Este artigo mostra o quanto a tolerância é uma atitude complexa que implica encontrar a justa medida entre uma aceitação absoluta e uma oposição imoderada, apontando para as diferentes tensões internas à atitude de tolerância e para os custos e os riscos envolvidos na prática da tolerância, mesmo numa democracia constitucional em que já estão assegurados certos direitos fundamentais.
A tolerância requer de nós aceitar as pessoas e consentir suas práticas mesmo quando as desaprovamos fortemente. Tolerância então envolve uma atitude intermediária entre a absoluta aceitação e a oposição imoderada. Esse status intermediário faz da tolerância uma atitude complexa. Há certas coisas, como um assassinato, que não devem ser toleradas. Existem limites para o que podemos fazer a fim de prevenir que essas coisas aconteçam, mas não há necessidade de que nos controlemos por conta de tolerância para com essas ações, como se elas fossem uma expressão dos valores dos criminosos. Em outros casos, em que nossos sentimentos de contrariedade ou desaprovação devem ser propriamente coibidos, seria melhor se nos livrássemos completamente deles. Caso estejamos movidos por preconceito racial ou étnico, por exemplo, a melhor solução não é simplesmente tolerar aqueles que execramos, mas deixar de execrar as pessoas só porque parecem diferentes ou provêm de uma origem diferente.
Num contexto em que há divergências profundas sobre qual é a religião verdadeira, sobre os ideais morais e políticos ou sobre as identidades coletivas que julgamos de importância suprema praticar e preservar, esses direitos e liberdades fundamentais parecem constituir a única base possível para um acordo razoável sobre os princípios de justiça que devem reger nossa vida comum.
Em sua Carta acerca da tolerância, Locke tem como preocupação central defender a distinção e a separação efetiva entre uma unidade espiritual e uma unidade política da sociedade moderna constituída em Estado. É esse propósito que o levou a defender o princípio da tolerância como ponto de intersecção e critério de demarcação necessário, pois
[…] ninguém pode impor-se a si mesmo ou aos outros, quer como obediente súdito de seu príncipe, quer como sincero venerador de Deus: considero isso necessário sobretudo para distinguir entre as funções do governo civil e da religião, e para demarcar as verdadeiras fronteiras entre a Igreja e a comunidade. Se isso não for feito, não se pode pôr um fim às controvérsias entre os que realmente têm, ou pretendem ter, um profundo interesse pela salvação das almas, de um lado, e, de outro, pela segurança da comunidade.
Nesta entrevista Adrián Gorelik, uma das figuras mais expressivas da renovação dos estudos sobre as cidades e a arquitetura latino-americana em curso na Argentina (e no Brasil) desde os anos de 1980, retoma parte de sua trajetória marcada pela discussão política e pela interdisciplinaridade, retraça as linhas mestras de seu percurso intelectual e recupera momentos importantes da história intelectual argentina nas últimas décadas.
Adrián Gorelik é uma das figuras mais expressivas da renovação dos estudos sobre as cidades e a arquitetura latino-americanas em curso na Argentina (e no Brasil) desde os anos de 1980. Graduado em arquitetura em Buenos Aires nos anos de repressão e esvaziamento da universidade, um período de grande fermentação intelectual e política, ele combina a leitura crítica da modernidade latino-americana formulada por intelectuais como Ángel Rama, Beatriz Sarlo e Carlos Altamirano à reflexão arquitetônica e urbanística levada a cabo pela Escola de Veneza — uma tradição crítica incorporada à historiografia urbana argentina sobretudo pelas mãos de José Francisco (Pancho) Liernur, um dos mentores intelectuais da geração de Gorelik. Orientando de Manfredo Tafuri nos anos de 1970, Liernur integra em 1977 o grupo da Escuelita, uma “escolinha” fundada dias antes do golpe por arquitetos destacados que, posteriormente, acolhe intelectuais que voltavam do exílio no México.
Os empresários industriais e a burocracia pública formaram um pacto político que foi dominante no Brasil desde os anos de 1930 até a década de 1980. O nacional-desenvolvimento era a estratégia de desenvolvimento que esse grupo adotou. Entretanto, o desastre econômico e político que o Plano Cruzado representou e a hegemonia mundial do neoliberalismo desde os anos de 1980 foram determinantes na sua perda de poder. A Fiesp e o Iedi não foram capazes de apresentar um discurso alternativo ao discurso então dominante neoliberal. A partir de 2000, porém, e particularmente desde o governo Lula, existem sinais de que estão reorganizando seu dis curso e dando um conteúdo macroeconômico mais consistente com o controle da inflação e o crescimento econômico.
Entre 1930 e 1980, o país industrializou-se e cresceu extraordinariamente sob o comando de uma coalizão política que teve, como principais atores, os empresários industriais e a burocracia pública, e, como estratégia de desenvolvimento econômico, o nacional-desenvolvimentismo caracterizado pela substituição de importações e pela forte presença do Estado na economia. Nos anos de 1980, porém, no momento em que o modelo de substituição já se mostrava esgotado, o país enfrentou a grande crise da dívida externa, ao mesmo tempo em que, no plano global, a ideologia neoliberal se tornou hegemônica.
Tomando como ponto de partida situações encontradas nas periferias paulistas, este artigo discute as relações redefinidas das relações entre o informal, o ilegal e o ilícito. Se é verdade que a transitividade entre o legal e ilegal, formal e informal sempre acompanhou a história de nossas cidades (e sociedade), apresenta-se hoje o desafio de construir um jogo de referência distinto do espaço conceitual que vigorava até recentemente, em grande medida regido pelo tema das chamadas incompletudes da modernidade brasileira.
Doralice, 40 anos, mora em um bairro da periferia paulista com o marido, o filho e mais a mãe, um irmão e um sobrinho. Doralice é diarista. Ganhos parcos e irregulares, não mais do que três casas para cuidar da faxina. Provida de dotes culinários amplamente celebrados pela família, houve um tempo em que resolveu vender pão e broas que ela preparava durante o dia. Vendia à noite nas proximidades de um hospital em uma barraca improvisada na perua Kombi do marido. O empreendimento não deu muito certo e depois de alguns meses foi desativado.
Este trabalho pretende recuperar o modo particular como Jürgen Habermas enfrenta, a partir dos conceitos de publicidade, legitimidade e agir comunicativo, alguns desafios que, em nosso entender, interessam particularmente o pensamento antropológico contemporâneo: o problema da tradução cultural ou da irredutibilidade das diferenças e o problema do lugar da religião no espaço público.
Ainda que os fenômenos religiosos contemporâneos estejam em processo de profunda mutação, seu estudo tem permanecido confinado às fronteiras disciplinares tradicionais, sobretudo da sociologia e da antropologia, que por terem herdado esse tema como um objeto clássico de sua própria construção se deparam com dificuldades para renovar seus instrumentos de análise e o modo de colocar os problemas nesse campo. Neste trabalho, trata-se de enfrentar o desafio de expandir essas fronteiras a fim de renovar nosso modo de pensar a religião, acionando dispositivos conceituais distintos, oriundos de programas de trabalho que não têm esse campo como um dos principais focos de sua problemática.
Este ensaio se ocupa principalmente do exame dos aspectos metodológicos da concepção de historiografia materialista de Benjamin, a que eu chamo de crítica da cultura (Kulturkritik). Com a noção de Kulturkritik, quero distinguir a análise de Benjamin de “teorias” da cultura e ressaltar sua preocupação crítica com o conceito de “cultura”. Ao fazê-lo, quero explicitar os imperativos metodológicos do exame da modernidade como espetáculo. Ainda, também procuro mostrar que a crítica da cultura de Benjamin é significativamente diferente da Ideologiekritik desenvolvida pelos integrantes originais do Institut für Sozialforschung [Instituto de Pesquisa Social].
Desde sua publicação em 1982, as Passagens — sua obra-prima inacabada —tornaram-se o principal ponto de referência das discussões a respeito das análises da modernidade de Walter Benjamin. Elas têm sido o solo fértil no qual os comentadores de Benjamin procuram explorar suas idéias sobre o espaço metropolitano, a tecnologia, a arquitetura, o modernismo literário e a cultura visual. Porém, os imperativos epistemológicos e metodológicos da análise de Benjamin da cultura moderna que dão sustentação a esses estudos ainda não foram devidamente considerados.
Este artigo apresenta os elementos constitutivos do conceito de tolerância e discute duas concepções diferentes do termo, como permissão e como respeito moral, que expressam modos diversos de demarcar os limites da tolerância. A tolerância é apresentada como um conceito que, para ganhar algum conteúdo, depende normativamente de um direito à justificação baseado na idéia de um uso público da razão segundo o qual as práticas e as instituições político-jurídicas que determinam a vida social dos cidadãos devem ser justificáveis à luz de normas que eles não podem recíproca e genericamente rejeitar.
O conceito de tolerância exerce no discurso político contemporâneo um papel central e, no entanto, ambivalente. Basta pensar nos seguintes exemplos, tirados do contexto alemão mas que assumem um caráter um tanto paradigmático nos debates acerca do próprio significado da tolerância. Em 1995, um dispositivo da Lei Educacional da Bavária que determinava a fixação de uma cruz ou crucifixo em cada sala de aula da rede pública foi declarado inconstitucional pela Corte Constitucional Federal; desde então tem havido um debate acalorado sobre se o dispositivo seria intolerante com relação às minorias ou se, em vez disso, não seriam as minorias que objetavam à ostentação de cruzes ou crucifixos que estariam sendo intolerantes. Outro exemplo seria o acirrado debate sobre se deveria ser permitido a uma professora muçulmana vestir o véu islâmico na escola: é intolerante requerer que ela deixe de usá-lo ou, ao contrário, vesti-lo é que é sinal de intolerância? Também quando o governo alemão aprovou uma lei que atribuía às uniões homossexuais um status legal com alguns dos direitos e deveres do casamento, contestou-se que a tolerância não exige tal igualdade legal; em vez disso, para os opositores daquela lei, a tolerância não requer mais do que se permitir legalmente relações homossexuais. Os limites da tolerância foram atingidos, assim sustentavam, quando tais leis colocaram a tradicional instituição do casamento em questão (um dos slogans utilizados dizia: “Tolerância, sim; Casamento, não!”).
Este ensaio pretende explorar a informação propiciada pela Pesquisa de Condições de Vida (PCV) com o objetivo de responder à seguinte questão: Em face das tendências de interiorização observadas nas últimas décadas, quais seriam as dimensões mais relevantes no contexto atual que caracterizam ou não a heterogeneidade intra-regional no Estado de São Paulo. O estudo analisa algumas dimensões da configuração socioeconômica do país, com a preocupação de informar as políticas de trabalho e social no Estado.
Desde a segunda metade dos anos de 1970, observa- se um movimento de interiorização da população e da atividade econômica no Estado de São Paulo. Nessa década, o Estado convivia com uma única grande conglomeração urbana, a Região Metropolitana de São Paulo (RMSP). Atualmente duas outras regiões estão consolidadas — Baixada Santista e Campinas —, sendo que em Sorocaba e São José dos Campos o processo se encontra em estado avançado. Além disso, outros pólos econômicos regionais vêm sendo constituídos ao longo dos últimos trinta anos.
A partir de três narrativas da literatura brasileira contemporânea, este ensaio examina como a ficção memorialística se desdobra em função do grau e do tipo de fragmentação narratológica: Relato de um certo oriente, de Milton Hatoum, trabalha com as reverberações da difração cultural; Resumo de Ana, de Modesto Carone, com as divergências do contraponto; O motor da luz, de José Almino, com uma subjetividade despedaçada e polifônica. Da mesma forma, o uso da referência literária discrimina nessas obras três posturas diante do conceito de literatura.
Em menos de dez anos, surgiram no Brasil três narrativas ficcionais nas quais o dispositivo de enunciação, sem que constituam “memórias” autênticas, parece todavia, nos três casos, resultar de um certo trabalho da recordação: Relato de um certo oriente, O motor da luz e Resumo de Ana. Relato de um certo oriente, primeiro romance de Milton Hatoum, e Resumo de Ana, de Modesto Carone, foram saudados pela crítica, em comentários e artigos, sendo que o primeiro ensejou até mesmo duas exegeses; os dois livros foram agraciados com o importante prêmio Jabuti, no ano que seguiu sua publicação; foram mais tarde adotados no programa de diversos concursos relacionados com os estudos literários ou ao ensino de literatura. Sem dúvida mais desconcertante, O motor da luz de José Amino foi mais discretamente acolhido mas, a meu ver, nem por isso deixa de representar outra obra-prima cujas qualidades a legitimam como a terceira ponta de um triângulo que circunscreve, na literatura brasileira contemporânea, um espaço romanesco fecundo, situado entre ficção e autobiografia, relato e memória. Longe de representar certa produção narrativa, muito preocupada (entre outras formas e temáticas) com uma certa “atualidade” urbana, articulando violência e exclusão social, essas três prosas assinalam uma polaridade própria que merece ser analisada, tanto pelas convergências que esboçam como pela singularidade dos projetos que flexionam.
Inspirada na abordagem relacional da Nova Sociologia Econômica, esta pesquisa mostra como diferentes constelações de atores e instituições influenciam o desenvolvimento econômico. Por meio de uma análise comparativa de duas experiências de desenvolvimento local brasileiras da indústria de equipamentos de eletrônica e informática, argumentamos que diferentes padrões de interação dos atores públicos e privados influenciam a qualidade e a sustentabilidade de processos de crescimento econômico.
Desde que as teorias de corte estruturalista perderam espaço para as formulações de tipo neoclássico, a partir dos anos de 1970, o debate sobre desenvolvimento perdeu muito de sua substância histórica e sociológica (relacionada com as mudanças na estrutura social), reduzindo-se praticamente ao debate sobre crescimento econômico. A chamada escola cepalina, por exemplo, procurou temperar os esquemas neoclássicos de equilíbrio com análises históricas sobre a formação das nações capitalistas periféricas (no jargão de época), como os efeitos da herança colonial e da escravidão, das desigualdades na distribuição da renda e da propriedade, da insuficiência e do atraso institucional e dos regimes políticos autoritários.
Este artigo examina a interpretação liberal-igualitária da tolerância como um valor político. Essa interpretação apóia-se em uma noção que teóricos políticos como Brian Barry e Thomas Nagel denominam “imparcialidade moral de segunda ordem” ou “imparcialidade de ordem superior”. A idéia central é a de que há uma distinção de importância normativa capital entre aquilo que justifica convicções associadas a “doutrinas abrangentes do bem”, e visões éticas similares, e razões que se prestam a justificar o emprego da coerção coletiva da sociedade.
Este artigo tem por objetivo explicitar o entendimento que a perspectiva normativa que denomino “liberalismo igualitário” tem da tolerância como um ideal político. Quando me refiro à tolerância como “ideal político”, estou pensando-a exclusivamente de duas óticas: como uma virtude de instituições e de decisões políticas fundamentais, e como uma virtude de pessoas somente quando, na condição de cidadãs, de representantes eleitos e de juízes, exercem uma responsabilidade deliberativa que têm por objeto instituições e decisões políticas fundamentais. Como uma virtude individual, a noção de tolerância pode incidir sobre uma gama muito mais ampla de atos e condutas das pessoas. Mas a noção de tolerância liberal será discutida, neste artigo, somente em um contexto político.
Recente pesquisa de vitimização no Rio de Janeiro, metrópole com altas taxas de homicídios e outros crimes violentos, revela que os moradores dos subúrbios cariocas apresentam os menores percentuais de desconfiança ou desconhecimento de vizinhos, abaixo de 20%. A boa convivência tem proporções maiores nas áreas em que vivem os pobres, sendo que a mais antiga, populosa e vinculada à história do movimento sindical e às manifestações culturais populares, corresponde aos subúrbios da cidade onde ficam as favelas mais violentas. Por que tal convivência sociável é maior nos subúrbios que apresentam as maiores proporções de vitimização, embora careçam hoje de áreas de lazer e de bons serviços públicos, especialmente os de segurança pública? Como explicar este paradoxo? À luz da discussão sobre capital social, eficácia coletiva e as três ordens sociais – privada, paroquial e pública -, novas interpretações sobre a alta taxa de criminalidade no Rio de Janeiro são lançadas.
Qual a importância da sociabilidade em vizinhanças ou comunidades para explicar os níveis de violência diferenciados espacialmente hoje observados em várias cidades?O pressuposto dessa pergunta é que as pessoas fazem parte de apenas uma vizinhança, estabelecida pela sua relação com o espaço físico, social e simbólico, onde estão os vizinhos com os quais constroem um local carregado de símbolos de pertencimento, de problemas comuns, de memórias de dádivas que criam obrigações de retribuição no futuro, de conflitos resolvidos pela conversa entre as partes, criando confiança nos circunstantes. Nas teorias examinadas aqui enfocaremos principalmente as noções de confiança e capacidade de intervir ou de se organizar localmente.
Este artigo analisa as dificuldades e os limites da proposta liberal de fundamentar moralmente a tolerância a partir do ideal de autonomia. O autor argumenta a favor de uma justificação mais cética, contextualista, política e pragmática da tolerância para um Estado liberal democrático. O problema da tolerância deve ser tratado como uma questão política, e não moral. A tolerância como prática do Estado liberal deve preencher uma exigência básica de legitimação, que delimita o exercício do poder político, segundo a qual aqueles que reivindicam a autoridade política sobre os demais devem oferecer boas razões sobre as bases dessa autoridade.
Há alguma coisa obscura sobre a natureza da tolerância, pelo menos quando é compreendida como uma atitude ou um princípio pessoal. Na verdade, o problema sobre a natureza da tolerância é sério o suficiente para perguntarmos se ela é de fato possível em sentido estrito. Talvez, em vez disso, contenha alguma contradição ou paradoxo segundo o qual as práticas da tolerância, quando existirem, têm de se apoiar em algo diferente do que a mera atitude de tolerância tal como tem sido descrita classicamente pela teoria liberal.