Pandemia e mudanças na Atenção Primária à Saúde na cidade de São Paulo

especial pandemia

Por Vera Schattan P. Coelho, Felipe Szabzon, Maria Izabel Sanches Costa, Lenora Bruhn

3 jul. 2020

Este texto apresenta resultados das atividades do Observatório da Atenção Primária à Saúde em tempo de Covid-19. O Observatório, em colaboração com o Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento do Cebrap e a equipe de Educação Permanente da Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina, Programa de Atenção Integral à Saúde (SPDM-PAIS), tem realizado encontros periódicos para discutir a atuação da APS durante a crise no município de São Paulo. Coordenada por Mariane Ceron, a equipe de Educação Permanente da SPDM-PAIS organizou as videoconferências “Covid-19 e Atenção Primária”, em que vários dos temas aqui apresentados foram discutidos com profissionais da APS que atuam na linha de frente. Coordenados por Vera Schattan P. Coelho, os pesquisadores do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento, Gabriela Lotta, Alex Shankland, Felipe Szabzon, Maria Izabel Sanches Costa, Lenora Bruhn sistematizaram essas discussões e levantaram, compilaram e analisaram materiais de outras fontes. O resultado vem sendo publicado pelo blog da Novos Estudos. Este é o segundo artigo da série.

 

Uma das novidades mais surpreendentes trazidas pela pandemia foi o rápido reconhecimento quanto à importância de os países contarem com sistemas universais de saúde. Igualmente surpreendente foi a quase instantânea aceitação do paradigma de que esses sistemas devem abarcar e integrar desde a atenção primária, na qual começam os cuidados com prevenção e monitoramento dos casos, até os hospitais de nível terciário de complexidade, onde são atendidos aqueles que necessitam de UTIs. Os princípios de Alma Ata,[1] que por mais de trinta anos foram a bandeira de um movimento que parecia fadado a alcançar modesto sucesso, ganharam, assim, inesperado destaque e prestígio na esfera pública.

Ora, se a Covid-19 abriu uma bem-vinda “janela de oportunidade” global para o antigo sonho dos sanitaristas, há ainda muitas transformações por acontecer antes que a revolução cognitiva acima mencionada se materialize. Nesta série de artigos, investigamos como na cidade de São Paulo, epicentro da pandemia no país, a Atenção Primária à Saúde (APS) está respondendo à crise. O sistema de APS da cidade viveu grandes transformações nos últimos vinte anos, tendo sua governança se tornado mais complexa: a rede cresceu, a participação social foi incorporada às unidades de saúde que se capilarizaram pela cidade e muitos de seus serviços passaram a ser geridos e oferecidos por Organizações Sociais de Saúde (OSSs). O que estamos aprendendo sobre as fortalezas e fragilidades dessa governança durante esta crise sanitária sem precedentes? Que aspectos da sua estrutura estão facilitando ou constrangendo a tão sonhada realização dos Princípios de Alma Ata?

Em abril, em artigo inaugurando esta série, relatamos que, após um primeiro momento de relativo abandono da APS na cidade, por parte tanto dos gestores da crise quanto dos usuários e de parcela dos seus profissionais, parecia estar sendo esboçada uma retomada. Um mês depois, em maio, esse movimento ganhou força e ouvimos de uma gestora que estavam “reinventando o cotidiano da Unidade Básica de Saúde (UBS)”.

Essa reinvenção foi lentamente ganhando corpo, a partir de 21 de março, com a publicação pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de recomendações e orientações de como enfrentar a pandemia. Essa regulamentação merece especial atenção no atual contexto político de limitada coordenação entre os governos federal, estaduais e municipais de respostas a Covid-19. A SMS, ao sinalizar a expectativa de que a APS seguisse cumprindo suas funções clássicas e, concomitantemente, contribuísse para o enfrentamento da pandemia, reiterou a aposta quanto ao seu papel no interior do SUS, ao mesmo tempo que fazia coro a um movimento global pelo fortalecimento da APS.

Foram definidos novos fluxos de pacientes na UBS, a triagem dos usuários passou a ser feita na porta dos serviços, e foram criadas áreas – tendas externas ou salas arejadas – dedicadas exclusivamente aos sintomáticos respiratórios. Os casos de sintomáticos respiratórios considerados leves passaram a ser monitorados pela UBS, preferencialmente por telefone, por um período de 14 dias. Os casos mais graves passaram a ser referidos para serviços de maior complexidade através do sistema de agendamento municipal, ou da imediata remoção em viatura do SAMU. As unidades foram orientadas a suspender as atividades em grupo e manter o acompanhamento dos crônicos, das grávidas e dos recém-nascidos, garantindo atendimento domiciliar aos idosos mais vulneráveis.[2] Os Agentes Comunitários de Saúde (ACSs) devem manter suas atividades externas, dando informações sobre as campanhas de vacinação e a prevenção das arboviroses, além de orientações sobre a Covid-19, bem como reportar à UBS os casos suspeitos, para evitar contágio devem permanecer do lado de fora do domicílio e manter o distanciamento, usando máscara e higienizando as mãos a cada visita.

Tal reorganização significa promover mudanças consideráveis na rotina da UBS quando o risco à saúde dos profissionais está permanentemente presente. Para viabilizá-las, é preciso que diferentes agentes envolvidos na governança da APS – secretaria municipal, OSSs e controle social – mobilizem recursos e promovam iniciativas. Proteção, durante a pandemia, está intrinsecamente associada à garantia de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), como máscaras, luvas, aventais e álcool em gel. Envolve também a redução do movimento na UBS por meio do teleatendimento e do telemonitoramento, o que requer uma infraestrutura de comunicação nem sempre disponível nas UBS ou para os pacientes, sobretudo em áreas mais pobres e periféricas. Demanda ainda treinamento, uma vez que essas modalidades de atendimento, proibidas até então, exigem novas habilidades dos profissionais da APS. Tendo sido capacitados a fazer anamnese presencialmente, passam a precisar decidir, por exemplo, quando é o momento de parar de atender o paciente que chega à UBS para, pelo telefone, acompanhar quem está em casa. Passam ainda a decidir quanto ao que pode ser de forma adequada manejado à distância e o que requer a presença do paciente.

A urgência imposta pela pandemia parece ter contribuído para viabilizar essas mudanças, uma vez que alinha os esforços daqueles que estão envolvidos na governança da APS em São Paulo. No começo da pandemia, os EPIs eram escassos e sua distribuição foi priorizada para os profissionais locados nos equipamentos de média e alta complexidade. Felizmente, ao longo do mês de maio, esforços da SMS, em conjunto com as OSSs e organizações da sociedade civil que angariaram doações, contribuíram para normalizar a situação do suprimento de EPIs viabilizando o trabalho dos profissionais. Nesse processo foi se evidenciando a necessidade de treinamento e apoio para atuar no novo cenário, tendo se investido na criação de novos protocolos de atendimento à distância e no treinamento dos profissionais. Por exemplo, o Núcleo de Educação Permanente da SPDM, uma das OSSs que atua na cidade, tem organizado videoconferências para orientar, trocar experiências e discutir casos com os profissionais da APS. Iniciativas da sociedade civil, como as que vêm acontecendo em Paraisópolis, Heliópolis e Sapopemba, têm reforçado a comunicação entre o SUS e as comunidades locais.

Tal conjunto de ações tem contribuído para deslanchar ou aprofundar mudanças há muito desejadas, porém, muitas vezes difíceis de implementar, como o teleatendimento, a educação à distância e parcerias com a comunidade. Essa experiência aponta mais uma vez para o papel das crises em acelerar processos de mudança, bem como para a presença de capacidades analíticas e operacionais na APS. As primeiras expressas nas recomendações e orientações publicadas pela SMS, as últimas presentes na capacidade de garantir equipamentos de proteção e de dar suporte aos profissionais. Essa experiência contrasta com outras em que foi relatado o fechamento de UBS por não se saber como operá-la nesta crise (Lotta et al., 2020).[3] Ao reconhecermos tais capacidades e seu potencial de tornar os princípios de Alma Ata menos distantes, não estamos tentando isentar o SUS de responsabilidade frente às taxas de mortalidade pela Covid-19 registradas na cidade – entre as mais altas do mundo. Antes, diante da evidente necessidade de fortalecer e transformar a APS, buscamos nos munir de lentes analíticas que nos ajudem a entender onde estão acontecendo e o que tem favorecido processos acelerados de mudança em contextos de governança compartilhada.

 

[1] A Declaração de Alma Ata foi um marco no reconhecimento do direito universal à saúde e na promoção da Atenção Primária à Saúde.

[2] Os profissionais que tiveram suas agendas suspensas foram envolvidos no acolhimento, orientação e monitoramento dos pacientes respiratórios leves.

[3] Lotta, G.; Wenham, C.; Nunes, J.; Pimenta, D. “Community Health Workers Reveal Covid-19 Disaster in Brazil”, Lancet (no prelo).

 

Sobre os autores

Vera Schattan P. Coelho é doutora em políticas públicas, pesquisadora associada do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), coordenadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap e professora do programa de Políticas Públicas da UFABC.

Felipe Szabzon é mestre em saúde pública e pesquisador do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap.

Maria Izabel Sanches Costa é doutora em saúde pública e pesquisadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap.

Lenora Bruhn é mestre em sociologia e pesquisadora do Núcleo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento (NCSD) do Cebrap.

 

Parque Santa Madalena, Sapopemba, São Paulo. Foto: Felipe Szabzon.