade para a sobrevivência dos mais pobres, serviços sociais porque deveriam ser acessíveis a todos. A sua privatização, agora justamente nos países mais afetados pela crise e, portanto, pelo desemprego, exclui do uso desses serviços os menos aquinhoados, aprofundando a desigualdade e, portanto, a injustiça social — o que explica a expansão mundial dos “indignados”, em sua maioria jovens que percebem que o capital financeiro, simbolizado por Wall Street, e suas crises lhes roubam um futuro que as conquistas democráticas das gerações anteriores deveriam ter-lhes assegurado.
A redução dos controles nacionais das trocas comerciais e da movimentação dos capitais especulativos entre os países afiliados à OMC e ao FMI removeu os obstáculos à centralização global dos capitais. Atualmente, cadeias internacionais de produção e distribuição de bens e serviços, interligadas por conglomerados financeiros, dominam segmentos inteiros da economia mundial, o que explica a subserviência de governos nacionais democraticamente eleitos às exigências do capital financeiro global, representado por agências intergovernamentais como o FMI e o Banco Central Europeu.
O livro procura descrever a trajetória que está sendo construída pelas crises sucessivas, implicando maior destruição do que geração de riqueza. Essa trajetória é composta por três armadilhas que se fecham sequencialmente, aprisionando os que se endividaram porque acreditaram que a oferta de crédito pelos bancos jamais seria interrompida.
É típico das abordagens no interior do paradigma da ciência social crítica identificar, no nível macro, estruturas sociais e mecanismos que explicam a reprodução do status quo, a sociologia da crítica segue o exemplo da etnometodologia e se coloca no nível micro, descrevendo práticas situadas de crítica e justificação. Ainda, contudo, que isso se justifique em termos de um alargamento da perspectiva teórica, essa inversão tende a negligenciar a possibilidade de certas condições sociais bloquearem o exercício ou mesmo a formação das capacidades reflexivas e críticas dos atores.
Resumo
A “virada pragmática” proposta por Boltanski e outros não deveria levar-nos a abandonar o projeto da teoria crítica, como se toda a crítica necessária já estivesse articulada nas práticas cotidianas de crítica. As capacidades reflexivas dos atores “ordinários” e suas práticas de justificação e crítica, que são convincentemente reconstruídas pela sociologia da crítica, constituem a base social e metodológica da teoria crítica. Isso não deveria, contudo, levar-nos a atribuir uma autoridade epistêmica à perspectiva dos participantes que seja imune a ser colocada em questão de um ponto de vista informado em termos teóricos.
Nos últimos anos, a sociologia da crítica, tal como elaborada por Luc Boltanski e seu grupo de pesquisa em oposição explícita à concepção objetivista da ciência social crítica de Pierre Bourdieu, emergiu como um novo paradigma na teoria social. No entanto, somente agora as sobreposições e diferenças em relação à teoria crítica da tradição da Escola de Frankfurt se fazem ver. No que segue, explorarei essa relação defendendo três teses: 1) que o modelo de ciência social crítica de Bourdieu se baseia na suposição — problemática tanto empírica como metodologicamente — de uma forma sistemática de não reconhecimento que assume o papel tradicionalmente desempenhado pela ideologia; 2) que a sociologia da crítica oferece uma alternativa convincente ao modelo de Bourdieu ao levar a sério a autocompreensão dos atores e, portanto, as categorias empregadas em suas práticas de justificação e crítica; e 3) que, com todo respeito a Boltanski, uma versão revisada da teoria crítica — cujos elementos podem ser encontrados na obra de Axel Honneth — pode desempenhar um papel complementar decisivo, já que tais autocompreensões e práticas podem sofrer do que se poderia denominar “patologias de segunda ordem”. Essa forma de entender a teoria crítica oferece uma nova perspectiva sobre a política de reconhecimento, tanto no nível teórico como no da prática social, ao ligar a “micropolítica do reconhecimento”, negociada no âmbito das práticas cotidianas de justificação e crítica, às suas condições “macropolíticas”, i.e., a formas institucionalizadas e estruturais de reconhecimento e não reconhecimento.
Em contraste com abordagens objetivistas que tendem a compreender os atores sociais como “idiotas desprovidos de juízo” , e não como agentes dotados de capacidades reflexivas, a sociologia pragmática da crítica rejeita, com razão, a ideia de uma separação entre o ponto de vista supostamente objetivo do cientista social e a perspectiva irrefletida dos chamados agentes “ordinários”. Em vez disso, os atores são considerados capazes daquelas formas de reflexividade crítica que observadores científicos frequentemente consideram monopólio seu. De fato, ser capaz de tomar distância do contexto prático imediato e refletir criticamente sobre ele é “uma capacidade cuja existência tem de ser pressuposta se quisermos compreender o modo como os membros de uma sociedade complexa criticam e questionam as instituições, discutem uns com os outros ou convergem para um acordo” .
Existem evidências de que a Emenda Constitucional no. 16, que introduziu o instituto da reeleição no sistema eleitoral brasileiro, fere os princípios de alternância no poder, limitação temporal de mandatos e de equidade na competição política?
Resumo
Os resultados das últimas quatro eleições municipais contradizem os temores de continuísmo político e perpetuação das elites políticas locais supostamente decorrentes do instituto da reeleição. A análise dos resultados eleitorais dos municípios indica que aparentemente não houve, nesse período, nenhuma vantagem eleitoral significativa decorrente da incumbência da prefeitura. Isto é, os prefeitos que concorreram à reeleição no exercício do mandato público não desfrutaram de vantagem eleitoral relevante nas eleições municipais. Nossos resultados apontam que os prefeitos que tentaram a reeleição no exercício do cargo sofreram uma considerável corrosão em seu desempenho eleitoral: taxa de prefeitos elegíveis que lograram obter um segundo mandato foi baixa.
A emenda constitucional no 16, de 4 de junho de 1997, introduziu o instituto da reeleição no sistema eleitoral brasileiro. Essa emenda estabeleceu o direito de chefes do Poder Executivo disputarem a reeleição para a mesma função, para um único mandato, e no exercício do cargo. Desde sua introdução, já foram realizadas sete eleições – quatro gerais e três locais – sob o regulamento da nova legislação e os debates, tanto na academia como entre decisores políticos, sobre suas consequências políticas e institucionais têm se intensificado a cada novo pleito .
Os defensores da reforma constitucional argumentam que o direito de reeleição pode ser uma forma de aperfeiçoar a capacidade decisória dos eleitores, permitindo punir o mau governante ou premiar o bom administrador. A reeleição funcionaria como um instrumento de responsabilização eleitoral, isto é, de accountability dos governantes. Há também quem argumente que a possibilidade de reeleição encorajaria o voto retrospectivo, embora as evidências empíricas a esse respeito sejam mais controversas. Nesse cenário, o eleitor vota não com base na sua avaliação prospectiva das diferentes políticas propostas pelos candidatos mas, pelo contrário, a partir de uma avaliação retrospectiva da administração do governante e decide se ele deve ou não permanecer no cargo por mais quatro anos .
Para seus críticos, o direito de reeleição dos chefes do Executivo fere os princípios de alternância no poder, de limitação temporal e, principalmente, de equidade nas condições de competição política. O candidato que ocupa um cargo público gozaria de poderes excepcionais, como o uso da máquina pública, durante o processo eleitoral. Ou seja, a possibilidade de reeleição motivaria os candidatos que buscam se reeleger no exercício do cargo a utilizar a máquina pública para obter sucesso eleitoral. Ademais, a reeleição estabeleceria um incentivo à personalização do poder e, principalmente, à perpetuação das elites políticas no poder.
Os resultados das últimas quatro eleições municipais contradizem, no entanto, os temores de continuísmo político e perpetuação das elites políticas locais. A análise dos resultados eleitorais dos municípios indica que aparentemente não houve, nesse período, nenhuma vantagem eleitoral significativa decorrente da incumbência da prefeitura. Isto é, os prefeitos que concorreram à reeleição no exercício do mandato público não desfrutaram de vantagem eleitoral relevante nas eleições municipais. Na verdade, nossos resultados apontam que os prefeitos que tentaram a reeleição no exercício do cargo sofreram uma considerável corrosão em seu desempenho eleitoral. Por conseguinte, a taxa de prefeitos elegíveis que lograram obter um segundo mandato foi baixa.
A última década viu surgir inúmeros debates sobre a atualidade da Teoria Crítica e o papel atual dessa tradição teórica. Uma das questões mais importantes refere-se às fundações normativas da crítica — mas também ao lugar que a ética comunicativa, ou o conceito de reconhecimento, deve ocupar nessa atualização. Para outros autores, menos preocupados com questões normativas e mais interessados na “primeira geração” da Teoria Crítica, o papel do pensamento não identitário de Adorno também ganhou grande relevância. Nesses debates valiosos, no entanto, uma questão tem sido de certa forma negligenciada: o lugar da pesquisa social no desenvolvimento efetivo da Teoria Crítica.
Resumo
Os desenvolvimentos teóricos recentes da Teoria Crítica têm passado ao largo da preocupação com a pesquisa social — seja pela pouca importância dada ao “teste” empírico das ideias teóricas, seja pela ausência de estímulo a novos projetos de pesquisa empírica no campo da Teoria Crítica. Essa tendência implica uma importante “mudança” teórica em relação ao antigo programa dialético da Teoria Crítica proposto por Max Horkheimer na década de 1930. O artigo ressalta algumas dificuldades atinentes à articulação produtiva entre teoria e pesquisa — com prejuízo, creio, para ambas, filosofia e ciências sociais.
Comparada à importância dada à pesquisa social no primeiro projeto da Teoria Crítica, formulado por Max Horkheimer na década de 1930, e à centralidade da pesquisa social em todo o desenvolvimento desse grupo de pensadores, a situação é bastante surpreendente. Com efeito, para muitos dos tributários da Teoria Crítica contemporânea, é como se a questão da pesquisa social não fosse prioritária em face da primazia conferida às questões normativas. O fato de a Teoria Crítica progredir hoje principalmente no campo da filosofia social e política — e não no da economia, da sociologia ou da psicanálise, como no passado — é um importante sinal e desempenha um papel considerável nessa tendência. Para a maioria dos pensadores críticos contemporâneos, como Axel Honneth, que ainda a considera uma tarefa importante para a Teoria Crítica, o lugar dado à pesquisa social em suas elaborações filosóficas não é tão central quanto para seus predecessores no Instituto de Pesquisa Social. Ainda que seja um defensor da ideia de uma cooperação necessária entre pesquisa social e filosofia social, Axel Honneth também salienta as dificuldades reais desse projeto . De maneira geral, parece que os desenvolvimentos teóricos recentes dessa tradição intelectual acontecem sem grande consideração pela pesquisa social — nem pelos “testes” empíricos das ideias teóricas, tampouco pelo estímulo a novos projetos de pesquisa empírica no campo da Teoria Crítica. Essa evolução implica uma importante “mudança” teórica em relação ao antigo programa dialético da Teoria Crítica proposto por Horkheimer. Pretendo, neste artigo, ressaltar algumas dificuldades atinentes à articulação produtiva entre teoria e pesquisa — com prejuízo, creio, para ambas, filosofia e ciências sociais.
As dificuldades atuais para reunir filosofia social e pesquisa social têm muitas razões — que são complexas e não podem ser tratadas aqui em detalhes —, para além de questões teóricas “puras”. Essas razões residem, por exemplo, na forma específica como estão organizadas as universidades, no quadro restritivo da pesquisa científica, que dificilmente admite a cooperação entre filósofos e pesquisadores empíricos, etc. Sem deixar de lado esses fatores explicativos importantes, neste artigo pretendo me concentrar nas questões teóricas concernentes à relação entre pesquisa social e Teoria Crítica. (1) Mais precisamente, pretendo primeiramente retomar o modelo dialético e materialista de pesquisa social e teoria crítica desenvolvido por Max Horkheimer no início da década de 1930, que molda o fundamento de toda a Teoria Crítica. Mostrarei como Horkheimer veio a conceber a relação dialética entre ciência e filosofia, almejando com isso ultrapassar, de maneira crítica, suas respectivas “crises”. (2) Em segundo lugar, pretendo ressaltar a “virada reconstrutiva” apresentada por Jürgen Habermas quarenta anos depois como consequência da discussão crítica que se seguiu ao seu importante livro Conhecimento e interesse (1968). Após ter enfatizado os principais aspectos da reconstrução, tentarei mostrar como esta diz respeito às ciências empíricas e que tipo de relação ela acarreta entre teoria e pesquisa científica. (3) Como conclusão, gostaria de pôr em questão tanto as consequências quanto os problemas da reconstrução na relação entre Teoria Crítica e pesquisa social.
Apresentação do dossiê “Teoria Crítica”
Resumo
A tarefa de produzir o diagnóstico do tempo o mais complexo e nuançado possível exige uma reconfiguração do trabalho de pesquisa interdisciplinar, renovando o modelo teorizado por Horkheimer em seus escritos da década de 1930 . Uma renovação como essa exige por fim, mas não por último, a busca de novas formulações para noções críticas fundamentais como as de “ideologia”, “alienação”, “reificação”, ou “exploração”.
Para alcançar uma compreensão adequada do momento presente, a Teoria Crítica tem de ser capaz de entender como se configuram as lutas sociais emancipatórias. Com o declínio do socialismo como horizonte comum de emancipação na segunda metade do século XX, essa tarefa exigiu de saída um acerto de contas do campo crítico com o pensamento de Marx, que o inaugurou.
Em termos teóricos, o sentido mais amplo dessa mudança parece ter sido anunciado primeiramente por Adorno na década de 1960 . Diante da necessidade de renovação da perspectiva emancipatória, Adorno deu um passo atrás: mostrou que a orientação para a emancipação própria da obra de Marx tinha de ser reconfigurada a partir de suas fontes no pensamento de Kant e de Hegel. Os escritos de Horkheimer da década de 1930 haviam estabelecido uma nova relação entre teoria e prática no campo da Teoria Crítica, de tal modo que os dois termos já não se encontravam em “união” — como havia formulado Lukács —, mas no quadro de uma “orientação para a emancipação que tem de ser mantida a distância prudente da ação direta” . Nesse sentido, Hegel permanece como fonte fundamental de uma teoria que não separa rigidamente o “descritivo” do “normativo”. E, no entanto, Kant ganha novo peso em uma configuração em que o ponto de vista da teoria não coincide inteiramente e por princípio com a ação de uma classe social portadora do universal, em que teoria e prática não são mais pensados em união.
A busca de uma renovação da perspectiva crítica continua a ter como ponto de fuga a obra de Marx, mas passou a se dar, a partir da conceituação de Adorno, em um campo de forças formado pelas obras de Kant e de Hegel, explicitado por um exercício de críticas e de metacríticas sucessivas. Não se trata de “voltar a Kant” ou de “voltar a Hegel”, sem mais, no sentido de se aferrar a uma das duas posições; trata-se de pensar os dois pontos de vista um contra o outro, sem ponto de parada previamente estabelecido, à maneira de um “diálogo” incessante entre uma e outra filosofia.
A discussão sobre interseccionalidade tem ocupado um espaço importante na pesquisa de gênero. O reconhecimento de que formas sexuais de injustiça são, por um lado, análogas e, por outro, empiricamente entrelaçadas com outras formas de injustiça — como as relacionadas a “raça”, etnia e religião — encontra nesse conceito sua expressão teórica. Se levarmos em consideração razões histórico-linguísticas, a importância de refletir com maior precisão sobre a relação entre racismo e sexismo é evidente por si só.
Resumo
O artigo propõe a diferenciação de quatro modos de relações entre racismo e sexismo. O primeiro estabelece semelhanças entre formas de racismo e de sexismo, o segundo, diferenças entre eles, o terceiro, acoplamentos entre ambos, e o quarto, cruzamentos, entrelaçamentos ou intersecções. Um modelo crítico que abarque semelhanças, diferenças, ligações e intersecções tem efeitos muito mais benéficos para a compreensão das relações entre racismo e sexismo do que a tentativa de formular a relação em apenas uma dimensão.
A palavra alemã Sexismus tem origem no inglês norte-americano. O termo de origem sexism foi, por sua vez, criado por analogia com o termo racism na segunda metade dos anos 1960. Um texto de intervenção do Southern Student Organizing Committee, um grupo de ativismo político de Nashville, Tennessee , registra uma das primeiras ocorrências textuais de uso do termo. Em 1969, em texto intitulado “Freedom for Movement Girls — Now”, o grupo declarou:
Os paralelos entre sexismo e racismo são nítidos e claros. Cada um deles incorpora falsas suposições sob a forma de mito. E, assim como o racista é aquele que proclama, justifica ou pressupõe a supremacia de uma raça sobre outra, da mesma forma, o sexista é aquele que proclama, justifica ou pressupõe a supremacia de um sexo (adivinha qual) sobre o outro.
Podemos fazer objeções a diversos aspectos das teses defendidas nessa citação, se levarmos em conta o contexto do estado atual da reflexão sobre o tema. Em primeiro lugar, impõem-se objeções contra tamanha redução das diversas facetas do racismo e do sexismo nas premissas e opiniões adotadas. Concepções que trabalhem com mais dimensões parecem ser capazes de nos levar mais longe. Seguindo a análise do poder de Michel Foucault, desenvolvi um modelo que diferencia uma dimensão epistêmica, que abarca o conhecimento racista e sexista e seus discursos correspondentes; uma dimensão institucional, referente a formas institucionalizadas de racismo e de sexismo; e uma dimensão pessoal, que, além de posicionamentos individuais a respeito da identidade ou da subjetividade, também abrange ações individuais e interações pessoais . Em segundo lugar, as concepções de sexismo que dão ênfase a grupos de gênero definidos de maneira inequívoca não devem servir como base teórica, mas devem antes ser entendidas como parte do problema a ser analisado e criticado — pelo menos quando não se pretende reproduzir a naturalização da existência de apenas dois gêneros. O mesmo vale para o recurso à categoria “raça”. Essa perspectiva permite adotar uma postura crítica à naturalização na medida em que a existência de “raças” humanas não é entendida como fato biológico. Ao contrário, os processos de construção de “raças” humanas são tratados como componentes epistêmicos do racismo a serem analisados. Pelo menos em relação à situação na Europa, acredito ser apropriado também considerar, em terceiro lugar, formas “diferencialistas” em que a incompatibilidade de diferentes culturas é proclamada como superioridade “racial” — Etienne Balibar chamou essas formas de neorracismo .
No entanto, a intenção não é negar totalmente certa plausibilidade na criação de analogias. Isso porque tanto racismos quanto sexismos podem ser entendidos como fenômenos complexos de poder que operam no contexto de atribuição de diferenças categoriais. Mesmo que não seja sempre necessariamente assim, eles frequentemente funcionam por meio de referências a características corporais e, portanto, por meio de referências a supostas certezas biológicas. É por isso que atribuições de diferença de cunho racista ou sexista são geralmente atribuições de diferenças naturalizadas que exigem validade atemporal ou pelo menos por longos períodos de tempo. Nesse sentido também as formas racistas e sexistas de poder são diferentes daquelas que operam vinculadas a relações de classe ou de produção. Uma diferenciação heurística já um pouco antiga proposta por Nancy Fraser trata dos racismos e sexismos como problemas sociais com uma dimensão político-econômica e com uma dimensão cultural-avaliativa. Em outras palavras: seriam problemas de distribuição e de reconhecimento, enquanto as formas de poder relacionadas a classes ou camadas sociais são primariamente descritas de maneira político-econômica e poderiam ser combatidas apenas por meio de medidas de redistribuição . E mesmo se quisermos nos opor a essa diferenciação, ao afirmarmos que um hábito específico da camada social de uma pessoa pode, do mesmo modo, ser apresentado como motivo do reconhecimento negado — um ponto que, a propósito, a própria Fraser admitiu em publicações posteriores sobre o tema —, na maior parte das vezes um hábito desse tipo é considerado uma característica social que, em condições de mobilidade social, poderia ser transformada pelo menos no horizonte de tempo de alguns anos. Em regra, isso é diferente nos casos de atribuições racistas e sexistas. Não faz diferença se se tratam de afirmações sobre as propriedades características de um “tipo de raça”, da tese de que conflitos étnicos são a consequência inevitável de contatos étnicos ou de pressupostos da existência de identidades de gênero e de sexualidade “normais” — nos casos de atribuições racistas e sexistas, a ideia de que elas seriam fundamentadas na natureza humana é dominante. É por isso que atribuições de diferença de cunho racista ou sexista são geralmente atribuições de diferenças naturalizadas que exigem validade atemporal ou pelo menos por longos períodos de tempo.
Andrés Sandoval