Pandemia, urbanismos do sul e vida coletiva

especial pandemia

 

Com o título “The Pandemic, Southern Urbanisms and Collective Life”, este ensaio foi originalmente publicado em Society+Space, em 3 de agosto de 2020 (https://www.societyandspace.org/articles/the-pandemic-southern-urbanisms-and-collective-life). A tradução para o português, que contou com o apoio da Fundação Tide Setubal, é de Fernanda Koch.

 

Por Gautam Bhan, Teresa Caldeira, Kelly Gillespie e AbdouMaliq Simone

 

16 out. 2020

 

As condições pandêmicas deram origem a todo tipo de imaginação — distópicas, utópicas, utilitárias, planetárias. Diante desse evento de proporções tão globais, notamos o impulso de pensar em termos monumentais, um pensamento obstinado que não é meramente compensatório para as interrupções ocasionadas, mas sim da ordem e da escala da própria pandemia. Totalidade, catástrofe, portal. Embora reconheçamos o desejo presente em alegações e certezas analíticas monumentais, desconfiamos do seu exagero, do seu romance, da sua pressa em diagnosticar que inflama, habita e dirige a nossa imaginação.

Começamos com uma leitura e uma ordem de especulação diferente. Queremos parar o ímpeto de planejamento e previsão, projeção e achatamento da curva, para ver o que está acontecendo em Déli, São Paulo, Jacarta e Johanesburgo, cidades nas quais pesquisamos e com as quais estamos envolvidos há muito tempo, mas também em muitas outras como Cairo, Manila, Lagos, Karachi. A partir “daqui”, a história dos arranjos coloniais e imperialistas de extração e criação de riqueza e a história da formação das elites nacionais moldaram maiorias urbanas que vivem com recursos mínimos, vulneráveis a pequenas mudanças nos arranjos sociais e econômicos. Queremos olhar para os estilos de vida que não podem ser tão claramente divididos em “antes” e “depois” da pandemia, e onde a “crise” e o “cotidiano” não são tão claramente separáveis. Esses são lugares onde os mundos não foram necessariamente interrompidos, mas continuaram a existir em circunstâncias intensificadas, provocando readaptações em enormes processos de microespeculações e combinação de riscos. Em vez das narrativas totalizadoras e singulares que a pandemia produziu, propomos um enfoque nas formações cotidianas de vida coletiva, uma forma de compreender a pandemia e o mundo que está sintonizada com os processos e as experiências urbanas do Sul Global.

Oferecemos vida coletiva como uma problemática que pode manter o foco onde ele deve estar: nas maneiras pelas quais a maioria urbana está tentando sobreviver e lidar com as estruturas de desigualdade que agora tanto carregam a nova marca da Covid-19 quanto mantêm as antigas formas de distanciamento e exclusão. As disposições pandêmicas exacerbam o racismo estrutural atual, as desigualdades de classe e as hierarquias de gênero e sexualidade sobre as quais foram construídas as imensas cidades das colônias, o Terceiro Mundo, o Sul Global.

 

Não houve lockdown

“Qualquer repórter que tenha trabalhado um dia durante este lockdown dirá que não houve lockdown. Há a versão Disney de nossas taxas de infecção, que parecem boas no papel… E há a maioria da população da África do Sul, que passa o dia com uma máscara no queixo, odiando as restrições que, no fim, não os manterão a salvo de nada” (Richard Poplak, Daily Maverick).

Para a maioria em cidades do Sul Global, onde vive a maior parte da população urbana do mundo, o “distanciamento social” tal como prescrito pelos protocolos de saúde do norte é praticamente impossível. Existe em um mundo imaginário, em uma projeção na qual as pessoas têm uma casa onde podem se isolar e trabalhar, onde as crianças podem ter aulas via Zoom, onde existem poupanças para sobreviver por dias de confinamento sem uma nova fonte de renda, e onde as mãos podem ser facilmente lavadas. Os apelos para “ficar em casa” e “trabalhar de casa”, bem como projetos de restrição de mobilidade (lockdown) como uma medida de prevenção epidemiológica, tiram sua inspiração dos arranjos urbanos, estruturas e modelos econômicos do norte e dos bairros de elite que trouxeram a Covid para as cidades do sul. A Covid-19 foi introduzida nas cidades do Sul Global por membros das elites que viajaram para a Europa e para a China. Espalhou-se dos bairros de classe alta para as áreas pobres da cidade, não raramente sendo transportada por empregados domésticos que contraíram o vírus de seus empregadores ricos. Essa direcionalidade criou maneiras de ver o vírus e formas de moldar uma resposta que seguem um paradigma do norte e da elite.

Essas imaginações paradigmáticas de elites fazem pouco sentido em cidades onde a autoconstrução, a infraestrutura e os serviços precários, economias locais diversas e informais, bem como a inviabilidade de acesso à moradia definem a condição de vida para a maioria. Aqui, sempre houve uma instabilidade entre as categorias de “casa” e “trabalho”, entre espaço privado e público, e até mesmo sobre o que seja a família ou o domicílio. Famílias e sublocatários, amigos e estranhos dormem em banheiros e cozinhas, dividem sofás e camas, trabalham em espaços públicos e nos lares de outras pessoas, e vivem em casas que muitas vezes estão em constante processo de construção e reforma, dependendo de recursos e materiais que ficam disponíveis em momentos diferentes. Na Índia urbana, 65% das famílias com mais de três membros vivem em menos de dois quartos. Em Jacarta, enormes mercados móveis e informais, situados em pequenos espaços urbanos, fornecem alimentos e infraestrutura econômica para a maioria dos moradores da cidade. Em Joanesburgo, os pequenos quintais nos bairros negros se enchem de “casas dos fundos” feitas de ferro ondulado e que compartilham banheiros, pontos de eletricidade e água, desafiando modelos herdados do que seja a “casa”. Isso em conjunto com a história colonial do trabalho migratório negro, que fundamentalmente reorganizou as casas e famílias negras sul-africanas sempre em movimento através de muitas estruturas e grandes distâncias, tornando insustentável a ideia de uma unidade doméstica única.

Nessas cidades, sobreviver significa poder se mover, todos os dias, tanto sozinho como também no coletivo, estar aberto a negócios, à agitação, à viração para conseguir água, comida, trabalho, lixo, creche, informações e identidades para aquele dia, para aquela semana, por apenas mais algum tempo. São esses arranjos que tornam possível a vida cotidiana no sul urbano e estão no centro do que entendemos por vida coletiva. Usamos esta expressão justamente porque são operações e arranjos que são mais do que instituições formais, organizações cívicas e associações voluntárias, embora inclusivos das mesmas, às quais os indivíduos pertencem. A vida coletiva urbana é uma ampla rede de relações, iniciativas, esforços, formas de prestar atenção, de unir forças, de investir tempo e recursos que ocorrem como resultado de organização intencional, mas, ainda mais importante, também como uma série de práticas nas quais as pessoas se envolvem de modo a gerir sua existência cotidiana dentro das cidades. Sem acesso a carros particulares para chegar a supermercados, sem cartões de crédito para pedir entrega de comida online e sem dinheiro suficiente ou meio de transporte para comprar qualquer coisa a granel ou a longo prazo, garantir comida na mesa envolve muitas, muitas etapas. Pegar dinheiro emprestado com um amigo, que teve que ficar em uma longa fila no caixa eletrônico para sacá-lo, entregar o dinheiro da passagem do riquixá ou da Kombi, às vezes ao longo de uma fila de três ou quatro outros passageiros até conseguir chegar ao motorista, pagar em dinheiro no mercado e em várias bancas para obter as melhores ofertas. Pense no número de mãos em que as notas e moedas devem passar para que as pessoas possam comer. A mera velocidade de troca e circulação para conseguir os recursos mais básicos impede as aspirações dos regulamentos de lockdown.

Indo e vindo, Tebet/Jacarta. [Foto: Rika Febriyani]

 

Esses arranjos produzem tipos particulares de urbanismos. São a personificação espacial e material de vidas que requerem um movimento constante, adaptando-se a mudanças estruturais micro e macro, ambas, no fim, sentidas igualmente. A pandemia não tornou, como se infere por vezes em comentários recentes, os residentes mais vulneráveis. A maioria urbana sempre foi vulnerável, uma condição que se aprofundou nas últimas décadas. O que a pandemia tem feito é corroer profundamente os arranjos que a maioria cria e recria, essas formas de se virar, de vida coletiva, deixando assim tanto bairros quanto indivíduos com a necessidade de reorganizar rapidamente processos já tênues e plurais. O que tem dificultado, ao invés de ajudado essa reorganização, são movimentos, como lockdowns, que buscam uma estase e imobilidade impossível e que têm poucas raízes nos urbanismos de nossas cidades. Os projetos de lockdown – como várias práticas de planejamento e ação estatal que os precederam – desconhecem o cotidiano urbano das cidades do sul. Ao fazê-lo, eles aprofundam antigas desigualdades. A concentração de lógicas antigas em condições pandêmicas e a aplicação de diretrizes de saúde impossíveis de serem seguidas têm resultado no aumento dos níveis de criminalização da maioria urbana durante a pandemia, a medida que o policiamento se torna o vetor para tentar forçar o seu cumprimento; em ciclos epidemiológicos que detêm o peso do preconceito religioso e racial, e em esforços bem intencionados para ajudar que escorregam em graves interpretações equivocadas acerca da vida urbana.

 

Reorganizações

À medida que a pandemia, bem como as respostas do Estado a ela, tem criado novas condições estruturais em nossas cidades, os moradores têm se esforçado para reorganizar e reajustar suas vidas de diferentes formas que requerem nossa atenção. Em Jacarta, algumas comunidades enfatizam a “divulgação” de si mesmas e das suas condições, tornando-se visíveis aos olhos do Estado, das ONGs e da mídia como forma de angariar recursos. Criando pequenos públicos em sites de financiamento coletivo (crowdfuding) ou circulando jpegs no WhatsApp e no Facebook, dados bancários aparecem em uma busca apressada por pequenas doações. Outros fazem o oposto. Eles contam com redes de autoridades dispersas, opacas, mas altamente participativas na tomada de decisão, colaborações discretas entre atores e instituições sem acordos formais, tudo a fim de manter abertos canais flexíveis e diversificados de obtenção de recursos. Outros ainda nem sequer funcionam como parte de comunidades discerníveis; em vez disso, concentram-se em circulações coordenadas com amigos, famílias e outros contatos em amplas extensões do território urbano, capitalizando oportunidades de curto prazo aqui e ali.

A dependência de formas locais de recursos e conexão tem sido necessária tanto para as pessoas quanto para os governos locais, à sombra do puro abandono nacional. A linguagem e a ideia da pandemia são negociadas em nível nacional, mas os governos têm sido em grande parte ineficazes na criação de respostas sérias que protejam a maioria. O regional, o municipal e, em particular, a comunidade, muitas vezes sem qualquer ligação burocrática ou prática com a administração nacional, têm sido os locais de resposta significativas. No Brasil, Bolsonaro negou a gravidade da pandemia, não mostrou nenhuma compaixão por milhares de mortes e minou iniciativas de controlar a contaminação propostas por autoridades locais e estaduais. Os moradores das periferias urbanas densamente povoadas criaram então todo tipo de alternativas para cuidar de si mesmos. Alguns dos seus líderes articularam o seu senso de abandono e urgência para resistir e agir, adotando o lema: “nós por nós!”. Em São Paulo, eles se mobilizaram para coletar e distribuir alimentos; produziram máscaras, gel e sabão a serem distribuídos entre os vizinhos; inspecionaram os bairros para identificar e isolar os doentes; encontraram maneiras de pagar de forma coletiva por médicos; e em algumas áreas seguiram as ordens de toque de recolher do crime organizado. Enquanto isso, continuaram a trabalhar: seus serviços eram necessários em todos os lugares para a limpeza e reciclagem, como trabalhadores da saúde, policiais, guardas particulares e o exército de motoboys de plantão para entregar àqueles que podem ficar em casa medicamentos, alimentos, refeições e tudo que for comprado on-line.

Entregadores em greve.  São Paulo, 1º/07/2020. [Foto: Pedro Stropasolas/ Brasil de Fato]

 

Isso é ecoado em Joanesburgo, onde, com a distribuição de merenda escolar suspensa, mulheres em cozinhas de bairro têm juntado todo os recursos que conseguem obter de quaisquer redes disponíveis para cozinhar e distribuir alimentos, lutando contra um policiamento expandido e decretos nacionais que ameaçaram fechar suas cozinhas e criminalizar o único tipo de trabalho assistencial que está prevenindo uma grave crise de fome. O governo nacional anunciou um pequeno auxílio financeiro, sujeito à existência de recursos, em face da Covid-19, mas não conseguiu colocá-lo em prática. Enquanto os esforços de ajuda à escala nacional são forjados e tropeçam, o trabalho de cuidar das pessoas cai, como sempre, e mais intensamente agora, nas redes de ajuda mútua e de responsabilidade comunitária. Em um assentamento informal nos arredores de Johanesburgo que abriga muitos imigrantes africanos na cidade, uma rede de ONGs, empresas e voluntários da comunidade criou um ponto de distribuição local e informal de 8 mil cestas básicas. Imagens de drones, feitas por uma empresa de segurança local, capturaram a fila de três quilômetros formada por pessoas que tentavam receber as cestas, esperando o dia inteiro ali, sem máscaras ou EPIs, apesar da baixa probabilidade de que conseguissem receber qualquer coisa no final.

Moradores se organizam enquanto esperam ajuda alimentar do governo em Joanesburgo. [Foto: James Puttick para Nova Moldura]

 

Nas cidades indianas, a imagem mais marcante da pandemia é a de êxodo: centenas de milhares de pessoas que tentaram deixar as cidades por medo de não conseguir sobreviver ou apenas para testar suas chances em outros lugares. Com a proibição das viagens interestaduais de ônibus e trens, elas partiram a pé, caminhando centenas de quilômetros ao longo de rodovias e linhas ferroviárias. O espetáculo da caminhada em massa dominou as manchetes, expondo a tenuidade dos arranjos urbanos para muitos. Forçados a reconhecer o êxodo e alocar trens especiais para acomodar o desejo de saída e deslocamento, os governos ignoraram ou contornaram suas próprias restrições de lockdown, admitindo a impossibilidade de segui-las.

Trabalhadores migrantes caminham em uma rodovia no distrito de Adilabad, Telangana. [Foto: S. Harpal Singh]

 

Em meio a muita má administração por parte dos governos e com diferenças marcadas entre os governos locais, estaduais e nacionais, houve tentativas de alimentar, tratar e compensar a perda de renda. A Índia, a África do Sul e o Brasil têm visto tentativas de auxílios financeiros de pequena a grande escala, programas de alimentação pública e a expansão das instalações de saúde. A ideia e o gesto de programas sociais permanecem em vigor. No entanto, esses atos de planejamento têm resultado restrito na vida da maioria urbana. Em lugares onde, antes do confinamento, as formas da vida coletiva não eram a base do planejamento governamental, os governos vêm lutando agora para alcançar os grupos antes ignorados. De que forma, por exemplo, o governo considera a falta de infraestrutura hídrica em assentamentos informais, que reconhece apenas transversalmente sob condições pandêmicas, mas não consideraria em condições normais? Como é que se estendem os auxílios financeiros aos trabalhadores não registrados em nenhum sistema formal, em parte devido a processos de casualização e terceirização supervisionados pelos mesmos governos que agora fazem esforços para protegê-los? Como um governo implementa um programa de saúde pública eficaz quando esta nunca foi projetada ou dotada de recursos para atender a maioria, ou quando a privatização e o subfinanciamento têm ameaçado sistemas de saúde criados em épocas mais democráticas? Aqui, os limites de nossas imaginações, dados, instituições e práticas existentes são claramente expostos, e a necessidade de uma nova forma de prestar atenção torna-se urgente.

 

Vida coletiva

Enxergar a pandemia através da vida coletiva significa olhar além de atores e instituições formais, paisagens legíveis, dados nitidamente tabulados e racionalidades econômicas lineares. É reconhecer a realidade e o potencial implícito das formas pelas quais as pessoas se moviam, agiam e se relacionavam entre si para produzir cenários urbanos “antes”. Os arranjos de casas autoconstruídas, de domicílios abrigando múltiplas gerações e arranjos pós-parentesco, de criação conjunta de filhos para além de casamentos e através de distâncias e fronteiras; de acordos de trabalho que não são remotamente semelhantes ao emprego sindicalizado formal, mas que de alguma forma mantêm algum dinheiro em circulação; de ocupações de terras e gatos de água e eletricidade; de reinvestimentos numa política de circulação, em novos estilos urbanos, em evangelismos especulativos, nacionalismos e formas emergentes de autoproteção. Ler a pandemia com essas formas em mente é perguntar o que ela tem feito a esses tipos de interações, esses arranjos, e descobrir o que sobreviveu e o que não conseguiu estancar vulnerabilidades ou tornar possíveis novos resultados em meio a restrições profundas e persistentes. É perguntar quais novas formas, práticas e instituições surgiram como reorganizações e o que elas podem nos ensinar sobre o que está acontecendo em nossas cidades.

Não haverá uma única resposta para tais problematizações através – ou mesmo dentro – de cada cidade e, de fato, não haverá um mapa claro para configurações espaciais ou tipos de comunidade. Na forma como a concebemos, a noção de vida coletiva é distinta da noção de comunidade e não implica qualquer ideia de consenso. Em vez disso, queremos enfatizar que o coletivo é plural e não necessariamente acordado: é apenas compartilhado em suas contradições, ambiguidades, multiplicidades e parcialidades. A diversidade é, na verdade, um de seus recursos centrais. Como é a densidade, não necessariamente na forma de residências e comércios extremamente próximos, mas na do intercâmbio e na circulação de corpos, materiais e sensibilidades.

Em termos de vida coletiva, de densidade como socialidade, o que essa leitura diz sobre lockdowns? Quando vista a partir desta lente, qualquer resposta à pandemia capaz de funcionar no contexto das condições urbanas do sul teria que procurar uma escala relevante de isolamento e uma noção de “distanciamento” que mantivesse os arranjos existentes no cotidiano da maioria urbana. Casas, escritórios, empresas e corporações não seriam, então, o vocabulário de uma resposta. Em vez disso, uma geografia e um imaginário social mais amplos estariam em jogo – a rua, a cozinha comunitária, o ponto de táxi, o aterro sanitário, o mercado, a vigilância do bairro, a fila para o recebimento do auxílio financeiro, a espera pelo abastecimento de água. Novos arranjos se tornariam visíveis e se tornariam utilizáveis como práticas que podem se adequar a outros lugares. Quarentenas comunitárias, acupunturadas nessas paisagens pelas mesmas mãos que as construíram, vigilância de bairro por parte dos moradores, isolamento de moradores vulneráveis, como os idosos, em espaços coletivos são ideias que emergem da análise das formas de vida coletiva que já existem e oferecem lições para moldar o “depois” da Covid-19. Instituições locais como escolas, mesquitas, igrejas e centros comunitários são capazes de se reorientar em condições pandêmicas porque têm a capacidade de atender uma ampla gama de necessidades e aspirações locais e, assim, agir como pontos multifacetados de intervenção. Além disso, em alguns bairros, os moradores estão tão sintonizados aos detalhes dos arranjos domésticos, ocupações e mobilidade, tão imersos em sempre prestar atenção ao que todos os outros estão fazendo, que se torna possível uma coreografia complexa que lhes permite se adaptar a novas condições sem organização ou deliberação explícita. Esses exemplos apontam para a capacidade de mover ideias e planejamentos, recursos e respostas, ao longo dos planos de vida e arranjos daqueles mais frequentemente esquecidos, descartados, mesmo que esses mundos e experiências formem a maioria. O fato de Dharavi, uma das áreas urbanas mais precárias e densamente povoadas no mundo, estar emergindo como um exemplo de resiliência, em vez de vulnerabilidade, deve-se precisamente a esse tipo de coreografia. Há também uma espécie de densidade – de interconexões, de histórias e formas de sobrevivência conjuntas, de instintos da vida coletiva –, que é um recurso talvez mais duradouro do que respostas monumentais, soluções tecnológicas ou ações institucionais em larga escala.

A vida coletiva é o que usamos para pensar, nomear e refletir sobre esses arranjos urbanos, descrevendo formações que estão sempre em construção; sempre mudando, mas podem ser identificadas e transformadas em objetos do nosso pensamento e da nossa orientação. Entendemos que é importante prestar atenção a esses processos à medida que são transformados ao longo da pandemia, e identificar os novos modos e as novas formas da vida coletiva que estão surgindo em seu movimento, no seu rastro. Isso não significa que se recuse o imperativo de agir e responder à pandemia em “escala”. Ao contrário, afirma que políticas públicas, esforços de assistência e práticas de resposta que irão significativamente sustentar e permitir a possibilidade de recuperação serão aquelas ancoradas nos modos de vida coletiva existentes e emergentes. Prestar atenção a esses modos é então por onde devemos começar, afastando-nos da atração do monumental e de volta a um realismo urbano da maioria.

 

Sobre os autores

Gautam Bhan leciona no Indian Institute for Human Settlements, em Bangalore (Índia).

Teresa Caldeira é professora do departamento de Planejamento Urbano e Regional da Universidade da Califórnia, em Berkeley (Estados Unidos).

Kelly Gillespie leciona no departamento de Antropologia da University of Western Cape, na Cidade do Cabo (África do Sul).

AbdouMaliq Simone é professor sênior no Urban Institute, na Universidade de Sheffield (Inglaterra).